As Cidades e As Coisas,

A Porto Alegre de Raymundo Faoro

Diários inéditos revelam como o jovem intelectual olhava a metrópole pelas lentes de Tolstói e Machado de Assis

26set2023

O ano é 1943. Em Porto Alegre, em um quarto do Hotel Palácio, está Raymundo Faoro. Aos dezoito anos, ele experimenta a vida na capital. Faz dois anos que deixou Caçador, no oeste de Santa Catarina, onde morara com a família. De lá, além de livros e a pretensão de tornar-se um intelectual, carregou a timidez e o sotaque que entregava sua origem — o habitus camponês que vinha da família de imigrantes italianos estabelecida em Vacaria, no Rio Grande do Sul, onde nascera.

É inverno na capital gaúcha, de quase meio milhão de habitantes. Quem passa por suas ruas testemunha muitos canteiros de obras. O ruído das demolições se confunde com o das construções. A cidade com pretensões de modernidade se expressa, ao mesmo tempo, nas obras, nos hábitos e na literatura. Os arranha-céus figuram na escrita de Érico Verissimo, Mário Quintana, Reynaldo Moura e Dyonelio Machado. Algumas avenidas vêm sendo abertas para dar espaço a um número crescente de veículos. Os jornais contam que os bondes chegam cada vez mais cheios ao centro. Contra a penumbra dos becos, a luz elétrica é símbolo da cidade à espera pelo “progresso”, entendido nos moldes europeus.

Dois anos antes, em 1941, Gilberto Freyre havia notado as demolições de alguns “sobrados patriarcais”. A visita do sociólogo ocorreu no mesmo ano da grande enchente, quando a Revista do Globo, ignorando a tragédia, publicou reportagem narrando “o espetáculo dos luminosos da rua refletindo, à noite, sobre a água estacionada na esquina do restaurante Mário”.

Impactado pela leitura de ‘Guerra e paz’, Faoro está atento ao declínio das aristocracias rurais

O restaurante fica na rua dos Andradas, também conhecida como rua da Praia. Lá está a Livraria do Globo, um centro onde gravitam escritores, jornalistas e aspirantes à vida intelectual. A seção editorial da livraria publica autores como James Joyce, Virginia Woolf, Thomas Mann, Aldous Huxley e Balzac. A capital é parte de um “surto editorial” vivido no país. As traduções de títulos estrangeiros se ampliam, em edições mais caprichadas. Pelos cafés circulam revistas literárias, como a Província de São Pedro, propagandeando novidades e escritores.

Em 1943, Faoro está se preparando para ingressar na Faculdade de Direito e procura preencher o tempo com a leitura e a escrita. Mal acomodado diante de uma mesinha muito baixa em relação ao seu 1,90 metro de altura, impõe a si uma disciplina intelectual. Na escrita, arquiva as próprias ideias, ao mesmo tempo que procura ordenar o “tumulto causado por tantas leituras”. Escrever diários, longe daquela dimensão confessional e íntima normalmente associada ao gênero, significa, para ele, um “ateliê” onde o escritor jovem se constrói e se esculpe espelhando-se nos tipos intelectuais que vai conhecendo na cidade e nos livros. Nele registra reflexões para serem retomadas em trabalhos futuros, aos moldes do francês André Gide, também publicado pela Globo.

Essas práticas de Faoro estão impregnadas pelos sons da cidade. É possível imaginá-la criticamente a partir dos seus escritos. Diante da janela que se abre para a esquina da Vigário José Inácio com a Riachuelo, ele deve ouvir os sons da rua onde a movimentação é intensa. Durante o dia passam por lá trabalhadores do Sindicato da Construção Civil. Ao anoitecer, chegará o público do Teatro Carlos Gomes em busca das comédias populares tão na moda entre a classe média da capital.

Reformas do centro

Faoro se desloca por um centro urbano que é reprodutor de valores e ideais da vida burguesa. O jornal Correio do povo apresenta muitas reportagens sobre a Segunda Guerra Mundial. As tecnologias aéreas dividem espaço com o noticiário, que denuncia a alta do preço de alimentos e combustíveis. Mas em suas páginas não se pode ler sobre os impactos sociais das reformas do centro. Elas movimentam o mercado da construção civil ao mesmo tempo que expulsam as classes populares para os arrabaldes, onde terrenos alagadiços se convertem em bairros fabris, enfatizando as desigualdades de raça e classe na cidade.

Andar por Porto Alegre é uma experiência sobretudo literária para Faoro. Impactado pela leitura de Guerra e paz, de Tolstói, ele está atento aos efeitos sociais do declínio das aristocracias rurais e a ascensão da burguesia urbana no Rio Grande do Sul. A capital que encontra diverge daquela idealizada em Caçador, onde todos haveriam de ler Balzac, segundo suas memórias. Naquele novo mundo, a exemplo de Huxley traduzido por Verissimo, prevalece o gosto pelas lutas de boxe e pelos romances policiais.

Enquanto caminha pela rua da Praia, Faoro deve pensar o que Machado de Assis, sua inspiração maior, teria lá notado. Certamente enxergaria os intelectuais medalhões, cujos dotes são medidos pelo excesso de erudição formal e pelas homenagens públicas. Logo ali os jovens homens descendentes de famílias alemãs bebem chope nos bares Zitter Franz e Antonello. Eles aguardam o momento de assumir um cargo nas empresas dos pais, conforme Faoro escreve.

As fronteiras entre literatura e sociologia parecem não existir para o jovem escritor. Machado de Assis seria um perfeito intérprete da sociedade brasileira. Porto Alegre está no centro dessa crítica literária. Lá podem viver Rubião e Cristiano Palha, personagens de Quincas Borba (1891). A amizade é baseada em interesses ocasionais: “Em questão de dinheiro tudo é permitido”, escreverá ele em 1946. Diante dos desfiles de carros pela avenida Borges de Medeiros, nos bailes de gala do Country Club e do Club do Commercio, Faoro enxerga a vida dos títulos obliterar a “alma interior” das pessoas, tal qual lê no conto da farda de alferes, em referência a “O espelho” (1882), de Machado. O programa Conselheiro amoroso, da Rádio Gaúcha, ecoa os casos de muitas Virgílias, de Memórias póstumas de Brás Cubas. Os casamentos burgueses seriam meros ajustes de interesses. Faoro capricha na caligrafia: na Porto Alegre dos anos 1940, “o amor não é filho do Cupido, senão da geometria euclidiana”.

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Faoro se formou em direito em 1948. Dez anos depois, publicaria  Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro, pela Globo. Suas teses sobre a persistência do Estado patrimonial influenciaram algumas das mais duradouras representações do passado brasileiro. Seus diários inéditos, escritos entre 1943 e 1952 e cedidos pela família, revelam a formação do jovem estudante de direito e a transformação de seu entorno.

Quem escreveu esse texto

Paulo Augusto Franco de Alcântara

Pesquisador no Departamento de Antropologia da USP e professor da ESPM-SP.