As Cidades e As Coisas, Ficção,

Um corpo em trânsito

Misto de ficção com relatos reais mostra a desigualdade nos trajetos cotidianos de empregadas domésticas

13maio2021


Das horas aos séculos, do tijolo ao mapa, da conversa fiada à história [Pedro Vitor Costa]

“Explorada a gente sempre é né? A gente trabalhava a vida inteira pra ganhar uma mixaria, não me lembro nem o nome do dinheiro. Dormia no emprego, ficava a semana toda. Depois que meu marido faleceu, tinha que voltar todo dia pra ficar com os filhos, saía às 3h da manhã e chegava 22h em casa.”

O celular desperta às 3h da manhã. Lucia desperta no primeiro alarme. Na cozinha, passa um café forte para descolar os olhos. Toma banho, se arruma e coloca tudo de que precisa na bolsa. Ainda sem sinal do sol, a vizinhança permanece num silêncio absoluto. O som das engrenagens da bicicleta rompe a quietude da madrugada. Lucia pedala hesitante, teme qualquer tipo de violência, tenta não pensar nos relatos de assalto e esse tipo de coisa. Pedala mais rápido para logo encontrar Rose. De alguma forma se sentem mais seguras. 

Próximo à rodoviária deixam a bicicleta na garagem de bicicletas do Fabinho, lá encontram outras amigas e juntas seguem para a rodoviária, com passos apressados para não pegar a fila tão grande. Não há jeito, as filas serpenteiam todo vão, os ônibus saem de vinte em vinte minutos e os ambulantes costuram as longas linhas. Os ônibus saem lotados. Lucia prefere esperar um ônibus em que possa ir sentada, afinal nunca se sabe ao certo quanto tempo passará nele. Durante essa espera, sempre encontra antigas amizades e faz outras tantas novas. Às 4h30 entra no ônibus, inicia sua viagem.


A rodoviária: Espaço de controle e desvio [Pedro Vitor Costa]

“Apesar de todo trabalho e sufoco, às vezes acho que o trajeto chega a ser mais cansativo que o trabalho em si.”

Lucia sempre busca um lugar próximo à janela. É melhor para recostar a cabeça e tirar um cochilo. Tira da bolsa a manta que a esquenta nas baixas temperaturas do ônibus a essa hora da manhã. Se ajeita em seu espaço para não incomodar o passageiro ao lado e observa a cidade mudar através do vidro. As padarias começam a levantar suas portas, as esquadrias de alumínio refletem os primeiros raios de sol, as ruas se espreguiçam. Lucia acompanha as construções passarem cada vez mais rápidas diante de seus olhos. Coloca o fone para escutar sua rádio preferida. As paisagens ganham trilha.

Assim que o ônibus adentra a rodovia surgem os grandes galpões espaçados entre si, os postos de gasolina, e o sono a vence. A viagem costuma durar entre uma hora e meia e duas horas. Uma média de quatro horas por dia entre idas e vindas. O trajeto entre casa e trabalho resume a experiência diária de Lucia no espaço público, uma experiência cotidiana de um corpo em trânsito.

São vinte horas semanais passadas à beira da janela. Oitenta horas mensais. Novecentos e sessenta horas por ano. Em trinta e cinco anos de trabalho, Lucia passou trinta e três mil e seiscentas horas no ônibus. Mil e quatrocentos dias. Quarenta e sete meses. Aproximadamente quatro anos, exatamente o tempo que levaria para realizar seu grande sonho de se graduar. Às 6h desperta e percebe que está na caótica e enfumaçada avenida Brasil, se preocupa com horário e espera chegar até 7h30 no trabalho.


Ônibus: O tempo em trânsito se converte em espacialidade cotidiana. Estar na cidade significa estar em trânsito [Pedro Vitor Costa]

“Se eu entrar num shopping pra passear, aí eu já acho que eu tenho uma mania de perseguição. Eu já penso que o segurança toda hora tá olhando, porque é negro, né? Já pensa que é bandido. Um dia eu fui no Shopping Leblon, tô sentada lá… Tava chovendo, aí sentei em frente a uma loja, aí veio um moço e ficou sentado (faz gesto de tempo passando). Eu pensei logo que ele estava vigiando o que eu ia fazer, o que eu ia falar. Aí eu não sei se é a minha mania de perseguição ou se é porque eu sou negra… Não sei.”

Às 9h da manhã, Lucia está voltando com Gucci do passeio diário. Ela leva o cachorro da família para passear entre o despertar de cada membro da família. Lucia precisa fazer e refazer a mesa de café da manhã, uma vez que os membros se levantam em horas diferentes. Se sente mal toda vez que se vê refletida no espelho da portaria, não se sente bem no uniforme branco. Pega o elevador de serviço, onde normalmente encontra as domésticas dos outros apartamentos, aproveita para papear antes de entrar apressada na cozinha estreita para preparar o café do caçula da família. Com a mesa reposta, aproveita para colocar as roupas na máquina e lavar a louça, entre uma atividade e outra se comunica com as amigas para saber se conseguirá encontrar alguma para retornarem para casa juntas.

“Na casa da minha patroa, se eu quisesse comer uma coisa diferente eu tinha que levar. Ela só comprava pra gente comer: ovo, arroz, feijão e músculo. Se quisesse comer um carré, eu tinha que levar de casa. Biscoito tinha que levar de casa. Na casa dela não comia nada, não podia comer nada. Um dia minha filha foi comigo, eu tinha que levar tudo, não podia pegar nada dela, aí a empregada foi pegar uma coxinha de frango e ela falou que quando pegar qualquer coisa tinha que falar com ela. Perguntar se poderia pegar, pedir permissão. É humilhação isso, é muita humilhação.”

O almoço começa a ser preparado. Lucia prepara primeiro a refeição dos patrões. Sua comida é separada da comida da casa, a patroa de Lucia sempre fez questão de deixar claro que não deve haver mistura entre o alimento dos patrões e dos empregados. Muitas vezes Lucia prefere não almoçar, por não ter tido tempo de separar sua comida ou por ver que a comida separada para ela foi apenas sobras e enlatados. Pensa que não almoçar também a faz sair mais cedo do trabalho. Às 12h coloca a mesa do almoço para a família e logo precisa recomeçar a lavar a louça.

“A gente trabalha o dia todo e nem um banho decente pode tomar. O banheiro é um ovo. O chuveiro fica em cima do vaso e molha tudo, o banho é de perna aberta ou sentada no vaso, né? A gente cansada, doida pra ir embora, ainda tem que secar o banheiro.”

Para sair às 16h, Lucia toma banho às 15h. O banheiro de serviço é o menor espaço da casa. Para economizar espaço o chuveiro é posicionado acima do vaso e não há pia ou espaço para se vestir. Lucia precisa retirar os objetos que são despejados no banheiro de serviço para, então, tomar banho. Se posiciona com as pernas abertas sobre o vaso e se escora no azulejo frio. A água é gelada pois o chuveiro nunca foi trocado após queimar. Não há janela. Lucia tenta ser a mais rápida que pode. Se veste, sem qualquer privacidade, na área de serviço e teme a entrada repentina de qualquer pessoa. Depois do banho, precisa secar todo banheiro e reposicionar os objetos descartados pela família.


O banheiro de serviço: O espaço como ferramenta de punição [Pedro Vitor Costa]

“Da história de Magé eu só sei daquele valão que passava onde hoje é a praça, que construíram a rodoviária.”

Lucia sai do trabalho e recomeça o trajeto de volta para casa. Está certa de que chegará tarde em casa por conta do fluxo intenso de pessoas. Lucia só consegue pensar em chegar o quanto antes em casa. Não consegue reparar nos espaços que percorre, é um caminho feito no modo automático. Às 18h, no ônibus de volta para casa, manda mensagem para as filhas avisando que está presa no engarrafamento. Sente que o trajeto de volta é mais cansativo até que o trabalho e pensa em como gostaria de ter concluído os estudos. Talvez pudesse ter mais tempo em casa com a família e se sentiria infinitamente mais realizada.

Segundo turno

“Quando chego em casa tomo um banho, dou um jeito na casa né, faço comida e cama. Pra acordar no outro dia dez pras quatro e começar tudo de novo.”

21h, Lucia está terminando de preparar o jantar da família. Apesar de cansada, se sente grata por poder ter uma refeição com as filhas. Recomeça todo o trabalho doméstico, agora em sua própria casa. Enquanto os outros membros assistem televisão na sala, Lucia tira poeira aqui, ajeita a roupa ali. Enquanto espera o arroz secar, lava a louça, entre uma atividade e outra para em frente à TV para assistir trechos da novela. 

Precisa olhar o material escolar das filhas, nunca consegue estar presente em uma reunião de pais, por isso não abre mão de conferir diariamente os cadernos e livros. Lucia sente o peso de um trabalho interminável, uma rotina cíclica, seu corpo parece mecanizado, imobilizado pela intensa repetição das atividades. Se apressa para dormir, pois sabe que logo terá de acordar novamente.


Solo House ll x Espaço doméstico: Como exercício projetual, a planta da Solo House ll; residência projetada para contemplação e prazer pelo escritório belga KGVDS, é sobreposta à planta da casa de uma das domésticas entrevistadas. O espaço doméstico ordenado e disciplinado confronta a planta livre e circular de um espaço dedicado ao prazer [Pedro Vitor Costa]

“Eu nunca fui em uma reunião de escola dos meus filhos, às vezes tenho a sensação de que me roubaram isso, sabe?”

Lucia às vezes acorda no meio da noite para pegar uma água e olhar as filhas dormindo. O relógio marca 0h, é um momento silencioso onde se pode ouvir o próprio pensamento, normalmente carregado de memórias. Ao ver as filhas dormirem, sempre pensa no tempo que gostaria de ter para estar mais próxima. Em como gostaria de poder viajar e aproveitar o tempo livre com a família. O trabalho doméstico consome o tempo e a vida de Lucia, que se sente amordaçada pelo constante silenciamento dos próprios desejos. O alarme toca: 3h.


O corpo entrelaçado ao cotidiano consequente da construção do território [Pedro Vitor Costa]
Nota do editor: O relato desse dia ficcional – feito em um ritmo infinito de oito tempos – foi elaborado a partir de depoimentos reais de oito empregadas domésticas moradoras da cidade de Magé, município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, coletados para o premiado Trabalho Final de Graduação do arquiteto Pedro Vitor Costa, sob orientação dos professores Ayara Mendo e Cauê Capillé, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU UFRJ). 
Os autores agradecem a imensa contribuição das oito entrevistadas para o desenvolvimento da pesquisa. Obrigado Ivanilda Amâncio, Vânia Ribeiro, Creusa Soares, Maria Aparecida Padilha, Vandinea Ribeiro, Roselir Amancio, Lauremeri Ribeiro e Rezeni da Victória. As aspas ao longo do texto correspondem a trechos exatos extraídos de seus depoimentos.
Neste trabalho de projeto e pesquisa, esse cotidiano cíclico entrelaça as arquiteturas dos espaços vivenciados e suas escalas metropolitanas, urbanas, infraestruturais e domésticas; as histórias e memórias da própria cidade que habitam; e os próprios corpos dessas trabalhadoras, em diferentes gerações. Em particular, o trabalho revela que, das horas aos séculos, do tijolo ao mapa, da conversa fiada aos grandes acontecimentos históricos, é possível entender o espaço como dispositivo imbuído de uma profunda potência política, articulando formas de poder e (possibilidades) de empoderamento.

Quem escreveu esse texto

Pedro Vitor Costa

Pedro Vitor Costa é arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (PROURB/FAU-UFRJ). É autor do premiado estudo A doméstica de Magé - Uma arquitetura em 8 atos.

Ayara Mendo

Ayara Mendo é arquiteta formada na Espanha e professora de Projetos de Arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/UFRJ).

Cauê Capillé

Cauê Capillé é arquiteto e professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ e no Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (PROURB FAU UFRJ).