Ficção,

Um Natal para aquecer a nossa economia!

O pai, o cara que mandava em tudo, estava contente pacas por fazer toda a família contente com o dinheiro que Jesus deu pra ele

01dez2019

Tinha chegado o final do ano, ia ter as férias das crianças e dos adolescentes, a mãe queria pegar um sol pra queimar umas perebas que estavam se espalhando por todo o corpo dela, a avó queria comer um camarão com catupiry que tinha lá naquele restaurante, que tinha lá na praia, queria comer camarão de tudo quanto é jeito, todo dia, um monte de camarão, ela só pensava nisso, e o pai, que era o chefe da família, o cara que mandava em tudo, estava contente paca por fazer toda a família contente com o dinheiro que Jesus deu pra ele como recompensa por ele sempre investir dez por cento de todo o dinheiro que ganha em títulos do Reino de Jesus, que é um investimento de alta rentabilidade, cujo retorno garantido garante o Natal da família na praia e todas as coisas que a família vai comprar neste Natal, todas as coisas que a família vai consumir, sem parar, o tempo todo, estimulando o crescimento econômico e a geração de empregos no país deles, que ia ser o maior país do mundo. Só o avô não estava contente, porque sofria muito, porque já estava velho, nada no corpo dele funcionava direito, ele já estava de saco cheio da vida e daquela família que só enche o saco e, ainda por cima, sabia que não ia durar muito, que ia morrer, e ele não acreditava em Deus, Jesus, vida após a morte, nada desses troços, além de ter plena consciência de que a vida dele não teve nada de tão interessante, nada de relevante e que, pensando bem, tanto fazia ter vivido uma vida ou não.

Lá na praia, antes de sair para ir à praia comer espetinho de camarão e beber cerveja e, depois, ir àquele restaurante em frente à praia para a avó comer camarão com catupiry e o pai comer picanha com alho e a mãe beber caipirinha de kiwi, a mãe ficou mostrando, para o pai, um monte de maiô que ela tinha comprado para ir à praia. O pai falava “tá ótimo” para todos os maiôs que a mãe mostrava, mas, óbvio, o pai achava a mãe, a mulher dele, que só enche o saco, meio fora de forma, meio baranga, e sabia que não havia maiô neste mundo que pudesse tornar a mãe dos filhos dele uma mulher atraente, com aquela pele péssima. O pai olhava para as perebas, todas lambuzadas de pomada antisséptica, que se espalhavam pelo corpo da mãe, misturadas com as picadas de borrachudos e pernilongos que se misturavam às perebas, e agradeceu a Jesus por sua mulher, que só enche o saco, a mãe, com aquelas perebas e aquele corpo fora de forma, nunca mais ter dado o menor sinal de que desejava fazer sexo com ele, o pai, que tinha uma barriga enorme e dura, assim, e um bafo de picanha com alho, que ele, o investidor de Jesus Cristo, exalava pela boca, o tempo todo.

Um dos adolescentes, sobrinho da mãe e do pai, neto da avó e do avô, era meio esquisitão, tinha uma barbichinha, todo magrelinho, ia fazer vestibular para filosofia e ficava o tempo todo jogando xadrez no celular e lendo — Nietzsche, essas porra — e pensando muito sobre a morte, sobre Deus e lendo a Bíblia sob uma perspectiva filosófica, que desenvolveu nele um afeto profundo por Jesus Cristo. O adolescente esquisitão, na verdade, amava Jesus Cristo! De verdade! Claro, o adolescente, que lia Nietzsche, essas porra, era inteligente e culto demais para acreditar em dogmas religiosos, como a virgindade de Maria ou a Santa Trindade. Esse primo meio devagar, que tinha fobia dos outros adolescentes, lá, dando aquelas risadas, se identificou apaixonadamente com o amor ao próximo, o desapego material, a modéstia, o perdão, a proteção de Jesus aos mais frágeis. O carinha da barbichinha considerava “O Sermão da Montanha”, em Mateus, o texto filosófico mais revolucionário que havia lido. A família toda ia à praia, e ao restaurante, comer e beber uns negócios, e o barbichinha ficava trancado na casa de praia, jogando xadrez no celular e amando Jesus Cristo, comovido com o olhar miserável do avô que ia morrer.

Os primos do primo esquisitão, filhos e sobrinhos do barrigudão que investia no Reino de Jesus Cristo, nunca tinham ouvido falar em “Sermão da Montanha”, amor ao próximo, desapego material, modéstia, perdão, esses troços. Então, já que amanhã é Natal, a família, que só enche o saco, os netos do avô deprimido, que despertava compaixão no neto esquisitinho, iam sair por aí, sei lá, dando umas risadas, bebendo uns negócios, as primas dando uns gritinhos, os primos vomitando uns negócios, dando umas risadas. Mas graças a Deus que os moleques têm a proteção eterna do capital gerido pelo Senhor Jesus, já que o pai de hálito podre tinha aberto um débito automático para investir mensalmente no império financeiro comandado pelo Senhor Jesus, sempre lá, no Paraíso, nadando na piscina de dinheiro dele, fumando charuto, enviando comandos diretos, berrados, em transmissão multimídia para sua rede de bispos e pastores ateus, cuja fé racional indicava claramente que a coisa de que Jesus mais gosta, que Deus mais gosta, é dinheiro: “Me dá dinheiro! Eu quero dinheiro! Mais dinheiro!”. Se não fosse isso, os moleques poderiam acabar se
envolvendo com drogas.

E o da barbicha em casa, na casa que o tio dele alugou com dinheiro que Jesus Cristo deu, trancado no quarto, com medo de ir até a sala e dar de cara com aquela cara de quem vai morrer do avô, com a cara da avó mastigando algum daqueles troços que ela fica mastigando, com um amendoim dentro. E as crianças de férias, lá, promovendo o crescimento econômico do país deles e gerando empregos ao consumirem todas aquelas coisas, aqueles croc-chips-bits-burgers, ao comer aqueles troços todos com um amendoim dentro, com sabor de camarão.

Na noite de Natal, o pai, com bafo de picanha com alho, ficou meio nervoso com a mãe, que pegou sol demais, que estava descascando e tinha umas bolhas e as perebas e a pomada e o hidratante, tudo melecado, e não botava ordem nessas crianças, que vomitaram a casa toda, entupiram todas as privadas da casa da praia e que ele é que tinha o trabalho todo de investir no Reino de Jesus e arrumar um dinheiro pra essa cambada poder passar o Natal na praia, porra!

O adolescente que tinha um afeto filosófico profundo por Jesus Cristo, olhando as estrelas do céu lá da praia, pensou em Jesus bebezinho nascendo, pensou no amor de Nossa Senhora, pensou em Jesus no calvário, aqueles caras, lá, batendo nele, dando aquelas risadas.

Quem escreveu esse texto

André Sant’Anna

Escritor e roteirista, é autor de O Brasil é bom (Companhia das Letras).