Direito,

Um cordão de mulheres

Caso da menina de 10 anos uniu ativistas e a sociedade para reivindicar o direito ao aborto legal

11set2020

Falar de interrupção da gravidez no Brasil hoje é uma tarefa perigosa: a violência e o dano à reputação espreitam todos os que ousam tocar no tema. Não importa se o caso em questão é o de uma menina de dez anos, que engravidou após anos de estupro, sendo este uma das poucas hipóteses de aborto reconhecidas pela lei, prevista no Código Penal e oferecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Não há segurança nem mesmo para defender em um debate acadêmico o cumprimento dessa legislação.

Os riscos deste debate não permitem que acadêmicas como nós, com suposta liberdade de cátedra, pagas para pesquisar e conhecer, possamos assinar um artigo como este sem temer por nossos empregos e carreiras. Com este texto, clamamos por voz e liberdade para as mulheres, pesquisadoras e professoras, que experimentam ou testemunham restrições ao direito à liberdade de cátedra e acadêmica, por trabalharem em instituições que recomendam o silêncio e/ou proíbem o debate público em torno de determinados temas. 

O périplo trágico dessa criança em busca da garantia de seu direito reprodutivo ilustra uma realidade mais ampla: as violências sofridas por quem precisa realizar um aborto legal no Brasil e o problema estrutural da falta de compromisso sistêmico do Estado e das instituições de saúde com as regras jurídicas, administrativas e de ética médica relacionadas ao aborto legal. 

A menina descobriu a gestação de cinco meses ao se consultar no setor de pediatria do hospital de São Mateus (ES), onde mora, depois de sentir dores abdominais. Estuprada desde os seis anos por um tio de 33, a criança optou, junto com sua avó, pelo aborto legal, previsto no artigo 128 do Código Penal Brasileiro desde 1940. Esse dispositivo isenta o médico de responsabilidade penal pela interrupção de gravidez resultante de estupro, desde que o procedimento seja consentido pela gestante ou, quando incapaz, por seu representante legal.

Há oitenta anos, portanto, o aborto em caso de estupro é um direito da gestante, seja para a garantia da honra da mulher estuprada, como se pensava à época da publicação do Código Penal, seja como direito reprodutivo, como o reconhecemos hoje.

A lei penal também permite o aborto quando não há outro meio de salvar a vida da gestante. Em 2012, essa interpretação foi ampliada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), passando a incluir a possibilidade de interrupção da gravidez de fetos anencéfalos. De resto, o autoaborto e aquele realizado por terceiros são considerados, no país, crimes dolosos contra a vida. 

O aborto legal é parte do direito constitucional à saúde e deve ser garantido por meio de uma política ampla, que não só trate das consequências resultantes da violência sexual, mas também provenha a interrupção da gravidez de maneira multidisciplinar e humanizada. 

O Ministério da Saúde vinha dando ao aborto legal o devido tratamento de questão de saúde pública. Segundo as normas técnicas vigentes até fins de agosto, a mulher deveria ser atendida por uma rede integrada, que a acolhesse sem julgamento e respondesse às suas necessidades físicas e de saúde mental, com atenção clínica adequada, de acordo com referenciais éticos, legais e bioéticos. Entendia-se não serem necessárias nem a realização de boletim de ocorrência nem a produção de provas para que esse direito fosse concretizado, dando pleno crédito à palavra da vítima. 

A partir de 27 de agosto, no entanto, a portaria nº 2.282/2020, do Ministério da Saúde, modificou drasticamente essa prática. Passou-se a exigir, entre outros constrangimentos, um relato circunstanciado da gestante perante dois profissionais do serviço de saúde e a notificação do estupro à autoridade policial. A equipe médica também passou a ter o dever de mencionar à gestante a “possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia”. 

Uma norma técnica anterior, de 2012, intitulada “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes”, era explícita em afirmar que o “objetivo do serviço de saúde é garantir o exercício do direito à saúde, portanto não cabe ao profissional de saúde duvidar da palavra da vítima, o que agravaria ainda mais as consequências da violência sofrida. Seus procedimentos não devem ser confundidos com os procedimentos reservados a Polícia ou Justiça”. A portaria de 27 de agosto dá novo sentido ao serviço de saúde, que passa a atuar como órgão inquisidor. O que antes era tratado nas chaves da saúde e do cuidado passou a ser tratado nas chaves da vigilância e da coerção. 

Com seu arsenal de constrangimentos, a portaria acaba, na prática, por impedir o direito ao aborto legal para mulheres e meninas. Isto é especialmente relevante para casos que envolvem violência sexual, como o da criança de São Mateus. Mesmo tendo procurado o serviço de saúde para realizar o aborto legal antes da publicação portaria nº 2.282/2020, e tendo conseguido, em poucos dias, autorização judicial para a realização do procedimento, a pedido da promotoria da infância e juventude local a menina precisou percorrer mais de 1.600 quilômetros para ter o seu direito respeitado. 

O Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes, em Vitória, ligado à Universidade Federal do Espírito Santo, não autorizou a realização do procedimento, alegando que o caso seria "arriscado", por estar fora dos critérios do Ministério da Saúde para abortamento (o tempo gestacional estava no limite indicado pelo documento, e o peso do feto, um pouco acima do limite). Tais critérios, no entanto, são apenas indicações, uma vez que é amplamente reconhecido na doutrina médica que o aborto induzido em hospitais é mais seguro do que o parto, mesmo nas idades gestacionais mais avançadas. A Secretaria de Saúde estadual passou a buscar alternativas e, após outra negativa, do Hospital das Clínicas de Uberlândia (MG), conseguiu acolhimento no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (CISAM), ligado à Universidade Federal de Pernambuco, referência no atendimento de mulheres vítimas de violência sexual. 

A recusa dos hospitais e o aceite do CISAM chamam a atenção para outra questão que merece ser debatida, a objeção de consciência — evocada por médicos para não praticar ou participar de procedimentos e tratamentos que vão contra as suas crenças e convicções. Segundo o Código de Ética Médica, o médico “exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente”. 

O Hospital Universitário do Espírito Santo simplesmente se negou a praticar o procedimento obstétrico na criança e não a encaminhou a outro que o fizesse, violando o direito dela à saúde. Ainda que a objeção de consciência seja um direito dos médicos, a lei estabelece condições claras para o seu exercício. Feita por ginecologistas e obstetras, que escolheram como especialidade cuidar da saúde de meninas, adolescentes e mulheres adultas, a objeção de consciência parece-nos ainda mais grave, uma vez que, sabemos, o aborto é um fato da vida reprodutiva das mulheres. 

Dez longos dias após a descoberta da gravidez, o aborto da criança de dez anos foi, finalmente, realizado pelo dr. Olímpio Moraes, diretor do hospital. Ele foi excomungado em 2009 pela Igreja Católica quando garantiu que uma criança de nove anos exercesse o seu direito à interrupção de uma gestação de gêmeos, também fruto de estupro, cometido por seu padrasto. Desta vez, o presidente da Confederação Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB) afirmou publicamente que o dr. Moraes cometeu um crime hediondo ao garantir à paciente a realização do aborto legal. 

Na frente do hospital, em Recife, um grupo de militantes cristãos protestava contra a interrupção da gestação. A menina, assustada, vinha de longe, acompanhada da avó, tendo uma bolsa a tiracolo com uma girafa e um sapinho de pelúcia. Na porta dos fundos, por onde entrou, ouviam-se os gritos do grupo, chamando-a de assassina em nome da proteção da vida.  

Mas de que vida? Em um Brasil que confunde as esferas pública e privada, onde as moralidades individuais pautam agentes e políticas públicas, uma criança estuprada tem a sua privacidade exposta, o seu nome divulgado em mídias sociais, a sua dignidade agredida e os seus direitos violados. Não bastam a dor e o trauma do estupro, a gestação fruto de abuso, o procedimento cirúrgico invasivo para sanar, ao menos no ventre, as consequências de tamanha violência. Bradam contra uma criança, vítima do tio — e possivelmente de dois tios e do avô —, mas vítima também de uma sociedade raivosa, que escancara a misoginia e o machismo estrutural que nos constituem como nação. Tornam uma menina de dez anos um ventre adulto, fazem de seu corpo um objeto de disputa política, silenciam o seu medo e a sua voz. 

Mas ela não está sozinha. Um cordão formado por militantes feministas se formou na frente do hospital, buscando conter o grupo de manifestantes. E esse cordão se expandiu para as redes sociais, para a mídia, para o debate público e o acadêmico. Somos parte desse cordão. 

Nós nos somamos aqui à luta pela revogação da violenta portaria nº 2.282/2020 do Ministério da Saúde. Estaremos sempre ao lado das mulheres. Assinamos anonimamente este texto, acadêmicas unidas em solidariedade às que não podem explicitar o seu nome neste debate, e à menina, cujo nome também omitimos como um dever. Nesse cordão anônimo, pedimos liberdade sobre nosso corpo e ideias e a garantia dos nossos direitos. 

Assinamos acadêmicas anônimas, que assim seguirão até que o Brasil republicano com o qual sonhamos seja realidade.