Especial Pantanal, História,

O último comunista do Pantanal

A história de um revolucionário que trocou a guerrilha pela docência em uma comunidade ribeirinha da região onde nasceu

01ago2022

Em minha família existe uma linhagem composta apenas de Carlos Reiners, da qual faço parte e talvez esteja entre os últimos. O primeiro, até onde se sabe, foi meu bisavô Georg Karl Heinrich Reiners (1870-1959), vindo de Oldenburg, Alemanha, no final do século 19 para o Pantanal. Engenheiro, chegou à selva com as máquinas a vapor que montaria na usina de Itaicy — às margens do rio Cuiabá, pioneira na produção de açúcar no Centro-Oeste — e lá ficou. Com as máquinas, mas também com a sobrinha do patrão, Totó Paes de Barros (coronel, político e visionário; inicialmente assassino, depois assassinado).

Do casamento com Maria Leopoldina veio o segundo Carlos Reiners, meu avô. Mais conhecido por Carlinhos, ele gerou o terceiro Carlos Reiners (1933-2008), meu tio. Minha avó Antonieta morreria em 1948, em consequência do parto de minha mãe. E aí começou o envolvimento de Carlos Reiners, o terceiro, com o Partido Comunista, que o levaria à guerrilha após o golpe militar de 1964. 

Tio Carlos dizia que passou de revoltado a revolucionário ao perder precocemente a mãe na adolescência. Em depoimento ao líder e educador indígena João Guató, um ano antes de morrer e já acossado pela doença de Parkinson, ainda não abandonara seus ideais utópicos: “Apenas procuro colocar minhas ideias dentro do momento histórico que estamos vivendo”. 

Na época da morte da mãe não havia recursos médicos naqueles ermos. “Ainda hoje continua a mesma situação”, disse ele a Guató em 2007. “Outro dia uma funcionária de uma fazenda aqui em Mimoso pisou em um prego. Quando viram, estava morrendo de tétano. A falta de recursos na saúde pública, que minha mãe enfrentou naquela época, as famílias pobres do Pantanal enfrentam hoje. São coisas dessa natureza que não podem acontecer em pleno século 21.”

Carlos Reiners chegou à minha consciência infantil como uma lenda familiar. Era o homem que trocou sua loja de utensílios domésticos, a Casa Reiners — a maior da capital — por armas e entrou para a clandestinidade. Assim como seus irmãos e irmãs, foi nascido e criado na fazenda de meu avô Carlinhos (uma lenda à parte, pantaneiro que multiplicou terras herdadas do Carlos inicial, lotando-as de gado; contudo, segundo tio Carlos, “era o gado que criava ele, e não ele que criava o gado”). Antes de saber dessa lenda, entretanto, frequentei sua casa humilde na Cidade Alta, bairro de Cuiabá, onde escalei mangueiras e meti os pés descalços em formigueiros ao lado de primos e primas.

Depois disso, no final dos anos 70 e início dos 80, sua figura ganhou consistência mais concreta que a da mitologia, a de um homem alto e gentil, meio encurvado para a frente como se o nariz adunco o puxasse sempre adiante, resistindo à gravidade. Nesses anos ele conseguira emprego na escola rural Santa Claudina, em Mimoso, distrito de Santo Antônio de Leverger e pântano natal de Rondon e de minha família, adiantando-se à mulher e aos cinco filhos que seguiam na capital.

Percebi o material exótico aplicado na construção da parede: não eram tijolos, e sim livros

Era julho, quando as águas do Pantanal baixam e a imensidão submersa aflora na superfície. Ao visitá-lo, lembro de atravessar o terreiro perseguido por galinhas endoidecidas pelo sol que se afogava no horizonte de água e plantas. De entrar na casa de pau a pique e sentir a temperatura cair, graças à umidade. O piso era de terra batida e a luz solar ressaltava os calombos no chão. Não havia quase nada ali, a não ser a mesinha desconjuntada ao pé da janela e a cozinha ao fundo. Eu estava obcecado por livros então, aos dez ou onze anos, e talvez por isso tenha percebido o material exótico aplicado na construção da parede entre o quarto e a sala: não eram tijolos, e sim livros que subiam do piso até quase o teto. 

Resistência

Que tipo de pessoa constrói uma parede de livros? Há semelhanças possíveis entre os objetos, ainda que figuradas: um livro muito grosso é chamado de tijolo, por exemplo. No entanto, muros de um presídio nunca seriam construídos com livros em vez de tijolos. Trata-se de um paradoxo que alegraria Darcy Ribeiro: se presídios fossem construídos com livros, presídios nunca existiriam. Carlos Reiners era o tipo de pessoa que pensava coisas assim, um revolucionário que trocou a guerrilha, ou mesmo a militância na política tradicional, pela docência na escola pública de uma comunidade ribeirinha da região onde nasceu.

Seu necrológio na Folha de S. Paulo, por Willian Vieira, recorda que tio Carlos “passou a noite de 29 de março de 1964 inteirinha ao pé do rádio ouvindo a evolução do golpe militar. Até que fechou a loja de louças em Cuiabá, organizou os ideais políticos e se juntou aos colegas comunistas para pegar em armas”. Seu grupo rumou para o norte de Mato Grosso, a fim de organizar a resistência ao lado de trabalhadores rurais sindicalizados, além de promover a união com a liga camponesa de Rondonópolis. Logo tiveram de se refugiar na selva, acossados pelo Exército. Acabaram presos em meados de abril. Para desespero dos familiares, após ser capturado numa operação da polícia civil em Cuiabá, Carlos passou seis meses preso no quartel do 16º Batalhão de Caçadores do Exército, onde sofreu torturas.

Seria preso novamente depois do ai-5,
em 1969, junto com seu irmão Jecelino Reiners (1935-74), egresso do movimento estudantil, militar da reserva, sociólogo e acadêmico envolvido na organização de uma célula revoltosa que envolvia marinheiros da Marinha brasileira treinados em Cuba e pretendia instalar a guerrilha em Paranatinga sob comando de Cândido Aragão. Jecelino morreria cinco anos após ser libertado, aos 39 anos, em decorrência de hemorragia estomacal, sequela da tortura sofrida na prisão. 

A despeito da vida luminosa que teve em Mimoso e do reconhecimento da comunidade pantaneira, onde lecionou por mais de trinta anos, não deve ter sido fácil para tio Carlos sobreviver à morte do irmão. Penso, com proverbial exagero, em sobreviventes dos campos de extermínio, como Primo Levi ou Paul Celan, que sofreram longamente com a perda de parentes próximos, algo que os levou ao suicídio. No documentário O último comunista convicto do Pantanal (2001), dirigido por Amaury Tangará, Carlos menciona Jecelino com grande admiração, referindo-se a um encontro meio anedótico com um improvável Che a caminho da Bolívia. 

Na história da família, a morte trágica de Jecelino e a vida estoica de Carlos são complementares. O desaparecimento precoce do primeiro cobriu-o de sombra e mistério, enquanto a Carlos restou a missão de contar essa história, tão triste quanto a de sua geração, os jovens latino-americanos soterrados pela treva que se abateu por décadas sobre o continente. Ao final do documentário, ele diz que ser professor é “chegar a uma pessoa que está morta e ressuscitá-la. É jogar uma luzinha dentro daquelas mentes que estão na escuridão e fazer com que a luzinha se torne ampla, mas não uma amplidão bitolada, e sim a amplidão imensa do horizonte”. 

Há cinco anos publiquei Noite dentro da noite (Companhia das Letras), no qual a vida de Carlos Reiners segue rumo distinto do de sua vida real. No romance, que recria fatos relativos ao meu tio com grande liberdade ficcional, ele se chama Karl Reiners, e sua adesão à guerrilha culmina na própria morte. Em plena ação na selva pantaneira, perseguido pelo Exército, exausto e ferido, ele é assassinado pelas mãos de um garoto trêmulo, ex-aluno que tivera no liceu de Cuiabá. Colocá-lo numa situação extrema e cruel assim, na qual sua vida alcança um final bem diferente do ocorrido na realidade, não partiu de nenhum sentimento sádico, e sim de um acerto de contas do personagem com suas próprias crenças e desejos.

Para isso, precisarei cair na armadilha cabotina de explicar um pouco o subtexto de Noite dentro da noite. Narrado por Curt Meyer-Clason (1910-2012) — célebre tradutor de Guimarães Rosa para o alemão que passou cinco anos aprisionado no Instituto Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande, condenado em 1942 por espionagem nazista —, o livro trata das diversas identidades vividas em uma única existência. Na cadeia, o alemão descobriu seu amor pela literatura, que o levaria a traduzir Grande sertão: veredas, além de García Márquez, Borges e outros grandes escritores latino-americanos. Após ser libertado, e pelo restante de sua longa vida (morreu com 102 anos), nunca confirmou o motivo de sua condenação, alegando ter sido coagido sob tortura pela polícia política de Vargas a se declarar culpado.

No romance, diversos personagens vivem várias existências ao longo de uma só, como Meyer-Clason, não muito diferentemente do que acontece com todos nós. E Karl, o Carlos Reiners do romance, envereda pelo Pantanal e bota em pé a revolução que tanto almejava. Mesmo que fracassada ao fim e ao cabo, ele dá tudo de si, como fez pela educação das crianças pantaneiras. Um ano antes de morrer de câncer, disse que sentia medo ao ver a situação política do país tomando rumos diferentes. “A gente sabe que os militares não esqueceram a ditadura. Sinto que estão em silêncio, mas em um determinado momento vão acabar tomando alguma atitude. Tenho medo de que aconteça e comprometa o processo democrático.”

A história é triste como a dos jovens latino-americanos soterrados pela treva que se abateu sobre o continente

Na mesma entrevista a Guató, tio Carlos lembra seu maior medo na prisão. Como parte da tortura, os milicos botavam os presos políticos na caçamba do caminhão sem dizer nada e saíam vagando à noite por lugares desertos, com a promessa implícita de fuzilamento. A situação se repetiu. Naquelas noites em que pensava que morreria no meio do mato ao lado dos companheiros, algemado na caçamba e com o vento na cara, Carlos Reiners olhava o céu e via as estrelas, olhava as estrelas e via nelas os únicos focos de luz no final da escuridão.

O especial Pantanal tem o apoio de Documenta Pantanal

Quem escreveu esse texto

Joca Reiners Terron

É autor de A morte e o meteoro (Todavia).