Literatura israelense,

Leonard Cohen vai ao front

Jornalista israelense reconstitui em livro o show do canadense no Sinai durante a Guerra do Yom Kippur

01fev2022

Cohen e sua banda haviam sobrevoado o canal e avançado pelo território recém-capturado do Egito até quase chegarem à linha do front. A guerra estava em seu ápice.

25. Um helicóptero nos deixou na margem africana do Canal. O aeroporto havia sido tomado um ou dois dias antes. Cantamos em um hangar de concreto. Havia um calendário egípcio na parede, e tinham deixado para trás um pouco de comida. Tentei dormir ao lado de umas latas de comida. Uma dessas latas, uma lata gigantesca de purê de batata, dizia Um Presente do Povo do Canadá.

26. Precisamos buscar abrigo algumas vezes.

27. Me sentindo bem no deserto. A guerra vai bem. As pessoas dando seu melhor. Como disse o meu amigo Layton sobre o ácido durante sua primeira “viagem”: Jamais conseguirão coibir isto aqui.

Em suas memórias, Shlomi conta que, na noite em que viu Cohen pela primeira vez, o músico estava iluminado pelos faróis de um pequeno caminhão. Não havia plateia e ele estava cantarolando para si mesmo. Talvez estivesse esperando para ser levado a outro lugar. Ou quem sabe desejava tocar, mas os soldados estavam exaustos ou deprimidos demais para ouvir, ou nem perceberam que ele estava ali.

O israelense sabia quem era Cohen porque já o havia visto duas vezes: primeiro em um concerto em Nova York, durante uma de suas viagens pela companhia aérea, e depois em um voo de Atenas a Tel Aviv antes da guerra, quando Cohen entrou na aeronave carregando um violão e a comissária, que não o reconheceu, tentou obrigá-lo a despachar o instrumento. Shlomi interveio e os dois improvisaram uma conversa, embora o cantor parecesse estar o tempo todo na defensiva. “Dava para ver que ele transitava por um mundo só dele”, diz Shlomi. “Não formulava suas frases do modo convencional. Às vezes conseguia focar, mas nem sempre parecia estar ali comigo.”

No deserto, Cohen não demonstrou nenhum sinal de reconhecê-lo e não parecia estar muito para conversa. Shlomi ficou tão surpreso ao ver o cantor na guerra que não disse nada. Tentou chamar seus amigos, mas eles estavam cansados e famintos e não conheciam Leonard Cohen. Acabou ficando ali e escutando a música na companhia de dois ou três soldados que também se aproximaram.

Embora Shlomi não saiba dizer quando — nem onde — exatamente isso aconteceu, ele sabe o que Cohen cantou: uma versão de “Lover Lover Lover” com um verso mencionando os soldados israelenses. Comoveu-se ao escutar a letra e por saber que alguém como Cohen havia pegado um voo até Israel e depois viajado até o Sinai e atravessado o Canal de Suez para estar ali com eles.

Sem perguntas

Os países árabes estavam coligados contra Israel, e àquela altura a maioria dos países europeus não permitia sequer o abastecimento dos aviões com destino à região. Os israelenses se sentiam profundamente isolados. Cohen não era um avião repleto de armas ou reforços, mas tinha um significado. O cantor dirigiu algumas poucas palavras à sua minúscula plateia. Segundo Shlomi escreveu em suas memórias, essas palavras foram: “Vocês estão todos juntos, e estão aqui para se apoiarem mutuamente, o que é muito raro, algo tocante de se ver. É incrível poder estar aqui com vocês e ver como vocês permanecem juntos sem fazerem perguntas”. Shlomi se lembra especialmente dessas últimas palavras, “sem fazerem perguntas”, que ecoam um comentário feito por Cohen ao explicar sua admiração pelos exércitos. “Não tenho a menor vontade de atirar na cabeça de ninguém”, ele disse ao entrevistador. “Mas, tendo em vista quanto todos nós somos preguiçosos, indisciplinados, selvagens e gananciosos, me parece um milagre quando conseguem organizar um grupo de pessoas para vestir roupas limpas, marchar em bela sincronia e seguir uma rotina de disciplina e obediência. São exatamente os mesmos métodos utilizados em monastérios, ou em qualquer tipo de treinamento. Sempre me interessei por essa ideia de treinamento, e tradicionalmente o exército sempre foi um local de treinamento para homens jovens.”

Depois disso, Cohen deixou o acampamento e seguiu para o deserto em um automóvel. Um ou dois anos mais tarde, após o lançamento de “Lover Lover Lover”, Shlomi escutou a canção no rádio. “Mas o maldito mudou a letra”, ele conta. A parte citando os israelenses havia sido cortada.

Ao longo dos anos, Shlomi tentou lembrar o verso exato. No entanto, só voltou a escutá-lo quase cinco décadas depois, quando li para ele a letra que encontrei no caderno de Cohen; nela, o poeta chama os soldados de “meus irmãos” e diz que virá ajudá-los a lutar. Quando terminei, Shlomi ficou em silêncio por alguns instantes. Então disse que sempre quis saber por que o trecho havia sido cortado. A mudança não o deixa irritado, mas triste. Ele quer amar Leonard Cohen, e isso é um obstáculo. Sentira que Cohen estava mesmo do lado deles, ao contrário de outros artistas que tocaram no front, e até dos israelenses. Shlomi é dono de um bar em Tel Aviv e passou a vida inteira lidando com músicos. Não tem grande apreço pela maioria deles. “Muitos dizem que cantaram na guerra”, aponta, “mas na verdade foram somente a uma base aérea, e no dia seguinte já estavam de volta no Café Cassit. Não é o caso de Leonard Cohen. Ele foi mesmo. Comeu a mesma ração de guerra que nós. Eu abri uma lata para ele. Era um ser humano.”

Por isso o recuo de Cohen é tão doloroso. O homem Leonard Cohen estava do lado dos israelenses, e a canção foi composta em uma base israelense, mas o poeta Leonard Cohen achava que suas palavras deviam ser maiores que os israelenses e maiores que a guerra. Mais tarde, ao tocar “Lover Lover Lover” nos palcos, Leonard Cohen deixava claro onde havia composto a canção. Mas dizia à plateia que a música era dedicada aos soldados “de ambos os lados”. Em um concerto na França, chegou a dizer que havia escrito a canção para “os egípcios e os israelenses”, nessa ordem.

‘Muitos dizem que cantaram na guerra, mas foram somente a uma base aérea. Cohen foi mesmo. Comeu a mesma ração que nós’

O encontro noturno com Cohen é uma memória estranha. Isaac e Patzi, que estavam no mesmo acampamento, não têm lembrança alguma dele. O show do qual todos se lembram aconteceu um pouco depois, talvez no dia seguinte, em uma encruzilhada próxima à base aérea ocupada em Fa’id. Sharon havia montado ali o quartel-general da divisão enquanto o exército adentrava a África e avançava sobre a linha das forças inimigas, agora ilhadas na margem israelense do canal. Ninguém se lembra de como Cohen chegou, só que de repente ele já estava lá. Isaac fotografou a ocasião. (Tradução de Bruno Mattos)

Nota do editor
Este trecho integra o livro Who By Fire (Spiegel & Grau, 2022), do jornalista israelense Matti Friedman, ainda sem previsão de publicação no Brasil. 
Essa editoria tem apoio do Instituto Brasil-Israel.