Biografia,

Para admirar Beauvoir

Biógrafa da filósofa francesa fala da ética envolvida ao se escrever a vida de mulheres e dos feminismos contemporâneos

01abr2020

Kate Kirkpatrick, filósofa e professora da King’s College, em Londres, nunca planejou escrever uma biografia. E não foi por acaso que a autora de diversos estudos sobre existencialismo, teologia e gênero decidiu se embrenhar pela vida e obra de uma das personagens mais importantes do século 20, a filósofa francesa Simone de Beauvoir. Em conversa em um café em Londres, Kirkpatrick explicou, de maneira clara e contundente, que a razão principal que a levou a escrever Simone de Beauvoir: uma vida (Crítica/Planeta) foi a confirmação, através de um cuidadoso estudo de diários e cartas de Beauvoir que foram publicados recentemente, de uma suspeita que tinha havia anos: a maneira como Beauvoir foi retratada ao longo da história, inclusive em biografias anteriores, não fazia jus à sua contribuição à filosofia ocidental. Em entrevista à Quatro Cinco Um, Kirkpatrick falou de feminismos contemporâneos, das dificuldades de compreender a caligrafia da autora e da natureza da relação com Sartre, seu grande parceiro intelectual. 

Por que lançar agora uma nova biografia sobre Beauvoir? 

Eu nunca tive a ambição de escrever uma biografia. Eu sou uma filósofa e minha pesquisa era originalmente sobre Jean-Paul Sartre. Ao longo desse estudo, percebi que no meio anglófono a filosofia dele havia sido interpretada de acordo com as especificidades daquele universo, e não do das fontes francesas que ele lera no começo da carreira. Assim, meu argumento foi de que era preciso interpretar seu trabalho tendo em vista essas fontes. Em meio a isso, estava lendo cada vez mais a obra de Beauvoir. 

Quando seus diários de estudante foram publicados em francês, em 2008, esse novo material revelou que, mesmo antes de conhecer Sartre, ela estava lendo as mesmas obras filosóficas que ele. Então, pensei que a natureza do relacionamento deles havia sido mal interpretada, pois muitas pessoas afirmavam que Beauvoir aplicara as ideias de Sartre. Além disso, a maneira como sua vida foi retratada é testemunho do tipo de tratamento discutido por ela em O segundo sexo, segundo o qual as mulheres são lembradas principalmente por seus relacionamentos. Em certo sentido, penso que chamar o meu livro de feminista pode repelir alguns leitores.

Quem você acha que precisa ler essa nova biografia sobre Beauvoir? 

Uma das razões que me fizeram querer escrever essa biografia foi a tendência, dentro do feminismo, de gerações mais novas não reconhecerem a importância do trabalho das gerações que as precederam, com base na justificativa de que as questões a ser discutidas passaram a ser outras. Eu concordo que as questões mudam com o tempo e é por isso que precisamos de novas gerações de feministas. Mas há algumas coisas que permanecem. Ainda passamos por situações em que não temos poder de escolha, ou vivemos em culturas que podem ser opressivas às mulheres. E me parece que a análise de Beauvoir sobre muitas dessas coisas permanece relevante. O meu desejo é que através dessa biografia diferentes gerações possam encontrar diferentes aspectos da obra de Beauvoir para admirar.    

Como foi seu trabalho de pesquisa? Você estudou as fontes originais, incluindo a correspondência de Beauvoir com Claude Lanzmann? 

Um dos aspectos difíceis sobre Beauvoir é sua caligrafia, que é muito difícil de decifrar! Uma das coisas que você busca, como biógrafo, é o tom das cartas. E foi muito interessante para mim ver os apelidos carinhosos que ela usava para se dirigir aos seus amantes, e também como assinava suas cartas. Na correspondência endereçada a Lanzmann, ela se referia a si mesma como “sua Beaujolais”, em referência ao vinho francês. Em todos os seus relacionamentos havia esse tipo de indício de afeição, mas ele vinha misturado a pedidos para que lhe enviassem livros. Sempre havia um caráter intelectual em suas relações, além do caráter pessoal ou erótico que esperaríamos de cartas de amor. Outra coisa incrível sobre a consulta ao arquivo foi que muito de sua correspondência foi escrito em papéis de carta dos diferentes hotéis em que ela se hospedou, o que para um biógrafo é como encontrar ouro. Assim como seus cartões-postais. 

Como foi a sua experiência de escrita? Você sente que se relacionou com Beauvoir de um modo diferente de quando escreveu seus outros trabalhos acadêmicos?

Sim, foi muito desafiador. A maneira como você avalia a vida de outra pessoa é uma questão ética. E a metáfora que os biógrafos usam para descrever seu trabalho não confere a ele uma qualidade ética — eles dizem que é uma forma de canibalismo ou voyeurismo e eu me sentia desconfortável em me colocar como uma “canibal” ou “voyeur”. Eu fiz as pazes com esse conflito ao pensar que o modo como narramos a história de vida de mulheres importa e muitas pessoas tiram vantagem dos escândalos presentes nessas vidas. Ou elas colocam as mulheres em pedestais ou acabam quebrando esses pedestais. Portanto, eu refleti muito sobre qual seria a maneira ética de contar a história de Beauvoir. 

As biografias colocam as mulheres em pedestais ou acabam quebrando esses pedestais

Beauvoir escreveu, em O segundo sexo, a famosa frase “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Anos depois, ela diria que achava que uma segunda frase deveria segui-la: “Não se nasce homem, torna-se homem”. Como você posiciona essa frase pensando nesse livro de 1949? 

Eu vejo O segundo sexo como uma obra sobre ética. Beauvoir baseia o livro em trabalhos anteriores da década de 1940, em que ela diz que é inconsistente valorizarmos nossa liberdade sem valorizar a liberdade dos outros. E ela diz que, historicamente, filósofos como Rousseau afirmam que é contra a natureza esperar que um homem se submeta a outro. 

Mas então por que, dado que ser livre é um direito essencial à humanidade, não seria contrário à natureza esperar que uma mulher se submeta a um homem? Grande parte de seu argumento, e também um dos motivos principais de tantas mulheres a criticarem, é que tanto homens quanto mulheres são responsáveis pelas suas falhas morais e por perpetuarem a desigualdade entre si. Em parte por conta de seu privilégio político, que lhe permitiu apoiar o movimento das mulheres, ela se envolveu com a transformação das normas sobre a feminilidade na França durante a sua vida. Mas ela ainda achava que havia razões éticas para questionar a maneira como a masculinidade era construída. Portanto eu vejo isso como parte do mesmo projeto ético, embora seu foco fosse primariamente as mulheres. O que eu mudaria no meu livro seria discutir a importância das mais de 2 mil cartas que Beauvoir recebeu de mulheres depois da publicação do autobiográfico Memórias de uma moça bem-comportada, de 1958. Essas cartas continham detalhes íntimos da vida cotidiana de suas autoras, o que expandiu o mundo de Beauvoir.

Você acha que essas narrativas tiveram também um papel importante em fazer com que Beauvoir se desse conta de que, em O segundo sexo, ela não reconhecera seus privilégios de classe e raça, algo que mais tarde discutiria? 

Sim, acho que há um ponto de virada nos anos 1950. Não acho que houve um momento específico, mas, em seu ensaio “Privilégios”, Beauvoir criticou os intelectuais de esquerda defensores dos direitos do povo que estavam, na prática, afastados dessa realidade. E ela com certeza se sentia culpada em relação a isso em algumas situações. Mas, em vez de ignorar esse sentimento, ela decidiu se tornar uma voz ativa em campanhas e lutas. 

Uma das coisas interessantes na biografia foi a revelação de que Beauvoir atingiu uma liberdade intelectual antes de uma liberdade sexual. O que a levou a isso?

Um dos aspectos sobre a imagem de Beauvoir que eu acho importante discutir é sua associação à libertinagem sexual. Ela raramente separou sexo de amizade ou de uma intimidade que não fosse sexual. Eu acho que faz parte de uma narrativa patriarcal vê-la como uma “garota festeira”. Ela não era. Ela queria uma conexão humana em seus relacionamentos. Em relação à sua vida, o conceito de liberdade foi primeiramente espiritual antes de ser político. 

Ela diz, em um ensaio sobre literatura e metafísica, que ler um romance pode ser um apelo à liberdade do leitor. E chama isso de aventura espiritual autêntica. Eu penso que, quando escreveu a sua própria história, ela queria que as pessoas vissem a aventura de seu espírito. Essa linguagem pode ser estranha para leitores atuais, mas se existe algo sobre o ser humano é que ele quer ser livre. Para ela, ocorreu primeiro uma liberdade espiritual e depois política. É difícil para as mulheres, porque ser livre sexualmente pode ser problemático dependendo do parceiro com quem se estiver. 

No século passado, ao menos no Ocidente, a luta das mulheres teve objetivos muito claros, como o direito ao voto e a defesa pelos direitos reprodutivos. Você acha que há um objetivo claro que os inúmeros feminismos que temos hoje buscam atingir?

Não. Eu acho que há muitos interesses políticos competindo entre si. Uma das coisas que Beauvoir diz em O segundo sexo é que é difícil para as mulheres dizerem “nós”, porque frequentemente elas se comprometem com outras lutas políticas de pertencimento, em vez da luta para melhorar a situação das mulheres. Há muitos feminismos hoje e eu não acho que eles buscam as mesmas coisas. Mas ao mesmo tempo eu não sei o quanto isso deveria incomodar, porque ao longo da história os homens discordaram sobre qual seria o melhor modo de estruturar a sociedade. Exigir que as mulheres concordem em sua luta parece um parâmetro estranho a ser imposto. 

Como você acha que Beauvoir veria expressões feministas como a campanha #MeToo, ou, ainda, alguém como a Beyoncé se apresentando com a palavra “feminista” no palco — algo que foi criticado por ter um viés de consumo e de apropriação de um conceito da moda?

Não é preciso especular muito para dizer que Beauvoir seria contra a cooptação capitalista do feminismo. Eu acho que ela seria a favor de ver o cuidado com os filhos como uma forma de trabalho que tem valor humano. Em relação ao movimento #MeToo, se você olhar para a sua autobiografia, é uma narrativa da teoria que ela desenvolveu em O segundo sexo. Beauvoir conta duas histórias de assédio na adolescência, uma delas incluída em meu livro. Ela não soube como reagir nessas situações: ela se sentiu envergonhada, ficou em silêncio. Também diz em suas memórias que o que ficou para ela desses episódios é que as coisas mais estranhas podem acontecer com você a qualquer momento. 

Beauvoir claramente pensa que, infelizmente, para a maior parte das mulheres, alguma forma de assédio será parte de sua adolescência, o que faz com que elas se sintam alienadas em relação aos seus próprios corpos, já que, interiormente, não são objetos sexuais, não estão lá para a apreciação masculina. Ela com certeza se colocaria contra a normalização desse comportamento. Beauvoir diz que o que deseja é que as mulheres sejam reconhecidas como seres humanos que estão em busca de valores em um mundo de valores. A resposta não seria de que há um dogma feminista que você precisa aceitar, mas sim que você possa ter seus próprios valores e o poder de decidir por si mesma.   

Beauvoir diz que o que ela deseja é que as mulheres sejam reconhecidas como seres humanos que estão em busca de valores em um mundo de valores

De um lado, temos a impressão de que muitos avanços aconteceram. Mas pessoas como Trump, nos Estados Unidos, e Bolsonaro, no Brasil, ambos abertamente machistas, foram eleitos recentemente. Você se considera otimista em relação aos avanços das mulheres?

É evidente que houve ganhos legislativos e a situação das mulheres em alguns países melhorou em termos de acesso a oportunidades. Mas acho importante fazer uma distinção entre feminismo como movimento político e tornar-se uma mulher em sentido individual. Há questões com as quais as mulheres se deparam de uma maneira subjetiva apenas por terem corpos femininos que dificilmente serão transformadas pela lei. Isso se dá em parte por causa da cultura, e é por isso que Beauvoir considerava a cultura tão importante. Você pode mudar a lei para que as mulheres possam abrir uma conta no banco, mas não pode mudar uma lei para impedir que as mulheres sejam subordinadas aos homens. Eu acho que é possível que alguns desses ganhos sejam perdidos. E acho que estamos vivenciando uma reação contra a participação das mulheres na vida pública. 

Você diz que para avaliar a vida de Beauvoir é preciso tirar Sartre do centro da sua história. Por outro lado, Sartre continua sendo um personagem muito presente no livro. Você poderia falar um pouco desse equilíbrio? 

Alguns estudiosos da obra de Beauvoir chegaram ao ponto de dizer que Sartre roubou as ideias dela. Enquanto outros afirmaram que ela aplicava as ideias dele. Sabemos através de pesquisas empíricas com estudantes de filosofia que, quando eles têm amizades filosóficas, produzem trabalhos muito melhores. O diálogo e a crítica constantes fazem com que reformulem suas ideias. Ter alguém em quem confiar para fazer críticas honestas é incrível e muito produtivo. 

No caso deles, essa amizade intelectual funcionou muito bem. Eles não concordavam sempre, mas sabiam que isso era feito em um contexto de confiança e cuidado com o outro. Isso aconteceu em outros períodos da vida dela com outras pessoas também. Mas ela disse muitas vezes que Sartre era único nesse sentido. E 51 anos de relacionamento é significativo. Assim eu não acho que seria sincero não reconhecer que ele teve um papel na vida dela. E há algumas entrevistas muito interessantes em que Sartre diz que Beauvoir era a sua crítica mais importante. Ele reconheceu a importância intelectual dela, mas as pessoas não ouviram. Ele tinha muitas falhas, mas de fato reconheceu a contribuição de Beauvoir. 

Para muitas mulheres continua a ser o caso de os seus relacionamentos com homens serem muito gratificantes em termos emocionais, intelectuais e sexuais. Eu penso que já em 1949 Beauvoir se preocupava com o fato de que certas formas de feminismo estavam separando os sexos de um modo que ela considerava antiético. Assim eu acho que se trata de algo ambivalente. Há momentos em que ele definitivamente não era bom para ela. Mas há outros em que ele a ajudava a acreditar em si mesma. 

O ideal seria que, em vez de ignorarmos o papel que ele teve na vida dela, disséssemos que um teve importância na vida do outro? 

Sim. E no caso de Rimbaud e Verlaine, um casal homossexual da história da literatura francesa, não parece difícil reconhecer que o relacionamento funcionava em diferentes níveis. Então, eu acho que nós precisamos melhorar nossas representações de relacionamentos entre homens e mulheres.

Nas cartas que vieram a público, podemos perceber que Sartre não era a parte romântica mais importante de sua vida, mas também não parece suficiente dizer que era somente uma relação intelectual. 

O que achei muito interessante ao escrever essa biografia é que, em inglês, nós às vezes fazemos uma distinção entre amor paternal e maternal e amor erótico. Mas o amor que diz respeito a amizades não é celebrado o suficiente. Eu acho que o amor de amizade entre mulheres é mais celebrado. Mas não parece que o amor de uma amizade entre homem e mulher receba a mesma atenção. Em francês há diversas palavras para amor e para amizade. Eu acho que eles tinham uma amitié intellectuelle, uma amizade intelectual, uma forma genuína de amor. Um dos problemas que Beauvoir discutiu em O segundo sexo era que o amor era apresentado às mulheres como seu destino, sua vocação. Mas era um tipo de amor erótico e maternal, e não o amor em que há reconhecimento recíproco dos projetos que se tem para a vida, ou o amor de uma amizade em que você encontra apoio e é valorizada. Eu me sinto confortável em chamar de amor o que Sartre e Beauvoir tinham, mas não em um sentido erótico ou vulgar. 

Quem escreveu esse texto

Mariana Schiller

É crítica literária e mestre em planejamento urbano pela Bartlett School of Planning, em Londres.