História,

Morte e vida de Vladimir Herzog

Documento do Exército da época comprova antissemitismo da ditadura ignorado por setores da comunidade judaica

28out2021 | Edição #51

No mês de agosto de 2021, eu recebi um documento em meu aparelho celular. Enviado por um conhecido meu, judeu e paulistano, o documento chega ao meu WhatsApp com a seguinte mensagem: “Exército Brasileiro Dando Show de Antissemitismo”. Confesso aqui: o título sensacionalista da mensagem e o tema do documento não me chamaram muito a atenção.

Desde que me entendo por gente, vejo judeus progressistas, historiadores profissionais e militantes políticos se esforçando para provar que a ditadura militar brasileira era especialmente antissemita. Nenhum de seus argumentos jamais me convenceu. Invariavelmente, testemunhos de presos ofendidos na tortura eram usados como prova de antissemitismo do regime.

Eu sempre achei pouco. Na câmara de tortura, a barbárie usa todas as armas para desumanizar suas vítimas — sendo mulheres, o machismo; sendo negros, o racismo; e, sendo o torturado judeu, surgiam ofensas antissemitas. Pouco, achava eu, para demonstrar estruturas antissemitas no regime militar. Não há dúvida de que há outras possibilidades de provar quão misógina e machista era a ditadura brasileira. Faltavam as mesmas provas sobre o antissemitismo do regime.

Depois de alguns dias, quando finalmente fui ler o documento, minha percepção se alterou profundamente. O título oficial já era revelador: “O Judeu e o Comunismo”. Interessante, mas mesmo assim nada de novo. Eu já havia visto relatórios intitulados da mesma forma. A data também chamava a atenção: o documento, de autoria do 2º Exército e classificado como tendo informação sobre “grupos subversivos”, era de 12 de fevereiro de 1976, ou seja, quatro meses após a morte de Vladimir Herzog, assassinado nas dependências do DOI-Codi de São Paulo e dado como suicida pelo regime.

Mas eram trechos do texto que se destacavam no documento compartilhado por WhatsApp comigo. Constituído por duas partes, começava com uma pergunta fundamental: “Sendo o judeu fundamentalmente financista e ligado ao lucro, como ele pode ser militante comunista?”.

Segundo o trecho de “O Judeu e o C0munismo – Subversão”: “Reiteradas vezes oficiais do DOI/2º Exército são interpelados por companheiros de farda sobre a presença de judeus nas organizações comunistas. Argumenta-se que os judeus, mundialmente conhecidos como elementos voltados exclusivamente para as finanças, em busca de lucro ávido e incessante, seriam as últimas pessoas a esposar a ideologia marxista, propugnadora da socialização dos bens de capitais e contrárias ao lucro”.

Ao ser anunciada pelo Exército como suicído, morte de Vlado após tortura traz judaísmo ao centro do debate

O debate sobre a pertinência da existência de judeus comunistas parece ter surgido mais fortemente, segundo o documento, após a prisão e a morte do jornalista Vladimir Herzog. Apesar de ter sido assassinado sob tortura, o “caso Vlado” foi considerado suicídio pelos órgãos do Exército. Esse tema traz o judaísmo para o centro do debate, já que, segundo a tradição judaica, o suicida deve ser enterrado em lugar separado dos “mortos normativos”. Por ter cometido um ato de traição em relação a Deus, o suicida tem de ser enterrado, segundo certa interpretação da lei judaica, separado dos outros túmulos. Isolado de outros mortos.

Em fins de 1975, esse debate religioso foi central na vida nacional, ocupou espaços nos órgãos de repressão e tomou lugar importante nas mídias escritas e televisivas. Depois de morto, ficou claro que Vladimir Herzog era judeu. Judeu mesmo, daqueles que se enterram em cemitérios judaicos. Então, sendo judeu, como Vlado poderia ser também comunista?

“Assim ocorreu quando do recente suicídio do jornalista judeu Vladimir Herzog, em que foi colocada em dúvida a afirmação dos órgãos de informações sobre a sua condição de militante atuante do Partido Comunista Brasileiro”, diz o documento.

O poderoso debate sobre a condição judaica de Herzog parece ter enchido de dúvidas a cabeça de alguns “colegas de farda”: seria o jornalista, recentemente morto, judeu demais para ser comunista? Teriam os órgãos de repressão encarcerado alguém que, por definições lógicas, simplesmente não poderia ser comunista? O 2º Exército entra para aplacar as dúvidas de seus soldados, apaziguando os ânimos dos seus agentes. Era preciso afirmar: “Vocês não conhecem a natureza do judeu real”. Os soldados não deveriam se preocupar: haviam prendido a pessoa certa, haviam torturado a pessoa certa e, o documento quase dizia, eles haviam matado a pessoa certa. Herzog era judeu e era também comunista:

“Esta visão estereotipada, decorrente de uma total falta de conhecimento, gera um clima de desconfiança dentro das Forças Armadas, já que parece que elementos da sociedade judaica são presos e tachados de comunistas por um desconhecimento dos Órgãos de Informação sobre as raízes históricas do judaísmo”.

Comunidade judaica

Em breve retornaremos ao texto do documento acima citado. Mas é importante dizer que, tal qual aconteceu no interior dos órgãos de repressão, também há desconforto no interior da comunidade judaica. De fato, poucos temas trazem mais desconforto, ainda hoje, para algumas das instituições judaicas brasileiras do que menções ao assassinato de Vladimir Herzog.

O assassinato do jornalista brasileiro marca um momento importante na distensão do regime e no início da abertura democrática brasileira. O “Caso Herzog” é constantemente visitado pela história política brasileira, seja pelas circunstâncias que cercam sua morte (tortura, assassinato e a tentativa de se forjar um suicídio), seja pelas imediatas consequências políticas de seu desaparecimento, como o culto ecumênico na Praça da Sé e a mobilização popular posterior a sua morte. Para além desses tradicionais debates sobre política comunitária, parece importante discutir os usos das leis judaicas (halachá) nesse episódio.

Vladimir Herzog era um judeu profundamente afastado da vida comunitária de São Paulo. Não se considerava religioso e os contatos com outros judeus eram pontuais e esporádicos. Após sua morte, entretanto, ele é recolocado no interior do debate judaico. Essa recolocação ocorre justamente a partir de questões profundamente vinculadas a leis judaicas religiosas de morte e luto.

Para alguns militares, Herzog era comunista demais para ser judeu; para setores da comunidade, comunista demais para ser um judeu normativo

À morte de Herzog sucedeu-se um debate sobre a natureza de seu enterro. Seria o militante comunista judeu um suicida? Seria ele um homem assassinado pela repressão? Esses debates, que seriam pouco relevantes no contexto político do país naquele momento, começavam a fazer sentido justamente na hora do velório e do enterro do jornalista.

Nesse contexto, para além de debatermos a morte de Herzog, será importante aqui pontuarmos partes da vida desse homem, diante da comunidade que agora tinha a responsabilidade de enterrá-lo. O jornalista havia sido um homem político, um preso político e se consolidara, para a sociedade brasileira como um todo, como um “morto político”.

Também nas dimensões intracomunitárias, do interior da sinagoga que ele (não) frequentava, Herzog será um “morto político”. Se na dimensão macro, da sociedade brasileira, o morto Herzog é homenageado, considerado uma vítima de um regime cruel e autoritário, nas referências comunitárias judaicas o jornalista será um morto periférico, silencioso e polêmico.

Mais do que a morte em si, nos atrai a percepção comunitária dos ritos mortuários do jornalista. Impressiona, no caso de Vladimr Herzog, que as estruturas comunitárias judaicas tenham tido um estrito respeito às perspectivas haláchicas (eu me refiro às leis judaicas) sobre ritos mortuários. Isso justamente, vale lembrar, em congregações onde em geral havia uma obediência mais flexível e liberal das leis judaicas.

Por que será que exatamente no enterro de um membro da comunidade, morto pela repressão, o debate sobre as homenagens pós-morte ganha tons dramáticos de respeito aos mandamentos das leis judaicas?  Mandamento esses, convém dizer, não seguidos sequer em grupos conectados a perspectivas mais ortodoxas do judaísmo. Na tradição judaica mais estrita, há visíveis esforços para evitar enterros de suicidas na parte teoricamente relegada a eles nos cemitérios. Para tal, teria de haver provas concretas de que o suicida tinha consciência do ato que cometia, de que o havia feito de forma voluntária e não se arrependera no ato do suicídio. O que, diga-se de passagem, está longe de ser o caso dos mortos judeus acusados de praticar suicídio na ditadura militar brasileira.

No caso de Herzog, o tipo de enterro sugeriria que a morte houvesse sido anunciada pelo morto. Escolhida pelo morto, decidida pelo morto. Há, no rito de passagem, uma dimensão moral imposta pela comunidade. Há, no enterro de Herzog, um sinal que localiza fisicamente o lugar do morto perante os vivos. No caso de Vlado, é o enterro, e não a vida, que marca fisicamente a identidade judaica do morto.

Dessa forma, o enterro politizaria a morte, esvaziaria a dimensão de resistência e colocaria o morto em uma situação limítrofe, como se ele houvesse escolhido morrer fora da comunidade e, por isso, devesse ser enterrado, como supostamente determina uma tradição judaica, fora do espaço reservado aos “mortos normativos”.

Há, portanto, sinais de que o enterro de Vladimir Herzog tenha sido, de alguma forma, acordado entre a coletividade e a ditadura militar. A exclusão do excluído daria lugar de segurança e tranquilidade para uma coletividade que não tinha clareza das próximas etapas políticas de um país que apenas começava um processo de abertura. Ao darem corpos de judeus e judias ao altar da repressão, eles imaginavam estar comprando garantias para a paz entre os seus.

Nesse contexto, a decisão de um jovem rabino, Henry Sobel, de enterrar Herzog junto a outros membros da comunidade e não no espaço restrito aos suicidas seria contraditória e fora desse suposto acordo entre certos judeus e o regime.

Assim, Herzog, o caso Herzog, não deve ser entendido de forma isolada, mas deve fazer parte de um debate maior que estabeleça relações de mortos judeus e a comunidade judaica no contexto do regime militar.

Há sinais de que o enterro de Vladimir Herzog como suicida tenha sido, de alguma forma, acordado entre a coletividade judaica e a ditadura militar

É disso que o documento parece tratar. Se para alguns militares Herzog parece comunista demais para ser judeu, para setores da comunidade judaica passa o mesmo: ele é comunista demais para ser um judeu normativo. Assim, é preciso deslegitimar o jornalista depois de sua morte. Se é preciso enterrá-lo como judeu, que seja um judeu comunista e suicida. Que seu corpo esteja distante da comunidade geral. Que o Exército perceba o que fazemos com esses que assumiram o risco de ser mortos. Os de dentro protegemos, os de fora condenamos.

Nessa perspectiva, setores da comunidade judaica e os órgãos de repressão parecem estar compartilhando territórios comuns. Entre os judeus-não judeus e os judeus normativos precisava haver um muro. Muro esse que órgãos de repressão e entidades comunitárias erguiam cada um à sua maneira. Os judeus mortos pelo regime (todos considerados, em algum momento, suicidas pela ditadura), Herzog, Iavelberg, Kucinski e Chael, estavam fora, para além do muro. Desprotegidos e excluídos.

Lentes do antissemitismo

Se os esforços para demonstrar colaboração por parte da comunidade com o regime estabeleciam alteração das próprias leis judaicas e a capitulação de corpos judaicos, nos órgãos de repressão a linguagem parecia outra.

O documento aqui analisado apontava para uma gramática francamente antissemita e conspiratória, típica dos “Protocolos dos Sábios de Sião”:

“Acontece que os meios de comunicação do Ocidente estão nas mãos das organizações judaicas, interferindo em todas as comunidades e no processo cultural de cada país, mesmo sendo uma minoria racial e uma sociedade à parte. Ao serem hostilizados, se autoafirmam como uma raça privilegiada por Jeová cujo destino é a liderança do mundo”.

A exclusão dos judeus mortos em suas formas de enterro e homenagens parecia ser suficiente para garantir a paz apenas para setores específicos da coletividade judaica. Se os “de dentro” se sentiam a salvo, “os judeus de fora” eram vistos como alvos constantes e representantes de uma conspiração, a conspiração judaica:

“Para atingir seus objetivos, todos os meios justificam os fins: ontem, alguns de seus membros se aliaram à Rússia para vencerem o nazismo (a conhecida Rede de Espionagem – Orquestra vermelha agindo na Europa), hoje em uma escala mais ampla, o Comunismo Internacional continua sendo o grande aliado para quebrar aqueles que se opõem a seus desígnios”.

Notem bem: a aliança desses “judeus comunistas” com a Rússia para derrotar a Alemanha nazista, tal qual descrita no documento, não parece ser bem-vista pelos órgãos de informação, já que é comparada aos esforços de aliança com o “comunismo internacional”.

Há uma divisão entre os que estão dentro e os que estão fora, aos olhos do Exército brasileiro. Em algum sentido, os bons judeus parecem ser, para os órgãos de repressão do Exército, os que estão para cá do muro. Os de lá devem ser vistos, seguindo perspectivas típicas do conspiracionismo judaico, como judeus perigosos e membros da conspiração:

“E há de ficar claro que não se pretende com esta informação atacar a sociedade judaica como se fosse um vespeiro de comunistas, mas tão somente posicionar alguns de seus membros no processo subversivo-comunista”.

E o documento decide também deixar claro que a degeneração comunista alcança o Estado de Israel, país que se deixa levar pela conspiração comunista. Elegendo comunistas para prefeitos e deixando que eles exerçam cargos de deputados:

“Para os incrédulos, ainda recentemente os jornais estamparam a cidade de Nazaré sufragando o nome de um comunista judeu para a prefeitura. Será que é desconhecida por muitos a existência de um Partido Comunista com assento nas Câmaras Legislativas?”.

Por fim, o documento escrito quatro meses depois da morte de Vladimir Herzog aponta a necessidade, já em 1976, de continuar a perseguir judeus comunistas porque “o risco de tê-los no país somente aumenta nesses tempos”. Elementos de dupla lealdade e ameaça à segurança nacional são colocados claramente no texto:

“O que deve ficar claro e ao mesmo tempo deve ser motivo de preocupação é que o judeu comunista existe, encontrando-se infiltrado a agindo em todos os setores da sociedade brasileira. Com o desenvolvimento tecnológico do Brasil, principalmente após a assinatura dos acordos nucleares, não se pode menosprezar a suposição de judeus comunistas agindo como espiões em benefício a países da Cortina de Ferro”.

A segunda parte do texto constitui-se de uma lista de judeus supostamente comunistas, com uma pequena biografia de cada um deles. Há alguns equívocos, e militantes não judeus são tratados como tendo origem judaica. Interessante notar a ausência de ativistas sionistas de esquerda na lista. Ao que tudo indica, no suposto acordo com os órgãos de repressão, eles estariam “dentro”, sendo protegidos pelas estruturas comunitárias que excluíam a esquerda não sionista.

Por outro lado, o “território comum” entre entidades judaicas e o regime promove uma espécie de processo de “conversão e desconversão” político-ideológica. Segundo o documento aqui apresentado, os judeus perigosos e conspiracionistas seriam os judeus de esquerda. Os judeus conservadores são vistos como aliados. Não representam risco para a segurança nacional, apesar de serem judeus.

Convertidos a judeus da corte, parecem ter feito um bom trabalho em manter relações amistosas com o regime e, eventualmente, “desnormatizando” corpos que caíam nas suas hostes comunitárias. Eles higienizavam a comunidade e se colocavam como guardiões das instituições judaicas, mantendo a paz e o controle interno e dialogando com quem fosse necessário externamente.

O bolsonarismo e os judeus

A candidatura de Jair Bolsonaro parece ter utilizado estratégias semelhantes em suas relações com os judeus brasileiros. Ao escolher judeus de dentro e de fora, ele fez acordos com aliados e afastou as ameaças, reproduzindo o processo de conversão e desconversão política e ideológica iniciado pelas perspectivas antissemitas da ditadura militar.

Não parece casual que o atual presidente tenha voltado ao tema de Herzog com alguma frequência. Também não parece coincidência que as falas de Bolsonaro sobre o jornalista tenham sido recebidas com silêncio pelas estruturas comunitárias mais conservadoras. O acordo parecia continuar valendo.

Esse será um dos temas do meu livro que em breve será publicado pela editora Fósforo, intitulado O não judeu-judeu e outros ensaios.

Quem escreveu esse texto

Michel Gherman

É historiador e colaborador do Instituto Brasil-Israel.

Matéria publicada na edição impressa #51 em setembro de 2021.