As Cidades e As Coisas,

Um milagre para quem?

Ditadura deixou legado de aversão à rua e ao coletivo, com efeitos do ‘progresso’ para poucos e problemas para todos

01mar2024

A linha contígua que conecta a região da Praça Roosevelt ao Largo Padre Péricles, na Barra Funda, rasga a paisagem. Elevada, é impossível passar despercebido pelos 3,4 km de via sobrepostos à Avenida São João. Nos últimos anos, a cidade de São Paulo foi palco de intensos debates sobre o destino do Minhocão, com propostas de transformação em parque, demolição ou manutenção exclusiva como via expressa. Para além de uma discussão sobre espaços públicos e mobilidade urbana, há uma dimensão menos evidente: estamos diante de um legado da ditadura que ainda assombra a capital paulista.

O nome oficial do elevado homenageava Costa e Silva, o segundo presidente da ditadura civil-militar. Mas a herança vai além do nome. O então prefeito Paulo Maluf, que decidiu pela construção da obra em 1969, havia sido justamente nomeado ao cargo executivo por Costa e Silva, em eleição indireta. São Paulo foi grande vitrine para o governo militar capitalizar sua imagem moderna; nesse período as empreiteiras brasileiras se tornaram gigantes construindo grandes obras públicas que incutiram a ideia de progresso. Por meio de intensa propaganda política do próprio governo, com slogans como “Este é um país que vai pra frente”, e das empresas que compravam páginas inteiras de jornais e revistas incorporando a construção do “Brasil Grande” em suas peças publicitárias, as mazelas da ditadura, como o boom das periferias e da desigualdade, parecem não ter existido.

No dia 23 de janeiro de 1971, o convite para a inauguração do elevado concluído estampava as páginas dos diferentes jornais, afirmando: “A obra, que é a maior do gênero em toda a América do Sul, eternizará em sua denominação uma das grandes figuras da Revolução de 1964”.

É premente perguntar o quanto no nosso espaço urbano é fruto da violência de Estado

A modernização foi conservadora: conciliou elites econômicas e sociais para moldar um regime com o compromisso de obstar qualquer ação que avançasse sobre privilégios historicamente construídos. Criou, por exemplo, o Banco Nacional de Habitação para financiar imóveis às classes médias sem a intenção de resolver o crescente déficit habitacional que criava periferias. A economia cresceu a taxas que chegaram a 10% ao ano entre 1969 e 1973 enquanto os salários estavam artificialmente congelados desde 1968. Trocando em miúdos, o bolo cresceu, mas não foi dividido, ao contrário do que defendia o então ministro da Fazenda, Delfim Netto.

Em São Paulo, obras rodoviárias soterraram o passado. A execução da ligação Leste-Oeste demoliu boa parte da Bela Vista a leste, historicamente ocupada pelas classes trabalhadoras negra e nordestina, mas causa menos espanto que o elevado Costa e Silva. Este chama mais a atenção por ter sido executado acima do nível da rua, atravessando janelas de apartamentos, nas barbas da rica Higienópolis, mas também em razão da intensa propaganda da prefeitura sobre a “maior obra de concreto armado da América Latina” ter sido construída em apenas catorze meses. A decisão pela via elevada mudou os planos de construção do metrô, mas manteve o mesmo traçado. Já a avenida 23 de Maio nunca viu o metrô de superfície em seu proposital generoso canteiro central, já que o trajeto mudou para o Jabaquara, onde amplas áreas estavam disponíveis para a iniciativa privada erigir novos edifícios com o moderno meio de transporte, símbolo do progresso, servindo aos compradores. A linha azul do metrô, a primeira, representa a discricionariedade do Estado a serviço do interesse do capital privado, uma característica da ditadura.

Garagem vertical

A remodelação da Praça Roosevelt, iniciada em 1968, transformou um espaço historicamente ocupado por manifestações, greves e festas populares numa anódina garagem vertical feita em concreto. A associação entre arquitetura, urbanismo e arbítrio esvaziou espaços públicos de sentidos e, principalmente, de pessoas, servindo idealmente ao Ato Institucional nº 5 que proibiu “atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política”. O AI-5 abriu caminho para a criação da Operação Bandeirante — a Oban, que depois se formalizou como Doi-Codi, um laboratório clandestino de segurança pública baseada em sequestro e tortura de qualquer opositor, a maioria desarmada. Com tranquilidade, as turmas de investigação do principal centro de repressão do país circulavam à paisana pela cidade com peruas c-14/Veraneio cedidas ao órgão pela iniciativa privada. Nelas, sequestrados pelo Estado eram conduzidos à sede na Rua Tutoia, 921, em alta velocidade pela recém-inaugurada 23 de Maio. Nesse edifício cercado de residências, há seis anos treze instituições universitárias e da sociedade batalham para a criação de um memorial, a fim de lembrar a todos os males da ditadura que perduram na democracia.

Dar visibilidade a histórias pouco conhecidas e muito representativas do que foi a ditadura não apenas no plano pessoal de quem foi torturado, mas no coletivo, por meio da apreensão do espaço urbano, tem sido a tarefa de pesquisadores ao levar a história para as ruas de cidades do Brasil, por meio de caminhadas e visitas críticas. Neste ano em que o Golpe de 1964 completa sessenta anos, é premente perguntar o quanto no nosso espaço urbano é fruto do legado da violência de Estado.

Existe uma estética da ditadura que legou à cidade a aversão à rua e ao coletivo — até o carnaval foi colocado no sambódromo. Compreender como as cidades foram reconstruídas no período sob a propaganda do progresso contribui para esclarecer como os efeitos marcantes do “milagre” foram para poucos e seus problemas, para todos. Como em toda ditadura. 

Quem escreveu esse texto

Deborah Neves

Historiadora e pesquisadora em patrimônio e ditadura, é coordenadora do GT Memorial Doi-Codi.