Educação,

Para gastar o latim

Em escola na Itália, a língua da Roma antiga não é só matéria de estudo, mas instrumento da vida cotidiana

01jun2020

Sebastian vem de Civitates Foederatae Americae Septentrionalis, os Estados Unidos da América. No próximo ano, irá para Princeton, mas ainda não decidiu as disciplinas que vai cursar. Am Dong, um sinensi (chinês), pede para ser chamado de Serenus por ser esta a tradução do seu nome. Hemerson vem de Pernambuco. Eles conversam e fazem brincadeiras no pátio cheio de afrescos da Villa Falconieri, em Frascati — a quase 23 quilômetros de Roma —, como fazem todos os jovens de dezoito anos que vivem no colégio. Mas esse grupo de rapazes é único: eles conversam em latim.

Para os alunos da Academia Vivarium Novum, a língua da Roma antiga não é só matéria de estudo, mas instrumento da vida cotidiana. O dia começa às oito horas da manhã com poemas cantados de Horácio ou Catulo e termina às nove da noite, ou às onze e meia com uma peça de teatro. Ao longo desse período, entre as aulas de língua e de gramática, de história e de filosofia, de métrica e de música, e também nas horas de estudo e lazer, durante as refeições, a única língua falada é o latim. A língua também é usada nas aulas de grego antigo, em textos com base na oralidade do idioma idealizados em Oxford e nas odes musicadas pelo húngaro Eusebio Tóth para o coro da escola chamado Tyrtarìon. “O nome é uma homenagem a dois grandes poetas gregos: Tirteo, que escrevia cânticos de guerra para os espartanos, e Aríone, poeta da paz que foi salvo de afogamento por um golfinho”, explica.

As regras da escola são severas: só se ouve música clássica; é proibido fumar e ingerir bebidas alcoólicas; celular apenas em caso de necessidade. As ocasiões para sair diminuíram drasticamente por causa do coronavírus. Poucos estudantes pediram para voltar para casa no fim de fevereiro, quando a epidemia explodiu no norte da Itália. Para os alunos que permaneceram em Frascati, a vida continuou com poucas diferenças. A vila não está mais aberta ao público no fim de semana, e as aulas e conferências de professores convidados acontecem apenas pela internet. Mas cursos, atividades e aulas não foram reduzidos. E o latim continua como a única língua em comum. Os jovens vêm de todas as partes do mundo: da Áustria à Austrália, do Tibete ao Brasil.

Os horizontes se expandem: “O que mais gosto daqui é a possibilidade de fazer amigos de todo o mundo”, conta Rosa, aluna de uma escola de Moscou que todos os anos leva estudantes para estágios de imersão total. “Entre nós existe uma grande familiaridade”, confirma Aanandavardhan, que chegou do Nepal sem saber uma palavra de latim e ainda não sabe o que fará no futuro. “Nescio” [não sei], responde laconicamente em italiano, pronunciando “neskio”. A escola reúne assim todas as pronúncias do latim, tanto a do científico quanto a da Igreja, incluindo a de países do Oriente onde se diz “neszio”.

Não há fronteiras nem limites políticos, religiosos ou econômicos nesse campus mundial do humanismo: todos os jovens recebem uma bolsa de estudos que cobre todas as despesas, das aulas aos livros, da comida ao alojamento. “O estudo do latim não deve ser um luxo”, explica Luigi Miraglia, o fundador e a alma do projeto, que lembra com satisfação que entre os seus ex-alunos jovens já houve menores de idade saídos do sistema penal de Nápoles que se formaram e um refugiado do Maláui, que agora faz doutorado no estado de Kentucky, nos EUA. 

“Os jovens migrantes vêm sempre atrás de estudos práticos, mas potencialidades importantes acabam se perdendo”, acrescenta. Foi o risco que correu Duilio, um albanês de 24 anos amante de filosofia, que chegou a Gênova, onde teve de interromper seus estudos para trabalhar. Procurando na internet um texto de Sêneca, descobriu “um lugar que não pensava que pudesse existir no mundo real”: faz três anos que ele mora lá.

Para falar latim

A ideia de criar uma ilha de latinistas nasceu em uma ilha de verdade: Vivara, um local desabitado no golfo de Nápoles onde, nos anos 1970, desembarcou o ecologista Giorgio Punzo, que organizava passeios para colocar jovens em contato com a natureza. “Eu estava no ensino fundamental, estudava grego e latim de modo apático e com dificuldade”, recorda Miraglia. “Um dia levei para a ilha uma versão de Tácito que não conseguia ler. Punzo me pediu o livro e leu um trecho para mim, traduzindo-o sem se preocupar com a construção gramatical e sem usar um dicionário. Punzo me explicou que para ele o latim era uma língua falada: foi assim que tinha aprendido no seminário jesuíta que frequentara antes da guerra. Eu pedi que me ensinasse e logo me convenceu de que o método de ensino tradicional estava errado, porque apresentava a língua como um cadáver esquartejado.”

A instituição nasceu tendo como base formas de ensino antigas e experimentos pedagógicos mais modernos: tanto o método do dinamarquês Hans Henning Ørberg para falar em latim quanto o do norte-americano John Rassias para as línguas modernas. Isso resulta em “um sistema de ensino que será muito útil para mim no futuro, não importa o tema que eu venha a ensinar”, assegura a estudante russa Caterina. Pedro, brasileiro de São Paulo, conta: “Eu me apaixonei pelo método de Ørberg enquanto estudava latim e grego na Universidade Columbia, em Nova York. No futuro, pretendo ensinar as línguas clássicas seguindo esse método que desenvolvi ainda mais na Academia”.

O sonho da comunidade que fala latim se concretiza apoiando-se em uma outra utopia que acontecia nesse mesmo período: o relançamento de obras de filósofos antigos e modernos em Nápoles pelo Instituto para Estudos Filosóficos do advogado Gerardo Marotta, com quem Miraglia colaborou por 35 anos. A experiência e o apoio de Marotta, assim como o de Giovanni Pugliese Carratelli, que foi diretor do Instituto, foram essenciais para realizar o projeto de Miraglia. Depois de uma série de convênios e seminários nos anos 1980, a escola deu os primeiros passos em 1995, em Montella, na Campânia. Mas foi apenas em 2016 que o colégio encontrou um lar definitivo em Frascati. “A Academia Vivarium Novum”, explica Miraglia, “toma o seu nome do monastério medieval onde Flavio Magno Aurélio Cassiodoro se dedicou a copiar os textos clássicos, aquele ‘viveiro para a criação’ de livros que salvou a cultura europeia. Mas é também uma homenagem à minha experiência em Vivara.”

Os quartos da Villa Falconieri podem hospedar até cem pessoas. Ficam lotados durante os cursos imersivos de verão. “Temos alunos na faixa dos onze aos oitenta anos”, conta Miraglia. As inscrições cobrem cerca de um terço das despesas da instituição. Outro terço vem da editora Vivarium, que publica textos do método Ørberg que quase todas as escolas de estudos clássicos usam no início dos cursos. O resto das despesas é coberto por doações privadas e, sobretudo, pelo Estado italiano. Agora com uma sede definitiva, espera-se que seja construído um prédio para um alojamento feminino. Até o momento o colégio é voltado para o público masculino. 

Quem sai da Academia pode se inscrever no segundo ano de letras clássicas em Oxford ou em outras universidades que colaboram com a Vivarium Novum, mas as instituições italianas não reconhecem oficialmente a escola. Nem mesmo na Universidade Tor Vergata, cuja sede, em Villa Mondragone, fica a oito minutos a pé da Vivarium. Assim, para os poucos estudantes italianos, é bastante tentador se unir a uma “fuga de cérebros”. 

Língua viva

Se as universidades italianas ignoram a Vivarium Novum, as escolas, pelo contrário, estão sempre interessadas em fazer com que seus alunos sintam o gostinho dessa experiência. O De Sanctis de Roma fez uma parceria com o curador da companhia teatral da Academia, o mexicano Gerardo Guzman, para organizar um espetáculo em grego. Há também alunos que escolhem fazer uma espécie de intercâmbio. Foi o que aconteceu com Luca, que chegou de Milão em 2018 e ficou na Vivarium — neste ano fará provas como aluno externo. Ele veio da área de biológicas, não sabia nada de grego e ama a matemática. Agora ele lê na tela do computador um texto em grego antigo de Arquimedes, dos anos 1500, sem usar dicionário.

O pouco entusiasmo das universidades italianas pela Vivarium Novum esconde uma desconfiança em relação ao latim falado, que é visto com estranhamento. “Essa desconfiança tem razão de ser”, acrescenta Miraglia, “por culpa das tentativas quixotescas dos anos 1950 de tratar o latim como uma língua viva. Claro que não é mais uma língua viva; o latim escrito se afastou do falado já nos tempos de Cícero, Horácio e Virgílio.”

O latim que se aprende em Frascati não pretende concorrer com as línguas modernas, mas procura dar subsídios para as pessoas lerem e compreenderem os textos mais diversos sem precisar usar o dicionário. Há o sonho de “encontrar os fundamentos comuns entre culturas diferentes que possam criar a paz universal e transformar o globalismo mercantil em um cosmopolitismo que reúna toda a grandeza e beleza que as culturas trouxeram à natureza humana”. Miraglia consegue condensar esse ideal em projetos concretos: a candidatura do latim e do grego como “patrimônio imaterial da humanidade” na Unesco, a criação de um “Fundo Mundial para o Renascimento das Humanidades” e o projeto de um centro de estudos sobre essas culturas.

O currículo da Vivarium compreende os clássicos da Roma antiga e os de Copérnico e Galileu, Spinoza e Leibniz. “É uma experiência que faz a gente conhecer modelos interessantes que também servem para lugares fora da Europa”, sustenta Allain, que vem da República Democrática do Congo. Não por acaso, a Vivarium Novum colabora com a chinesa Academia Neoconfuciana Wenli, perto de Wenzhou, dedicada à construção de uma cultura que reúna o melhor de todas as culturas, não só da China, mas também da Índia e do Ocidente.

Os “nerds do humanismo” que trabalham na escola acabam levando uma existência quase monástica, uma vez que não recebem salários, mas apenas comida, alojamento e reembolso para outras despesas. Os professores são ex-alunos: Ignacio Armella vem da Cidade do México, Claeys Bouuaert é belga. O brasileiro Carlos do Nascimento está se especializando em musicologia na Universidade de Bolonha e explica a sua paixão pela Academia de Frascati: 

“Da mesma forma que ter um conhecimento profundo do instrumento é crucial para um violinista compreender como se inserir em uma orquestra, acontece o mesmo com a gente: sem um verdadeiro conhecimento sobre nós mesmos não podemos atingir a harmonia interior, fundamental para o funcionamento da imensa ‘machina mundi’ da qual fazemos parte. Essa foi a lição mais importante que aprendi aqui. Sou profundamente grato a todos e continuarei a colaborar com a Academia da melhor maneira possível para que outras pessoas possam ter a experiência da beleza desse trabalho”.

A maior parte dos ex-alunos encontra um futuro nas universidades espalhadas pelo mundo: de Valência, na Espanha, até Moscou, passando pelo Trinity College de Cambridge. A mexicana Sandra Olguin tornou-se escritora, mas os dois meses que passou na Vivarium em 2013 mudaram sua vida: “Não sabia uma palavra de latim e lá aprendi a ler Cícero, Sêneca, Virgílio. A beleza das ideias deles, aliada à complexidade da estrutura linguística, me ensinou a escrever melhor. Para mim agora as palavras não são só instrumentos para contar uma história, mas obras de arte que encerram inúmeros significados. E mais, foi na Vivarium que encontrei o meu marido!”. Agora ela vive na cidade italiana de Anversa, mas o seu primeiro romance é uma Odisseia transportada para o México.

A China é um país que precisa de pessoas que leiam latim. “A história chinesa possui duas fontes”, explica Miraglia. “Os documentos sobre as relações de Estado, que estão em chinês e eram controlados pelo governo, e os dos missionários jesuítas, que estão em latim. Aqui em Roma existem milhares e milhares de páginas esperando para ser estudadas.” Até mesmo o caminho para a conquista de Marte cruza com o estudo do latim: os eua esperam encontrar nos textos sobre a construção de aquedutos do engenheiro e senador romano Sexto Júlio Frontino ideias para levar o homem ao Planeta Vermelho. (Tradução de Paula Carvalho)

Quem escreveu esse texto

Angiola Codacci-Pisanelli

É editora de cultura do jornal italiano L'Espresso.