Direitos Humanos,

Judeu é branco?

Artigo de Antônio Risério reforça estigmas não apenas em relação aos negros, como também em relação aos judeus

21jan2022

Nas primeiras décadas do século 20, as elites brasileiras, desejosas de embranquecer o país por meio da miscigenação, passaram a refletir sobre se a imigração de judeus, árabes e asiáticos cumpriria tal objetivo.

Tais grupos não eram percebidos como negros, mas tampouco eram considerados plenamente brancos. Diante da falta de imigrantes europeus ideais, no entanto, tornaram-se uma opção a ser analisada.

Houve intenso debate. Como afirma o historiador Jeffrey Lesser, “intelectuais, diplomatas, políticos e lideranças militares estreitamente ligados ao regime Vargas com frequência assumiram posturas de índole fascista e passaram a pressionar contra a entrada de elementos étnicos ‘inassimiláveis’”. E de fato, em 1937, uma ordem secreta proibiu o ingresso de “semitas” no Brasil.

A dúvida sobre a branquitude do judeu (bem como a do árabe e do asiático) pairava também em outros países. E a negação de sua participação no lugar social dos brancos foi a base sobre a qual se estruturou a discriminação desse grupo de pessoas no período moderno.

Antissemitismo

Inventado na Europa no século 19, em meio à emergência das teorias raciais, o antissemitismo servia justamente como ideologia para racionalizar a exclusão dos judeus de um terreno reservado aos “arianos”, independentemente do fato de terem ou não a pele clara.

Daí que se torna importante abordar este aspecto tão particular no texto de Antônio Risério publicado na Folha de S. Paulo no último domingo (16 de janeiro), e que pouco apareceu nas reações que a ele se seguiram.

Intitulado “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo”, o artigo reforça estigmas não apenas em relação aos negros, como também em relação aos judeus.

Ao utilizar o antissemitismo para legitimar a existência de um “racismo preto antibranco”, o autor embranquece os judeus e transforma o antissemitismo em uma espécie de “racismo reverso”

Ao utilizar o antissemitismo para legitimar a existência de um “racismo preto antibranco”, o autor embranquece os judeus e transforma o antissemitismo em uma espécie de “racismo reverso”, esvaziando o conceito de seu significado histórico e sociológico.

Não há dúvidas de que há antissemitismo também em setores do movimento negro — da mesma forma que existe racismo na comunidade judaica. Alguns dos exemplos listados por Risério são suficientemente eloquentes e não devem ser desprezados.

Mas a concepção torta de que os judeus seriam brancos e o antissemitismo, um tipo de “racismo contra brancos” ignora a existência de judeus negros — no Brasil, segundo o último Censo do IBGE (2010), são 1.690 pessoas — e é a mesma que setores antissemitas do movimento negro utilizam para justificar a discriminação contra judeus, e que adquire, assim, contornos de “resistência”.

Há aí um certo esforço conjunto no sentido de “puxar os judeus para o lado de cá”, no caso de uns, e de “empurrá-los para o lado de lá”, no caso dos outros, mas que nunca se concretiza de fato. Judeus e negros permanecem sendo igualmente vítimas dos supremacistas.

Não que os judeus de pele clara não gozem de privilégios no Brasil, ainda mais quando a sua condição judaica passa despercebida. Entretanto, como se sabe, as categorias de “branco” e “não branco” têm menos a ver com cor da pele do que com o espaço destinado a um determinado grupo no imaginário social — ainda que, evidentemente, e a depender do contexto, o fenótipo possa cumprir um papel decisivo.

De toda forma, é justamente na medida em que se diferencia do “racismo reverso” que o antissemitismo segue sendo um problema a ser enfrentado por todos aqueles que se preocupam com os direitos humanos. Menos grave seria se a concepção apresentada no artigo fosse fato isolado.

Porém, nos últimos anos, essa ideia vem ganhando força tanto entre setores conservadores como em setores progressistas. Enquanto uns utilizam a experiência judaica para legitimar a existência de uma discriminação contra si próprios (brancos), outros ignoram uma experiência tida como secundária ou “concorrente”.

Dentro ou fora do clube?

Esse processo intensificou-se desde a ascensão de Bolsonaro à presidência da República. E ajuda a explicar o seu interesse em aproximar-se da comunidade judaica.

Vítimas de um genocídio no século 20, os judeus encarnam e dão uma suposta legitimidade a uma das pautas mais caras do bolsonarismo: a existência do racismo contra brancos. Por isso mesmo, grupos não judaicos ligados à nova direita têm se interessado pela edificação de monumentos em memória do Holocausto, seja a Igreja Universal no Tempo de Salomão, em São Paulo, ou Marcelo Crivella no Morro do Pasmado, no Rio de Janeiro.

Também por essa razão Bolsonaro achou importante discursar num clube judaico. Depois do veto da Hebraica de São Paulo, foi buscar acolhimento no estabelecimento de mesmo nome no Rio de Janeiro, onde não por acaso fez um discurso racista.

O que aconteceu na noite de 3 de abril de 2017 rachou a comunidade judaica de forma similar ao que acontecia no restante do Brasil: dentro do edifício, aplausos efusivos; fora, gritos ensurdecedores de protesto.

Desde então, sempre que um sujeito se posiciona politicamente, ficamos imaginando: se sujeito estivesse em Laranjeiras naquela noite, estaria ele dentro ou fora do clube? Em uma espécie de aritmética da política brasileira, talvez possamos dividir todos os brasileiros, metaforicamente, entre os que estariam protestando ou aplaudindo.

Todos aqueles que, como Risério, alertam contra um suposto “racismo reverso” no lugar de denunciar as condições nas quais determinadas comunidades estão inseridas socialmente, provavelmente estariam dentro. Traindo um determinado modo de enxergar a realidade, essas pessoas talvez também se sintam desconfortáveis com as políticas inclusivas e de redução de privilégios, tais como as ações afirmativas.

Da mesma forma, enxergam a realidade a partir de um tipo clássico de negacionismo, elaborando teses a partir dos exemplos que a justificam e ignorando todos os demais. Se exemplos alteram a tese, mudam-se os exemplos.

No caso do artigo em questão, qual a tese? “O movimento negro é antissemita”. Escolhe-se, então, na pluralidade dos movimentos negros, os episódios que são efetivamente antissemitas para se estendê-la a todos demais. 

Risério, curiosamente, escolheu falar do caso americano. Importa lembrar, no entanto, que nos Estados Unidos as comunidades com perfil eleitoral mais próximo são justamente a afro-descendente e judaica (pró-Democratas) — e há razões históricas vinculadas ao lugar social ocupado por ambas que justificam esse fato. A aliança entre negros e judeus faz parte da história daquele país desde a luta pelos direitos civis até a contemporaneidade, tendo sido decisiva na derrota de Trump — entre 70% e 80% dos judeus e dos negros votaram em Biden, de acordo com as pesquisas realizadas às vésperas do pleito.

Claro, Louis Farrakhan, líder da Nação do Islã, mencionado no artigo, assume posicionamentos antissemitas; houve, sim, tensões entre judeus hassídicos e negros em Crown Heights. E, sim, há uma mistura perigosa entre crítica a Israel e antissemitismo em alguns coletivos contemporâneos afro-americanos.

Mas daí não se pode afirmar que o movimento negro seja antijudaico.

Ao escolher os judeus (e asiáticos) como contraponto dos negros, Risério embranquece essa(s) comunidade(s). Mais ou menos como Bolsonaro fez com os judeus (e com os asiáticos) na Hebraica.

Risério (e Bolsonaro) transforma os judeus na imagem de seus inimigos históricos. E parece querer contrapor as duas maiores vítimas da modernidade: ex-escravizados e sobreviventes do Holocausto.

Tudo isso às vésperas do Dia da Memória do Holocausto, celebrado no 27 de janeiro. Que negros e judeus, ao lembrar o genocídio, possam seguir dando respostas conjuntas ao racismo e ao antissemitismo.

Quem escreveu esse texto

Daniel Douek

É cientista social e colaborador do Instituto Brasil-Israel. 

Michel Gherman

É historiador e colaborador do Instituto Brasil-Israel.