Poesia,

Nos detritos da linguagem

Em edições bilíngues, poemas de Paul Celan mostram sua predileção pelo silêncio e por temas dolorosos, como as vítimas do Holocausto

15out2021 | Edição #50

Paul Celan (1920-70) é um fantasma no cenário da poesia no Brasil. Assombra-nos por ser um dos nomes mais citados ao se abordar a poesia de língua alemã e a literatura que trata da Shoah, ao lado dos mestres da narrativa de testemunho como Primo Levi e Jean Améry. Em geral, o que se menciona é sua obra mais conhecida, “Fuga da morte”, que ressurge aqui e acolá, em blogs e jornais, e acabou sendo tão associada a Celan quanto, digamos, “Liberdade”, de Paul Éluard. No entanto, Celan é muito mais do que apenas esse poema.

Duas publicações da Editora 34, A rosa de ninguém e Ar-reverso, buscam dar mais materialidade a esse fantasma. O tradutor do primeiro, Mauricio Mendoza Cardozo, explica que a poesia estrangeira costuma aparecer no Brasil mais no formato de antologias e publicações esparsas de certos poemas, e quase nunca com uma obra na íntegra vertida ao português, tal e qual foi publicada no exterior. 

Para Cardoso, isso é apenas uma característica nossa, nem positiva ou negativa. No entanto, essa edição revela justamente a importância de analisarmos uma obra poética na estrutura definida pelo autor, seguindo uma ordem que produz significados, um agrupamento de textos que dialogam entre si etc.

No seu prefácio a Ar-reverso, o tradutor Guilherme Gontijo Flores explicita como cada livro de Celan parece dialogar com estágios da vida turbulenta do poeta; apesar de interpretações biográficas estarem fora de moda na teoria literária, as ligações sugeridas são interessantes demais para serem ignoradas.

A demora para termos mais livros do autor romeno no país pode-se explicar, também, pelo fato de que o poeta ficou conhecido pelo seu hermetismo, seus versos crípticos, sua predileção beckettiana pelo silêncio e o tema doloroso dos milhões de cadáveres da Shoah. 

Os dados biográficos são conhecidos: conseguiu escapar de um fim trágico, mas seus pais sucumbiram à máquina de extermínio nazista. Filho de um judeu ortodoxo, Celan preferiu as artes seculares desde a adolescência, mas questões religiosas nunca deixaram de atormentá-lo. Foi internado algumas vezes em instituições psiquiátricas e terminou se suicidando aos 49 anos, afogado no Sena.

Do que é possível falar

O genocídio perpetrado pelos nazistas provocou um abalo sísmico também na filosofia, que se viu às voltas de uma questão inescapável: como o genocídio nos campos de extermínio não apenas foi elaborado em um país conhecido pelo humanismo e pelos avanços científicos, como foi validado pelo seu discurso oficial?

Paul Celan, de certo modo, procurou maneiras de como seria possível fazer poesia a partir da Shoah: através de versos mutilados, palavras interrompidas, silêncios, balbucios

Entre os pensadores mais dedicados a essa questão encontra-se o filósofo alemão Theodor W. Adorno, que afirmou que toda a educação a partir da Segunda Guerra Mundial deveria ser voltada para que Auschwitz não se repetisse e, portanto, deveríamos contestar tudo aquilo que consideramos as bases de nossa cultura. É de Adorno a notória frase de que a poesia, após Auschwitz, era um ato de barbárie. Tal ideia, por muito tempo, foi interpretada com uma espécie de interdito — os horrores dos campos de extermínio são impossíveis de serem representados.

É fácil para nós, do século 21, vermos com desconfiança tal afirmação, afinal, desde A lista de Schindler, megaproduções (algumas apelativas) abordam de forma visual e direta a Shoah. A questão de como representá-la, no entanto, persiste. E Paul Celan, de certo modo, procurou maneiras de como seria possível fazer poesia a partir dela: através de versos mutilados, palavras interrompidas, silêncios, balbucios. 

A linguagem, o instrumento básico de todo e qualquer escritor, não pode ser manejada de maneira inocente. O poema “Tübigen, janeiro”, de A rosa de ninguém, mostra bem esse espanto, com seus versos repetitivos, despedaçados: 

Viesse,
viesse um homem, 
viesse um homem ao mundo, hoje, com
a barbacesa dos
patriarcas: falasse,
falasse ele deste
tempo, e ele
só faria
balbuciar e balbuciar

Primo Levi escreveu, sobre Celan, que a obscuridade de seu estilo não era uma forma de desprezo pelo leitor, e que tampouco cedia, de forma preguiçosa, à moda de fluxos inconscientes. Pelo contrário, era “um reflexo da obscuridade do seu destino, e o de sua geração”, e por isso sua linguagem é truncada, “como o de uma pessoa prestes a morrer, e sozinha, pois todos estamos sozinhos na hora da morte”.

Teodiceia

Em A rosa de ninguém, também aparece, de forma reiterada, referenciais ao universo religioso. No entanto, na teodiceia (a busca para explicar a existência do mal em um mundo governado por uma entidade bondosa e onipotente) de Celan, Deus está distante: 

eu cavalgava pela neve, ouça,
eu cavalgava Deus ao longe — perto, ele cantava,
era
nossa última cavalgada sobre
os cúmulos de gente.

Em “Salmo”, poema que traz o verso que dá título ao livro, o silêncio divino é ainda mais lúgubre: 

Louvado seja você, Ninguém.
Por ti queremos
florescer.

Já em “Havdalá” — um poema que talvez só faça sentido para leitores com algum conhecimento dos ritos judaicos —, as dualidades entre união e desunião, luz e trevas, são trabalhadas dialeticamente num estilo telegráfico e milimétrico que o tradutor capturou de maneira brilhante — basta observar o verso final da estrofe abaixo. Havdalá se refere ao período do fim do shabat, o dia sagrado, quando se acende uma vela trançada de duas cores e dois pavios, representando a unidade. Escreveu Celan: 

O um, o
único
fio, fio
que você fia — por ele
enleado, você fia
o que liberta, fia
a liança.

A pesquisadora Juliana Pasquarelli Perez aponta no paratexto ao livro, com perspicácia, que cada um dos ciclos de A rosa de ninguém faz uma defesa de algum aspecto do humano. Sim, diante do horror, Celan busca resgatar detritos da memória, da linguagem, do efêmero.

É muito interessante, ainda, valorizar a publicação de dois livros de Celan ao mesmo tempo no país, pois não apenas é possível contemplar como a tradução de poesia pode desdobrar um mesmo autor em dois, como permite avaliar certas tendências estruturais da poesia em diferentes contextos.

Diante do horror, Celan busca resgatar detritos da memória, da linguagem, do efêmero

Gontijo Flores, tradutor de Ar-reverso, explica como chegou ao título, e a palavra “reverso” parece dar o tom do volume: sem a rigidez da divisão em quatro partes de A rosa de ninguém, alguns poemas de Ar-reverso costumam começar em imagens sofridas e sombrias, enquanto o eu-lírico busca nos conduzir de volta para a luz. Como todos sabemos, a história do Ocidente foi da iluminação do Iluminismo aos horrores da guerra; a arte de Celan possibilita, por um instante, reverter a seta do tempo. Um estágio no processo de luto, talvez, que tem a literatura radical como catalisadora.

O filósofo francês Jacques Rancière, preocupado com a intersecção entre estética e política, buscou endereçar a suposta interdição de representar o extermínio em Auschwitz. Ele recupera a frase de Adorno citada anteriormente e a inverte: “Após Auschwitz”, afirmou Rancière, “para mostrar Auschwitz, a arte é a única coisa possível, porque a arte sempre envolve a presença de uma ausência; pois é o papel da arte revelar algo invisível, através do poder controlado das palavras e das imagens, conectadas ou desconectadas”. 

Ou seja, mesmo revirando os resíduos de uma linguagem ainda não contaminada, mesmo em um discurso fraturado, a arte de Celan é ao mesmo tempo reflexo do horror e superação de uma aporia sobre como representar esse horror. Sua publicação no Brasil chega na hora certa, quando nossos artistas também buscam formas capazes de dar conta de pesadelos presentes e futuros.

Quem escreveu esse texto

Antônio Xerxenesky

Escritor e tradutor, é autor de As perguntas (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.