Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Nós contra eles, sim

A próxima eleição se divide entre nós, adversários que respeitamos a lei, e eles, inimigos da democracia

08set2022 | Edição #61

Adversário é quem joga o mesmo jogo do lado contrário. Inimigo, quem está contra o jogo. Os da pior espécie fingem que jogam para acabar com a brincadeira de dentro.

Diante de um inimigo, é preciso fazer prevalecer o espírito de adversário. E aí os contrários devem se unir pela derrota de quem ameaça o jogo.

A briga não é fácil. Antes de mais nada, preservar um jogo é preciso agir estritamente dentro de suas regras – aquelas que o inimigo corrói em cada lance sujo.

Adversários, por sua vez, não esquecem suas diferenças da noite para o dia: são elas que os ajudam a se definir para si mesmos e em relação ao mundo. 

William Hazlitt, o grande ensaísta inglês, lembra o “princípio da hostilidade” que rege as relações. Não é estranho ao humano reagir às “antipatias” do mundo, escreve ele em “Sobre o prazer de odiar”. “A vida se tornaria uma poça estagnada”, observa Hazlitt, “não fosse estremecida pelos interesses gritantes e paixões desregradas dos homens”.

Há mais de 20 anos, desaconselhei Armando Freitas Filho a responder, por escrito, a um eterno adversário numa dessas infinitas rinhas de poetas. Ainda não havia redes sociais (menines, eu vi) e o ataque daria um trabalhão. Mas Armando me ensinou a vantagem de se manter sempre atento ao adversário: “Emagrece”.

Tanto faz escolher o adversário ou ser por ele escolhido. Mas é melhor não ser eleito à revelia pelo inimigo.

Eleição é jogo entre adversários. É resultado de uma geometria dinâmica de posições contrárias, combinadas e recombinadas ao sabor do debate e conforme o estabelecido por regras, pela lei. 

Numa eleição livre, não há lugar para inimigos.

Garantir a lisura de uma votação é assegurar o direito de enfrentamento entre adversários. Aquele que inventa inimigos é o inimigo do jogo, da própria democracia.

O adversário vira inimigo a partir do momento em que, incerto da vitória, deixa claro que não aceitará a derrota.

Pois inimigo só se satisfaz com o aniquilamento do contendor, uma vez que a destruição é o seu único horizonte.

O desprezo pelo outro, razão de ser do inimigo, é, bem sabemos, uma extensão lógica do desprezo por si próprio.

Em seu pacifismo radical, Simone Weil defendia que, ao subjugar alguém pela força, destituí-lo de sua humanidade, o dominador também perde o que lhe define como humano. 

Na chave da violência e da força, não há vitória possível.

Weil entendia, no entanto, que com inimigo não tem conversa – por isso alistou-se na Espanha para lutar contra Franco e, mesmo com a saúde frágil, atuou na resistência contra o nazismo.

No Brasil, o que está em jogo nas eleições é o direito ao adversário. Um direito que só pode ser assegurado por meio do voto, pela derrota inequívoca do inimigo

No Brasil, o que está em jogo nas eleições do próximo 2 de outubro é o direito ao adversário. Um direito que só pode ser assegurado por meio do voto, pela derrota inequívoca do inimigo. 

A suspeição infundada sobre as urnas eletrônicas, a desfaçatez da mentira institucional, a distribuição de armas e dinheiro, o fundamentalismo neopentecostal e o conluio entre redes de corrupção e árbitros viciados não deixam dúvida aos adversários que, mesmo diferentes, todos têm um inimigo em comum.

Se a vaidade e o oportunismo impedem a união agora, antes tarde do que ainda mais tarde: num segundo turno seremos nós contra eles. Nós que respeitamos a lei, contra eles, os delinquentes.

Se, como me disse o poeta, o adversário emagrece, o inimigo mata. 

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #61 em julho de 2022.