Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Autoritarismo antiambiental

Mais um ano de ataques aos biomas brasileiros revela novas arenas de disputa e a reutilização de expedientes ineficazes

01set2021

Em seu livro China goes green: coercive environmentalism for a troubled planet (Polity Press: 2020), as autoras Yifei Li e Judith Shapiro defendem a ideia de que a China implantou um “autoritarismo ambiental” — e não um “ambientalismo autoritário” — para lidar com as demandas por sustentabilidade. O conceito descartado, apontam, calibra o autoritarismo como mero penduricalho a uma louvável política ambiental; em outros termos: a política como mero instrumento ao desenvolvimento de um projeto ambiental de sucesso. O que se dá, na verdade, é o oposto: o uso estratégico da política ambiental como uma nova forma de capital político, com vistas ao fortalecimento do autoritarismo chinês. 

A pergunta sobre a melhor forma política para lidar com os desafios ambientais marca os termos do debate atual. Com o dramático cenário desenhado pelo recente relatório do IPCC sobre a mudança climática, ela parece especialmente relevante. As democracias, de fato, têm falhado na gestão da crise climática. Por outro lado, regimes autoritários vangloriam-se de sua presteza em tomar decisões. Diante do desafio, podemos dobrar a aposta nos recursos democráticos ou inverter a rota política, colocando as fichas no autoritarismo. A resposta, segundo Li e Shapiro, não está necessariamente no modelo autoritário chinês, cujas políticas produziram efeitos também lesivos ao meio ambiente, foram – por vezes –  inefetivas a longo prazo e ilegítimas. Contra políticas implantadas de-cima-para-baixo, o investimento em mecanismos democráticos pode levar ao apoio e confiança dos cidadãos.

Um tal debate sobre governança ambiental, porém, parece descolado da atual agenda brasileira. Enquanto a pauta internacional se centra sobre os melhores caminhos para a preservação ambiental, o governo se volta a uma perspectiva extrativista e predatória. Não se exibe um modelo autoritário audacioso para reduzir emissões de carbono ou mudar sua matriz energética à guisa do chinês. Antes,  propõe-se um modelo próprio de autoritarismo antiambiental, que vai na contramão do que vinha sendo discutido nos mais diversos fóruns multilaterais e nacionais.

A desconstrução do Estado

A arquitetura de um tal autoritarismo antiambiental exige diversas engrenagens. Descrédito a dados científicos, enfraquecimento de órgãos de controle, desprezo pelas populações originárias, rejeição do diálogo com a sociedade civil, asfixia orçamentária e uma "retórica raivosa" – nos termos de Kathryn Hochstetler em Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política — são apenas algumas delas. 

O presidente começou seu mandato mirando na desconstrução do Estado brasileiro. Um de seus primeiros discursos, durante um jantar na Embaixada Brasileira nos Estados Unidos, deu o tom do que vinha pela frente: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos de desconstruir muita coisa, desfazer muita coisa, para depois começarmos a fazer.” Para que o desmonte fosse eficaz, foi necessário focar principalmente nas regulações territoriais existentes, ou seja, no meio ambiente. Foram dois anos de constantes ataques às instituições e fóruns de participação e transparência social, cortes orçamentários, paralisação de projetos e fundos internacionais, desregulações infralegais, censura, militarização dos órgãos ambientais, assédio e perseguição aos analistas ambientais do Ministério do Meio Ambiente, IBAMA e ICMBio. 

Em 30 meses de governo foram 3.032 atos infralegais (decretos, portarias, instruções normativas) de toda a sorte, que tentaram pouco a pouco moldar um novo contexto nacional de regulações do meio ambiente. Enquanto os dados de desmatamento e queimadas batiam recordes sucessivos, o governo se apresentava, para o exterior, como o país que mais protege suas florestas e biomas, com discursos conspiratórios na ONU, por duas vezes, e na Cúpula do Clima – inclusive apresentado números e promessas falaciosos – o que apenas nos transformou de líder ambiental à pária internacional.

Desmatamento em alta

Na toada de legalização de práticas ilegais em curso no poder legislativo, como a grilagem de terra e a mineração em terras indígenas, o país contabiliza 5.026 km² de Amazônia desmatada em 2021, até 30 de julho (INPE/DETER). Este dado representa um aumento de 6% em relação ao mesmo período do ano passado, quando foram contabilizados 4.739 km² de desmatamento. Com isso, os meses de janeiro a julho de 2021 representam o pior período da série histórica, que teve início em 2015.

Os sucessivos recordes de queimadas e desmatamento expõem o legado de terra arrasada dos primeiros anos do governo Bolsonaro. Mesma terra saqueada, até meados do século 19, objeto de barganha nas disputas de poder que marcaram o período de colonização do Brasil. Oficialmente encerrado há mais de 200 anos, o fantasma da colonização se manifesta constantemente através do autoritarismo intrínseco das ações de comando e controle decorrentes da militarização instalada, novamente, na Amazônia Legal. Nos moldes da ocupação militar ocorrida na ditadura, o projeto do governo federal para a região amazônica segue na perspectiva de extrativismo, subdesenvolvimento e desprezo às demandas das populações locais. Ainda que essa visão predatória se intensifique em governos autoritários, porém, não é exclusiva deles, sendo revisitada por gestões anteriores ditas progressistas. Belo Monte, por exemplo, é ícone dos conflitos socioambientais. 

Entendido como política pública pelo governo federal, o emprego das Forças Armadas no combate aos crimes ambientais passou de medida de caráter urgente a recurso de uso permanente. Desde 2019 foram instituídas as Operações Verde Brasil, Verde Brasil 2 e a mais recente Operação Samaúma. Entre decretos e portarias, a atuação do exército já dura 2 anos e acumula insucessos na redução de área de floresta desmatada. As GLOs conseguiram apenas garantir a derrubada do números de autos de infração e de áreas embargadas, com isso retirando também a autonomia das agências ambientais e da transparência na governança pública. 

Narrada à quase exaustão, das Terras do Sem Fim de Jorge Amado à atemporal Fazenda Caxangá de Itamar Vieira Junior, a política fundiária de exploração da terra, que desconsidera a diversidade biológica e cultural das florestas, segue muito presente. Estamos diante de uma política que considera a regulação e a fiscalização como entraves ao desenvolvimento, representada em atos normativos que visam a  dificultar o processo de punição aos crimes ambientais.  Um exemplo concreto é a norma de abril de 2021 que alterou o processo administrativo das autuações, culminando na paralisação do IBAMA. Imersos nesse contexto, atrelamos o esgotamento da sociobiodiversidade às falhas institucionais, representadas pela completa ausência de políticas públicas para o território amazônico brasileiro.

O agro é pop. O agro tem tudo. 

Uma tal ausência de políticas públicas pode ser explicada em parte pela movimentação de interesses na área. Organizados desde a década de 90 no Congresso Federal, por meio da Frente Parlamentar da Agropecuária, os ruralistas foram responsáveis pela articulação do novo Código Florestal em 2012. A aprovação do Código foi considerada uma derrota para ambientalistas contrários à concessão de anistia a desmatadores e à flexibilização das leis de preservação ambiental, e se consolidou como um importante passo para o atingimento de um dos principais objetivos da Frente: a desregulamentação de normas sobre propriedades rurais. 

A força da “bancada do boi” aumentou consideravelmente nos últimos anos, entrando em um novo jogo político que inclui o “centrão” como peça chave na articulação de propostas legislativas de interesse do grupo e, sobretudo, do atual governo. Segundo levantamento recente, 25 dos 167 parlamentares que se filiaram à entidade em 2019 pertencem ao PSL, partido aliado do governo, e em sua maioria são nomes ligados também à “bancada da bala”. Com isso, além dos projetos de lei sobre a alteração de normas de regularização de terras, estão na mira também projetos que pautam temas de segurança. A lista de propostas prioritárias para o setor e para o governo no Congresso é extensa: vai de permitir a grilagem de terras (estratégia de roubo de terras públicas) – proposta aprovada em julho na Câmara dos Deputados -, passando pela derrocada do sistema de licenciamento ambiental, liberação de agrotóxicos, redução de áreas protegidas, até a limitação aos direitos dos povos indígenas, liberação de mineração em suas terras, e a inclusão de policiais militares dos estados nos órgãos de controle ambiental.

Os efeitos dos retrocessos via processo legislativo podem ser mais perversos que as “boiadas” infralegais resultantes das normas do executivo. Eles impactam profundamente a legislação ambiental duramente conquistada nos últimos 30 anos e tornam a reversão e reconstrução das políticas mais longa e complexa. 

Estado arrasado, democracia em perigo. E agora?

Em junho de 2021, sob acusação de crimes como advocacia administrativa, criar dificuldades para a fiscalização ambiental e atrapalhar investigação de infração penal favorecendo organização criminosa, o ministro Salles foi finalmente afastado do cargo. No entanto, ao contrário do que se pode pensar, a não-política de desmonte ambiental continua no mesmo ritmo, só que dessa vez com um ministro que atua na sombra de seu antecessor: Joaquim Pereira Leite. Com  modos mais “discretos e gentis” que o antecessor, ele abraça o verdadeiro “correntão” do Congresso Nacional e passa por cima da sociobiodiversidade brasileira. 

Superamos a marca de 580 mil mortos por uma pandemia, que tem em seu cerne as questões ambientais em contraposição ao comportamento do governo federal em negar todas as evidências e alertas científicos. Acompanhamos tragédias ambientais que permanecerão pelas próximas gerações – como o rompimento da barragem de Brumadinho e o derramamento de óleo no Nordeste do país -, continuamos presenciando a quebra de recordes de desmatamento e queimadas na Amazônia, Cerrado e Pantanal, a perseguição e retirada de direitos dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais e a consolidação da imagem de pária internacional. Até quando?

Resumo

Um ano depois da linha do tempo que mapeou investidas antiambientais de janeiro de 2019 a abril de 2020, o cenário de destruição se aprofundou. O epítome de “ir passando a boiada”, proferido pelo então ministro Ricardo Salles na reunião ministerial de 22 de abril de 2020, deu o tom das políticas autoritárias do governo. Segundo o monitoramento do projeto Política por Inteiro, foram editadas sessenta normas de desregulação e flexibilização na política ambiental desde a data da reunião até julho de 2021.

Não só a expedição de atos oficiais que reduzem controles ambientais, mas também os próprios posicionamentos de autoridades do governo deram apoio a práticas criminosas. Nesse meio-tempo, também foram diversos os episódios de descrédito a dados oficiais sobre focos de incêndio, desmatamento e a produção de conhecimento científico na área em geral. A militarização da fiscalização na Amazônia apontou um cenário igualmente preocupante, com aumento de práticas predatórias e redução dos autos de infração.

Em 2021, porém, a conjuntura se alterou. Com a eleição de aliados presidenciais à presidência da Câmara e à do Senado, a tendência de retrocesso se concentrou também no Legislativo. Somada às boiadas infralegais características dos anos passados, a desconstrução das políticas públicas via legislação representa a consolidação do desprezo da atual gestão às questões socioambientais e climáticas, incluindo os direitos indígenas, a conservação da biodiversidade e a integridade dos servidores públicos da área ambiental. A preocupação agora virou a de também frear os vários projetos de lei que põem em risco o meio ambiente.

Meio ambiente na mira

Nesta linha do tempo produzida pelo LAUT em parceria com o Política por Inteiro, selecionamos exemplos de atos que pautaram a política (anti) ambiental dos últimos meses

Cronologia de janeiro de 2019 a abril de 2020

maio.2020
(Re)militarização da Amazônia

O presidente Jair Bolsonaro autoriza o emprego das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem (glo) na Amazônia Legal. Conhecida como “Operação Verde Brasil 2”, que se estendeu até abril de 2021, a ação previa a prevenção e a repressão a delitos ambientais e submeteu de forma inédita o Ibama e o icmbio ao Ministério da Defesa. A operação custou mais de cinco vezes o orçamento total do Ibama destinado à fiscalização, mas não diminuiu os índices de ações predatórias nem aumentou a aplicação de multas na região. As queimadas aumentaram e as multas do Ibama diminuíram, alcançando em 2020 o menor
número desde 2004.

jul.2020
Veto genocida

Mais de três meses depois do primeiro caso de Covid-19 entre indígenas e vinte dias após a aprovação do projeto de lei pelo Congresso Nacional, o presidente sanciona lei que estabelece o Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 aos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Ele veta 22 pontos da lei, como as obrigações de garantia de água potável, distribuição de materiais de higiene, oferta emergencial de leitos hospitalares e respiradores às aldeias. O Congresso derruba dezesseis vetos, restabelecendo as obrigações acima, mas o veto à distribuição de cestas básicas foi mantido.

set.2020
Morte anunciada do Conama

O mais importante conselho de meio ambiente, o Conama, foi totalmente revisto pelo governo Bolsonaro. Ele teve sua composição esvaziada, passando de 96 membros para apenas 23. Em setembro de 2020 foram revogadas três importantes resoluções sobre licenciamento de irrigação, definições e limites de Áreas de Preservação Permanente (app) de reservatórios artificiais e também sobre proteção adicional aos manguezais e restingas. O Supremo Tribunal Federal  precisou entrar no jogo para anular as revogações feitas pelo ministro Ricardo Salles. Só em agosto de 2021 o órgão voltou a se reunir. Triste fim.

out.2020
Pantanal em chamas e o ‘boi bombeiro’

Considerado até 2018 o bioma mais preservado do país, o Pantanal registrou queimadas recordes que consumiram pelo menos 23 mil quilômetros quadrados, o que significou a devastação de 26,5% desse bioma entre janeiro e outubro de 2020. Enquanto os especialistas apontavam que a tragédia resultava do aumento do desmatamento e dos incêndios provocados por ação humana (associados à queda de fiscalização), Salles atribuía as chamas à seca anual e defendia a tese do “boi bombeiro”, também sustentada pela ministra Tereza Cristina (Agricultura), afirmando que, se houvesse mais
bois e pastos na região,
o estrago seria menor.

dez.2020
Meta climática sem ambição

O governo brasileiro entrega a nova meta climática (ndc) em cumprimento ao Acordo de Paris ao final de
2020, mantendo os percentuais de redução das emissões de gases de efeito estufa existentes da meta anterior, mas alterando o ano-base para o cálculo da redução, o que pode possibilitar um aumento das emissões brasileiras no futuro. Para que seja possível manter o aumento da temperatura média global abaixo de dois graus Celsius, era esperado que os governos entregassem metas de redução mais ambiciosas do que as anteriores, de 2015.

fev.2021
Porteira da boiada aberta no Congresso

Apoiados pelo governo federal, Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) vencem as eleições à presidência da Câmara dos Deputados e à do Senado Federal. O comando de importantes comissões que controlam a agenda ambiental (Constituição e Justiça, Meio Ambiente, Agricultura) fica com deputadas governistas. Com isso o governo passa a avançar propostas predatórias ao meio ambiente (grilagem de terras, flexibilização do licenciamento ambiental, limitações aos direitos dos indígenas), consideradas de aprovação prioritária.

mar.2021
Meio ambiente sem recurso

É aprovado no Congresso o menor orçamento para o Ministério do Meio Ambiente em 21 anos. O projeto de lei orçamentária prevê R$ 1,79 bilhão para todas as despesas do ministério e dos órgãos vinculados, o que representa cerca de R$ 1 bilhão a menos do que o orçamento executado em 2019 e 27% a menos do que o valor destinado à pasta em 2020. O corte é oficializado logo após a Cúpula do Clima, na qual Bolsonaro se comprometeu a duplicar os investimentos nas ações de fiscalização e reforçar atividades de combate e controle.

abr.2021
Mordaça científica, fiscalização parada

Portaria do icmbio delega ao diretor de Pesquisa da Biodiversidade, um tenente-coronel da reserva da pm de São Paulo, o poder de autorizar a publicação de produções científicas dos servidores. No Ibama, uma instrução normativa altera o processo administrativo das autuações por crimes ambientais, definindo prazos exíguos para a emissão e aprovação de relatórios e retirando autonomia dos fiscais em campo para a lavratura do auto de infração, paralisando a fiscalização. Os servidores reagem, e o governo recua em alguns pontos críticos, mas a apuração das infrações segue comprometida.

jun.2021
Desmate em alta, Salles em baixa

Após a deflagração da operação “Akuanduba” pela Polícia Federal, o mês de junho marca a saída do ministro Salles, investigado por crimes de corrupção, advocacia administrativa, prevaricação e facilitação de contrabando de madeiras. O novo ministro é Joaquim Alvaro Pereira Leite, ex-conselheiro da Sociedade Rural Brasileira (srb). Enquanto isso, entre março e junho, o país registra os maiores índices de desmatamento na Amazônia desde 2015 (quando começou a série histórica), com a Operação Verde Brasil 2 demonstrando seu fracasso perante os desmatamentos ilegais. O vice-presidente anuncia uma nova glo, desta vez focando somente as áreas com as maiores queimadas registradas.

Militares na Amazônia

Dados do Ibama e do INPE mostram que sob GLO (Garantia da Lei e da Ordem, que autoriza o uso da Forças Armadas na Amazônia Legal) cresceu a área desmatada e caiu a fiscalização

Fiscalização em queda

Autos de infração (multas por crimes contra a flora: desmatamento, queimadas etc.) e embargos (documentos que paralisam a infração ambiental, viabilizando a recuperação da área) caíram durante as 3 GLOs
 


 

Desmatamento em alta

Área detectada pelo sistema de avisos de desmatamento do sistema DETER, que divulga dados mensais

Fonte: IBAMA E INPE. Elaboração: Política por Inteiro.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Ana Paula Prates

Olivia Ainbinder

Taciana Stec