Música,

Senhoras e senhores… Mr. Leonard Cohen

Cinco anos depois da sua morte, revisitamos a transformação do cantor e compositor de celebridade literária em ícone musical

04nov2021 | Edição #52

Hidra, uma das ilhas sarônicas da Grécia, 1966. Fitando o azul irrefutável do Mar Mirtoico, Leonard Cohen reflete. Aos 31 anos, o judeu canadense autoexilado há seis anos nesse paraíso de casinholas brancas já acumula em seu currículo editorial quatro livros de poesia e dois romances. O mais recente, Beautiful Losers (Belos perdedores), lançado em 1966, até gerou bastante controvérsia em seu país de origem.

A vida de escritor expatriado ao sol é um deleite. Rende-lhe uma série de aventuras amorosas que marcarão para sempre sua biografia; encontros formidáveis, como quando hospedou o ícone beat Allen Ginsberg; imersões no budismo; e experimentos com drogas como o LSD e o haxixe. Porém, seus livros não vendem.

Aterrorizado diante da alternativa pouco aventureira de que dispõe para sanar as finanças, a de tornar-se professor universitário, ele toma uma decisão. Retornará, sim, à vida metropolitana da América do Norte. Só que trocando sua Montreal por Nova York, onde já residiu uma década mais cedo. E, o que é mais audacioso: reinventando-se como cantor e compositor, profissão que oficializará com o lançamento, em 27 de dezembro de 1967, do histórico álbum Songs of Leonard Cohen.

No quinto aniversário da morte de Cohen, ocorrida em 7 de novembro de 2016, este texto revisita a peculiar saga de sua surpreendente transformação de respeitada celebridade literária em um dos mais enigmáticos e preciosos ícones musicais dos últimos cinquenta anos.

Primeiras palavras

Filho de uma das mais influentes famílias da comunidade judaica quebequense, rica a ponto de ter três empregados domésticos, Leonard Norman Cohen nasceu privilegiado em 21 de setembro de 1934 em Westmount, bairro nobre de Montreal. A mãe, Masha, emigrara da Rússia nos anos 20; o pai, Nathan, era dono de uma empresa de roupas finas e lutara na Primeira Guerra Mundial, motivo de sua invalidez progressiva nos anos posteriores.

A morte de Nathan foi marcante o suficiente para que o filho, então com apenas nove anos de idade, começasse a escrever.

Em 1950, descobriu num sebo The Selected Poems of Federico García Lorca (Poemas selecionados de Federico García Lorca), livro que o incentivou a redigir poemas. O ídolo espanhol, diga-se de passagem, viria a ser homenageado anos mais tarde por Leonard, que daria à filha o nome Lorca, em 1974, e traduziria seu “Pequeño Vals Vienés” na canção “Take This Waltz”, de 1986.

Em maio de 1954, já estudando literatura na Universidade McGill, onde teve aula com um de seus heróis, o poeta Irving Layton, Cohen foi publicado pela primeira vez numa revista de Montreal. Dois anos depois saiu seu primeiro livro, Let us Compare Mythologies (Comparemos mitologias), com 44 poemas e projeto gráfico do próprio autor. Um crítico reclamou da abundância de “sexo e violência” do conteúdo. Ainda assim, este rendeu-lhe o prêmio literário da McGill.

Primeiros acordes

Mesmo sempre focado no ofício de escrever, Leonard estabeleceu também desde cedo um vínculo com a música. Na adolescência, aprendeu diferentes instrumentos, do violão ao clarinete, e chegou a atuar em bar mitzvahs no trio de country Buckskin Boys. Em 1957, já em Nova York, cursando pós-graduação na Universidade Columbia, registrou pela primeira vez a voz em um disco, ainda que sem cantar.

Projeto da Canadian Broadcasting Company lançado pelo braço canadense do mítico selo Folkways, a coletânea Six Montreal Poets trouxe Leonard declamando oito poemas do seu livro de estreia. Em abril de 1958, quatro meses após testemunhar um bêbado Jack Kerouac recitando poesias acompanhado por jazzistas no célebre Village Vanguard, tentou algo parecido. Cantou com seu violão e declamou com o apoio do pianista quebequense Maury Kaye.

Insatisfeito e deprimido com a vida nova-iorquina, Leonard se mudou em dezembro de 1959 para Londres, amparado por uma bolsa do Conselho Canadense, para redigir seu primeiro romance. Ao mesmo tempo, seu currículo poético aumentava, com a edição de The Spice-Box of Earth (A caixa de especiarias da Terra), em 1961.

Apesar de protagonizado por um alter ego, Lawrence Breavman, o tal romance, A brincadeira favorita, lançado em 1963, era um texto autobiográfico, com alusões ao declínio físico do pai morto precocemente. No começo do capítulo 3, Breavman rememora: “Seu pai vivia quase todo o tempo na cama ou em uma cabine de hospital. Quando ele estava de pé e andando, ele mentia”.

A ilha

Foi na capital britânica que Cohen ouviu falar de Hidra, o paraíso insular preferido dos intelectuais autoexpatriados onde havia morado, entre outros notáveis, Henry Miller. Encantado com a ilha, em 27 de setembro de 1960 ele se tornou um proprietário local, aproveitando a herança deixada pela avó para arrematar uma casa de duzentos anos e três andares, sem luz elétrica ou água encanada.

Convertido em caiçara parcial, rapidamente já tinha um amor para chamar de seu, a norueguesa Marianne Stang. Passou a manter um pé em Hidra, onde dividia a casa com ela e o enteado, e o outro em Montreal, território de outros incontáveis affaires. Viajou também a países como Cuba, que ainda respirava os ares da Revolução de 1959. Simpático ao novo regime comunista, chegou a esboçar o livro Famous Havana Diary (Famoso diário de Havana), que não terminou.

Entre braçadas no mar e conversas no bar, mergulhava no que viria a ser ‘Beautiful Losers’, redigido durante nove meses sob efeito de ácido e speed e que o levou à exaustão

Durante o período greco-canadense, outras duas coleções poéticas de Cohen vieram à tona. Flowers for Hitler (Flores para Hitler, 1964) era menos formal, com influência do cinema e dos quadrinhos e com referências ao Holocausto; já Parasites of Heaven (Parasitas do paraíso, 1966) incluía versões ainda não musicadas de futuros clássicos, como “Suzanne” e “Avalanche”. Apareceu no documentário Ladies And Gentlemen… Mr. Leonard Cohen, de seu conterrâneo Don Owen, recitando ao violão e até — novidade –— cantando. Quando na ilha, entre braçadas no mar e conversas no bar, mergulhava no que viria a ser Beautiful Losers, redigido durante nove meses sob efeito de ácido e speed e que o levou à exaustão.

De linguagem por vezes delirante e temática recheada de tabus — religião, homossexualidade, escatologia, sexo com adolescentes, estupro —, o segundo romance de Leonard Cohen não tinha como passar despercebido. “Encontre uma santinha e foda-a repetidamente em alguma parte prazerosa do Céu”, lê-se em uma passagem. Anos depois, o escritor definiria Beautiful Losers como uma “estranha coleção de riffs de jazz, piadas de pop art, kitsch religioso e preces abafadas”.

Fato é que, com ou sem polêmica, a repercussão não garantiu o financiamento de sua vida de viagens, casos amorosos e arte. Até mesmo o bem-nascido Leonard precisava de dinheiro, e ele tinha certeza de que era na música que o encontraria. “Por favor, me descubram, tenho quase trinta anos”, escreveu na parede do Le Bistro, um dos seus restaurantes favoritos em Montreal. Suas tipicamente autodepreciativas preces seriam atendidas.

“Trintão” descoberto

Cohen foi corajoso de bancar o “trintão” calouro em plena segunda metade dos anos 60, época em que a juventude era considerada um valor supremo, justamente em Nova York. Embolava ainda mais o meio de campo a saturação do mercado local de voz e violão. A mais culturalmente competitiva das cidades vinha por décadas sendo o epicentro de repetidos revivals do folk estadunidense de raiz. E, convenhamos, em 1966, as preferências dos jovens já se inclinavam mais para os rebentos da revolução psicodélica — de Beatles a Jimi Hendrix, de Pink Floyd a Byrds — do que a Pete Seeger e Joan Baez. Até a divindade imaculada dos xiitas acústicos, Bob Dylan, tinha mandado tudo às favas e aderido à guitarra elétrica.

Mas Leonard não nasceu para remar a favor da maré. Já o entregava a sua pinta de jovem Al Pacino, nada roqueira, diametralmente oposta à vigente estética hippie: nariz esplêndido de avantajadas narinas, cabelo curto, paletó e camisa social. “Nasci de terno”, costumava brincar. Trocando Hidra por outra ilha, a de Manhattan, se mudou para o célebre Chelsea Hotel, onde Mark Twain vivera e Dylan Thomas morrera.

Conheceu Patti Smith e Lou Reed (que era fã de Beautiful Losers), namorou a conterrânea Joni Mitchell, tomou repetidos foras da cantora e atriz alemã Nico e recebeu sexo oral de Janis Joplin, situação futuramente relatada na balada “Chelsea Hotel Nº 2”, de 1974.

Na valise, portava suas primeiras composições musicais, um pequeno tesouro que o isolamento helênico tornou imune à tabuada de influências obrigatórias para quem ousava, naqueles dias vorazes, se converter num singer songwriter.

Uma das primeiras pessoas que o ouviram foi a estrela folk Judy Collins, que gravou “Suzanne” e “Dress Rehearsal Rag” em seu álbum In My Life (1966). Foi Judy quem melhor descreveu a escrita do amigo. “Você acaba de escutar uma canção de Leonard e sabe que ele disse tudo o que tinha para dizer; ele não a abandona até ela estar finalizada.” O problema desse atributo era o tempo empregado pelo canadense no refinamento de seus versos. No documentário I’m Your Man (2005), da diretora australiana Lian Lunson, Cohen admite às vezes passar “anos” numa mesma composição.

O lendário produtor John Hammond seguiu a pista de Collins e fisgou o “coroa” inexperiente para a respeitada gravadora Columbia, casa de Miles Davis e Bob Dylan, com quem assinou contrato em 26 de abril de 1967.

Forjando uma estética

De volta por alguns meses a Montreal, passou a preparar o resto do que viria ser o disco Songs of Leonard Cohen. Realizadas em três estúdios diferentes da Columbia entre maio e novembro de 1967, com uma pausa de um mês, as gravações foram produzidas inicialmente por Hammond e, depois, pelo então novato John Simon. Cohen registrou 25 canções, selecionando dez para o repertório final.

A foto de capa foi tirada em uma cabine de uma estação de metrô de Nova York, enquanto a contracapa é ilustrada por uma versão mexicana da Ánima Sola, imagem católica que representa uma alma (de mulher) no purgatório.

As dez composições que se escutam durante os 41 minutos do disco configuram uma coleção muito mais europeia do que o trabalho de contemporâneos famosos. Ainda que as comparações fossem inevitáveis, não se pareciam com as escritas por Dylan, ou por Paul Simon, ou pelo escocês Donovan. Não por acaso, Leonard faria sempre mais sucesso no Velho Continente do que nos Estados Unidos. Songs of Leonard Cohen chegou ao número 13 da parada do Reino Unido, mas apenas à 83ª posição do outro lado do Atlântico.

As melodias e ritmos do álbum bebem do folclore judaico que o compositor herdou da mãe, filha de rabino que lhe cantava em ídiche e russo, da chanson franco-belga valseada de Jacques Brel, dos acordes de flamenco que um violonista espanhol lhe ensinara na adolescência e dos lamentos gregos que absorveu em Hidra. Em metade dos arranjos, contou com a presença não creditada do quarteto californiano Kaleidoscope, acompanhantes de Nico, que se arriscavam em instrumentos pouco convencionais.

‘Songs of Leonard Cohen’ era o prenúncio da excepcionalidade de uma carreira que, novamente pegando todos os prognósticos no contrapé, duraria outros cinquenta anos

Traços euro-orientais são notáveis na presença de violino e bandolim em faixas como “Stories of the Street”, no dedilhado aflamencado e insistente de “Teachers”, ou na clássica “So Long, Marianne”, carta de despedida à sua companheira durante praticamente todos os seus anos de ilha. O registro da canção demorou quatro semanas para ficar pronto. O romance entre Leonard e Marianne gerou também o tocante documentário Words of Love (Palavras de amor), de Nick Broomfield, lançado em 2019.

Liricamente, o disco promove uma impressionante amostragem, ao mesmo tempo cerebral e sensível, do quadrado temático “vinho, mulheres, canções, religião” que o próprio Cohen, judeu praticante assombrado pela depressão, assumia como lema. É poesia musicada, mas que se sustenta sem acordes e melodias, silenciada nas páginas de um livro. Um mundo sensorial e místico de imagens fortes, desenhado por um dom-juan calejado em mil vidas; uma voz de sabedoria entre jovens adultos, emitida por um romântico devoto de John Keats.

Quase não cantor

E, claro, há também a voz. Naquele mundo folk sessentista estadunidense, onde as estrelas precisavam se distinguir pelas peculiaridades vocais, Leonard precisou encontrar a sua. Se Joan Baez ostentava uma técnica que beira o lírico, Simon & Garfunkel apostavam nas harmonias refinadas e Dylan era provocativamente anasalado, o outsider canadense concebeu um estilo original: intimista, monótono, esfíngico.

Sua toada hipnótica, reticente a uma expressividade melódica pronunciada, era quase a de um “não cantor”, atraindo o ouvinte a uma redoma de mistério. Tornou-se rapidamente a marca registrada de um trovador introvertido, mais inclinado a recitar sonetos sozinho no quarto do que em saraus. “Da mesma forma que a poesia escrita por ele tinha uma melodia implícita, suas melodias tinham uma poesia implícita”, define a jornalista e escritora inglesa Sylvie Simmons em sua minuciosa biografia I’m Your Man: A Vida de Leonard Cohen (BestSeller, 2016).

Surgia uma nova estética, que se mostraria amplamente influente. Talentos surgidos depois, como Jarvis Cocker, Mark Sandman e Bill Callahan, que o digam. Só mesmo o próprio Cohen superaria esse estilo tão idiossincrático quando, já quinquagenário e com a voz naturalmente mais grave, se repaginou como o mais cool dos crooners a partir do LP Various Positions, de 1984.

Minimalismo épico

Os trabalhos em estúdio se desenrolaram em meio a excentricidades de músico tardio e inseguro, como mandar trazer um espelho para poder se ver cantando e as discordâncias com John Simon, defensor de arranjos mais rebuscados. Cohen, que se sentia intimidado pelos músicos profissionais, inicialmente queria gravar seguido apenas por seu violão e sem muitos outros detalhes. Mas o produtor inseriu backing vocals e cordas. A queda de braço, que terminou com Simon entregando a mixagem ao próprio Leonard e ao engenheiro de som Warren Vincent, não teve exatamente um vencedor. O resultado saiu mais enfeitado do que o autor desejava, mas bem mais cru do que a grande média das bolachas lançadas na incrível safra 1967.

De qualquer maneira, em nenhum momento o instrumental atravessa a preciosa cumplicidade entre o narcótico canto de Leonard e o ouvinte, que se estabelece desde a primeira frase da gloriosa “Suzanne”, abertura da tracklist. Composta para um amor platônico, Suzanne Verdal, dançarina de dezessete anos casada com um amigo (não confundir com Suzanne Elrod, futura mãe de seus filhos), a balada precisou de dezenove tomadas para satisfazer seu dono. Recorrendo ao imaginário cristão para ilustrar o arrebatamento pela musa “meio louca”, que lhe ensinou  como “olhar entre o lixo e a flores”, “Suzanne” persiste como um dos seus grandes hinos.

Já “Master Song” e “The Stranger Song”, dois fabulosos épicos minimalistas — uma abordagem paradoxal que talvez só Cohen alcance — nos obrigam a prender a respiração a cada carga de tensão criada, estrofe a estrofe, à espera do desenlace resolutivo que esperamos para o verso seguinte. O alívio final só vem, em forma e conteúdo, com “Sisters of Mercy”, uma valsa graciosa que se faz valer novamente de metáforas religiosas para abordar dores da alma (“quando você não se sente sagrado/sua solidão lhe diz que você pecou”). Outro clássico.

Mais direta, “Hey, That’s No Way to Say Goodbye” tem o sabor preciso de uma ruptura sentimental com alguém cuja silhueta é a de uma “tempestade dourada dormente”. Mesma orientação da derradeira “One of us Cannot Be Wrong”, uma das cinco canções que compôs para o amor não correspondido da estonteante Nico, na qual lhe implora: “deixe-me entrar na tempestade”.

Songs of Leonard Cohen era o sutil prenúncio da excepcionalidade de uma carreira que, novamente pegando todos os prognósticos no contrapé, duraria outros cinquenta anos, abrangendo mais catorze LPs de estúdio (incluindo um póstumo) e quatro livros. Com direito a extravagâncias só mesmo permitidas a um Leonard Cohen, como sua decisão de acampar com soldados israelenses na Guerra do Yom Kippur (1973), ou sua conversão em monge budista num longo retiro entre 1993 e 1999.

Quem escreveu esse texto

Daniel Setti

É jornalista, músico, DJ e curador musical.

Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.