Literatura infantojuvenil,

Maestro das imagens

Inusitada ópera ilustrada tem uma piscina como palco e um maestro como narrador

01out2021 • 02abr2024 | Edição #50

É um livro-imagem, sem dúvida; uma obra visual, como indica o texto da contracapa. Mas não é, de modo algum, um livro sem palavras, muito menos sem sons. O convite que o título faz ao leitor é para um concerto — não um conserto. E o que seria um concerto musical de piscina? As poucas palavras escritas parecem cuidadosamente escolhidas e exigem atenção redobrada: que não se espere um conserto barulhento, um quebra-quebra hidráulico. A surpresa é o elemento principal desse concerto que é musical, sim — com sons, ruídos, silêncios, tempo e contratempo —, mas visual também — com traços bem delineados em preto e branco.

Estamos diante de uma ópera ilustrada, de uma peça sonoro-imagético-poética. A sequência surpreendente de imagens pode narrar uma ou muitas histórias; basta seguir o maestro e seus gestos intensos. Ele nada de braçada, literalmente. E é, a seu modo, um narrador fantástico.

Se a surpresa é o elemento natural a esse concerto, a piscina feita palco é o espaço de onde emergem narrativas, personagens, ritmo, poesia. A piscina — esse suposto vazio circunscrito e milimetricamente quadriculado — é tempo-espaço movente que, ao virar das páginas, se torna mar, pasto, campo, ringue, vulcão. Tudo isso salta aos olhos do leitor regido por muitas maestrias. A primeira delas aparece na dedicatória: “Para o maestro Chuck Jones”. O renomado roteirista, animador, compositor, criador de versões memoráveis de personagens como Pernalonga e Looney Tunes, é inspiração visual e musical para o autor, designer e artista plástico Renato Moriconi.

Trilha sonora vira narrativa

Segundo ele, Jones é uma das referências importantes na formação do seu gosto visual e musical, com destaque para um aspecto presente em muitas de suas animações: a trilha sonora vira narrativa, e vice-versa. Nota-se essa influência na composição do livro. Há em todas as páginas a figura de um maestro, vestido tradicionalmente e com sua batuta afiada em punho, a reger os concertos desconcertantes que ouvimos ao ler as imagens. Seus movimentos compõem uma espécie de dança que se reflete no palco-piscina, fazendo surgir seres e espaços, num jogo de espelhos que funde criador e criaturas.

Os traços fortes de Moriconi ganham plasticidade. Quase podemos ver o pincel virar batuta nas mãos do artista

Para além da maestria de Chuck Jones, o livro convoca a destreza dos leitores no trânsito movente dos olhos que navegam em águas turvas, embora aparentemente límpidas. O que olhar primeiro, o lado esquerdo ou o lado direito da página? E se os olhos pararem no meio da dupla de páginas, na dobra do livro? Surgirá dali um novo personagem? E se o leitor resolver folhear rapidamente as páginas, como num flip book? As imagens vão dançar em outro ritmo, criar vida, movimento, ganhar relevo e saltar das páginas-telas? Sem dúvida, a maestria do leitor é provocada a apurar a escuta para melhor ler, ver, dançar, reger com o corpo inteiro esse concerto composto a muitas vozes.

Há, sem dúvida, uma terceira maestria orquestrando esse encontro fabuloso. Os traços fortes de Moriconi ganham plasticidade viva. Quase podemos ver o pincel virar batuta nas mãos do artista, o papel ganhar densidade de tela, as ondas sonoras explodirem a bidimensionalidade do livro. Enquanto o artista brinca integrando elementos das várias linguagens, sua obra se agiganta em polifonia visual e o leitor é arrebatado no abrir e fechar das cortinas. Grita “bravo!”, aplaude, sorri e, inevitavelmente, pede bis. Mais do que isso: mergulha com o maestro nesste tempo-espaço feito piscina-palco-livro, assumindo a batuta.

Este texto foi feito com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Cristiane Tavares

É crítica literária, coordena a pós-graduação Livros, Crianças e Jovens: teoria, mediação e crítica no Instituto Vera Cruz (SP).

 

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.