Livro e Leitura,

A fantástica fábrica de censurar livros

Mudanças em trechos de livros de Roald Dahl colocam o jovem leitor numa redoma de pureza e camuflam questões importantes

03mar2023

Elena Velasco tem onze anos, vive na Colômbia e, dias depois da notícia de que os livros de Roald Dahl seriam reeditados eliminando palavras como “feio”, “gordo” e “louco”, escreveu uma carta-protesto, publicada na página do Instagram do Espantapájaros, projeto cultural de formação de leitores dirigido pela escritora Yolanda Reyes, em Bogotá. Nas palavras de Elena, esse tipo de “correção” não faz sentido: “Seus livros são o que são por sua linguagem e por seu modo de narrar […]. Ainda que poucas, as alterações vão acabar mudando o sentido das histórias”, diz a carta dirigida aos editores da Puffin Books, o selo infantil da Penguin.

Nem tão poucas assim são as trocas em trechos que os editores consideram ofensivos — num tweet indignado, Suzanne Nossel, CEO da PEN America, ONG de defesa à liberdade de expressão, disse estar alarmada com as notícias sobre centenas de mudanças nos textos do autor. Alvos de críticas ferozes, editores e responsáveis pelo espólio de Dahl acharam por bem voltar atrás, ou quase — uma semana depois da gritaria geral, anunciaram que serão oferecidas duas versões dos livros do autor: a original, pela Penguin e a adaptada, pela Puffin. Caberá aos leitores, aos pais ou a quem media o acesso ao livro escolher qual edição irá para a estante.

Entre as recordações da infância do meu filho, encontro o exemplar de O BGA: o bom gigante amigo, com as anotações dele para o trabalho de escola: “Ele cria sonhos e é o único dos gigantes que é bom! Os outros comem seres humanos e é muito engraçado porque eles dizem que os gregos têm gosto de azeite e os esquimós são geladinhos como um picolé”. Associando os preconceitos aos gigantes que devoravam humanos, ele se divertiu, envolvido pela aventura, e experimentou a melhor forma de criar laços eternos com a literatura. Diferente da premissa que tenta justificar as alterações feitas pela Puffin — a de “garantir que as maravilhosas histórias e personagens continuem sendo apreciadas” —, jovens leitores deveriam ser levados a pensar com autonomia e a ler criticamente o que, no passado, pode ter sido aceitável e já não é, entendendo obras clássicas a partir das contradições de cada período histórico. É verdade que Dahl, morto em 1990, nunca fez segredo de suas posições antissemitas, mas atualizar seus livros removendo palavras ou trechos que remetam à violência ou ao preconceito por termos mais palatáveis ao gosto do século 21 é mero disfarce para censurar o que deveria ser contextualizado.

Visão crítica

Livros nos transportam para outras épocas, com enredos nem sempre felizes, tecidos por palavras nem sempre doces. Mas, diferente do que acontece com a literatura para crianças e jovens, parece impensável substituir expressões duvidosas na obra de Machado de Assis, ou mesmo disfarçar os preconceitos que permeiam os livros de Nelson Rodrigues. Tantas vezes tratada como um gênero “menor”, a literatura infantojuvenil costuma ser adjetivada por diminutivos — historinhas adocicadas, que não deveriam provocar desconfortos e questionamentos. Ao camuflar questões importantes, escondendo, por exemplo, o racismo nos livros de Monteiro Lobato e Mark Twain ou as transgressões na linguagem de Roald Dahl, as adaptações “sensíveis” falsificam as obras e as ideias vigentes no tempo desses autores, desperdiçando a chance de despertar nos jovens leitores uma visão crítica sobre escritores e temas do passado.

Quem escreveu esse texto

Silvana Tavano

Escritora e professora, é autora de Sonhozzz (Salamandra) e O último sábado de julho amanhece quieto (Autêntica).