As Cidades e As Coisas,

As selvas de pedra e as florestas

Por mais estranho que possa parecer, as grandes metrópoles ajudam a preservar as florestas naturais, diz David Owen em 'Green Metropolis'

03nov2020

É preciso otimismo: o futuro será bem melhor – se chegarmos lá. Poderia ser referência à pandemia, mas não. É bem pior. Talvez o momento tenha distraído os incautos, mas nenhuma evidência nos ajuda a acreditar que deteremos a crise climática – isso se as deusas nos ajudarem a passar pela pandemia. Cidades alagadas, barragens rompidas, ciclones, céu alaranjado pelas queimadas no Pantanal. Tudo isso aconteceu nos últimos meses no Brasil. Se alguém não reparou em como as coisas já andavam diferentes, estava fechado em casa há mais tempo que o Fabrício.

Pois, para superarmos a catástrofe do clima, precisaremos muito das nossas cidades – e não só porque temos um anti-ministro do Meio Ambiente no governo federal. Por mais contraintuitivo que possa parecer, as selvas de pedra ajudarão a salvar as selvas naturais. Essa é a tese de Green Metropolis [”A Metrópole Verde”, em tradução própria], de David Owen, repórter da revista New Yorker, lançado ainda em 2010 nos Estados Unidos e sem edição brasileira.

O argumento do livro é ainda mais interessante porque se opõe à expectativa desavisada – popular em frases como “as cidades acabam com o meio ambiente”. Cidades muito densas, como Hong Kong, as capitais europeias ou Nova York tendem a emitir muito menos gases de efeito estufa no cálculo por pessoa se comparadas a outras menores e mais espalhadas. Vale também para as cidades brasileiras: a cidade de São Paulo concentra quase 30% da população do estado, mas emite apenas 12% de seu gás carbônico, segundo dados do Observatório do Clima.

Olhando além da comum poluição urbana visual, é fácil entender por quê. Por um lado, compactar muita gente em pouco espaço, como ocorre nas metrópoles, incentiva as pessoas a caminharem e a usar o transporte compartilhado ou coletivo, em especial quando este é bem servido. Quando moradia, trabalho, serviços e lazer estão próximos, simplesmente não há porque tirar o carro da garagem, ou mesmo ter um. Essa, aliás, foi a ideia central da campanha que reelegeu a prefeita de Paris, Anne Hidalgo. O plano dela é criar uma cidade onde tudo possa ser feito em até quinze minutos, de preferência sem usar o automóvel.

Cidades densas também são mais sustentáveis porque moramos de forma mais econômica, individual e coletivamente. “Amontoar” gente em prédios permite economizar áreas verdes em outros lugares, sejam parques ou florestas nativas. Como escreve Owen, “você cria espaços abertos não quando espalha as pessoas, mas quando as aproxima”. Por exemplo, se tivesse a densidade de Brasília – uma cidade bastante esparramada e centrada no carro –, São Paulo ocuparia uma área quase dezessete vezes maior. Ou seja, não restaria espaço para o Parque Ibirapuera, ou mesmo pras florestas que ainda sobraram no litoral.

Por falar na capital federal, a obra paulistana mais icônica do seu arquiteto, o Copan, é talvez o maior modelo da sustentabilidade urbana. No térreo há comércio, restaurantes, livraria e um cinema desativado (hoje ocupado por uma igreja evangélica) e, nos seus 35 andares, há dezenas de salas de escritórios e mais de cinco mil moradores. Niemeyer fez uma cidade inteira caber em uma quadra. Detalhe: o Brasil tem mais de 1.200 cidades com menos gente do que o Copan. Aposto, todas são menos sustentáveis comparadas ao edifício – e bem menos interessantes.

Destruir para construir

Quase em estado míope pela defesa dos ganhos ambientais pela aglomeração urbana, Owen subjuga o processo sob o qual a grande maioria das cidades foram estabelecidas. Em quase todo canto a urbanização se deu e se dá destruindo o natural, algo menor, necessário e inevitável, segundo o autor. No fim do milênio passado, Nova York e seu porto eliminaram a vida marinha, além de restringir grande parte do verde aos famosos Central e Prospect parks.

Não precisamos ir tão longe, seja no espaço ou no tempo, para constatar a degradação. Em 2009, o governo do estado de São Paulo inaugurou mais uma faixa da Marginal Tietê para “reduzir os congestionamentos”. Resultado: mais opressão ao meio ambiente e mais carros circulando, hoje, praticamente à mesma velocidade, com ainda mais poluição. O rio há muito desfigurado é mero coadjuvante, relegado ao mau cheiro dos esgotos e à promessas vazias. Quando as águas de março chegam, e sempre chegam (apesar de autoridades fantasiarem o “extraordinário”), restauram por um momento a fluidez natural de outros tempos.

Owen, é verdade, propõe um modelo sem foco no carro. Mas mesmo a verticalização muitas vezes ocorre em detrimento do natural. Um caso emblemático, nesse sentido, é o Parque Augusta, também na maior metrópole brasileira. Com tantos terrenos e imóveis subaproveitados, como Ligia Bariani, Marcella Puppio e Letícia Silva mostraram na Quatro Cinco Um de agosto, ter de batalhar tanto para desfrutar de uma área verde no centro de São Paulo, até hoje não inaugurada, é ultrajante. Por anos, cogitou-se derrubar 25.000 m2 de árvores para construir torres residenciais. O acordo pelo parque, conquistado ano passado, só veio depois de muitos protestos. Com a justa liberação para que as construtoras donas do terreno desenvolvam outros lugares, talvez em breve teremos o melhor dos dois mundos: maior densidade e manutenção do que restou da natureza no centro urbano.

As consequências do construir-destruindo vão além da natureza, e o custo do espraiamento via baixa densidade e da degradação ambiental recai principalmente na população periférica. Como não cansa de mostrar o professor da USP Paulo Saldiva, são essas pessoas quem mais sofrem com doenças como câncer de pulmão, justamente porque têm de enfrentar maiores horas no trânsito – além de outros problemas associados à qualidade de vida e acesso a serviços públicos. De forma que não apenas existe o destruir para construir, como os efeitos do primeiro não são iguais para todas e todos.

Reimaginar o construir

Há alguns meses, já reeleita, a prefeita Anne Hidalgo celebrou a inauguração do processo que devolveu às margens do canal Saint-Martin às pessoas. Onde antes circulavam carros, agora há pedestres e ciclistas, tornando “o espaço mais agradável, respirável e com menos poluição sonora”, como diz Hidalgo e provam as imagens.

Atualmente, a líder parisiense talvez seja a grande inspiração para gestores municipais que sonham com cidades mais humanas, sustentáveis e agradáveis. Anos atrás, ela proibiu também a circulação de carros na beira do famoso rio Sena – ousadia tanta como se São Paulo fechasse as marginais Pinheiros e Tietê. Para maior loucura dos motoristas, mas delírio da enorme maioria restante, está destinando 70.000 vagas de estacionamento para o uso coletivo, tirando-as do automóvel. Com o Réinventer Paris serão restaurados prédios públicos em desuso com projetos dos maiores arquitetos do mundo. Se fosse pouco, ainda irá sediar, se tudo der certo, as Olimpíadas de 2024, construindo moradias em um bairro da periferia da cidade, com alta demanda.

Como mostra a liderança de Hidalgo, é possível sonhar com uma urbanidade moderna, buscando uma densidade sustentável para além do que é intrínseco, sem inescapavelmente destruir a natureza. Nesse sentido, talvez uma nova edição de Green Metropolis contasse com exemplos como esse.

Quem escreveu esse texto

João Melhado

Mestre em política urbana pela Universidade Columbia e autor do estudo “A Cidade Estacionada”.