Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Mazelas do constitucionalismo

Ensaio de doutor em direito e professor de história dá pistas sobre o perfil autoritário de muitos juristas e constitucionalistas brasileiros

27jun2022 | Edição #59

A citação “[…] em muitos Estados da América do Norte, vão as providências aos extremos de castrar os anormais — nós, brasileiros, recebemos imigrantes cegos, imbecis doentes” aparece no livro de Luis Rosenfield, Revolução conservadora: genealogia do constitucionalismo autoritário brasileiro (1930-1945), publicado pela Edipucrs. A frase foi escrita por um dos mais influentes juristas brasileiros, Pontes de Miranda, que aparece, em primeiro lugar, em um ranking de juristas mais citados por juízes nacionais no relatório “Quem somos: a magistratura que queremos”. É sintomático que juízes (assim como advogados, promotores e outros agentes do direito) sejam tão impactados por outros juristas que tiveram perfil autoritário, totalitário e integralista. 


Revolução conservadora: genealogia do constitucionalismo autoritário brasileiro (1930-1945), de Luis Rosenfield

Apesar de se dedicar ao recorte temporal de 1930-45, o ensaio de Rosenfield dá pistas claras sobre o perfil autoritário de muitos juristas e constitucionalistas brasileiros.

Crise das democracias

Rosenfield parte do pressuposto de que é possível que o constitucionalismo revele não apenas um regime democrático, mas também regimes autocráticos. Sua obra se dedica a enquadrar os fatores que levaram à consolidação de um pensamento autoritário no Brasil de Vargas. É curioso que conceitos hoje explorados pelo pensamento constitucional e politólogo, ante a crise das democracias contemporâneas, sejam enfrentados pelo Brasil daquele momento: o mais importante deles, o de constitucionalismo autoritário. Rosenfield, entretanto, está alerta para evitar eventuais anacronismos. Note-se, por exemplo, que é do período de Vargas que se extrai a expressão “constitucionalismo antiliberal” (com nomes como Almir de Andrade, Monte Arraes, Gustavo Barroso e Butler Maciel). De qualquer modo, Rosenfield não deixa de observar a tensão que perpassa nossa história constitucional com a defesa constante de posições também liberais.

Seu trabalho mostra como juristas estiveram, principalmente nos anos 30 (mas não só), embrenhados em atividades políticas e de administração pública, desenvolveram fortes laços com os governos do momento e atuaram em reformas legislativas que incorporaram o autoritarismo. Rosenfield percorre uma linha cronológica que se inicia nas crises da Primeira República. É lá que começam a ganhar força os trabalhos sobre “democracia autoritária” de Oliveira Vianna, com suas fortes críticas ao que chamava de “idealismo constitucional”. Vianna se opunha ao liberalismo por ele ser essencialmente desintegrador. Além disso, sob o varguismo, há uma forte contraposição ao Poder Judiciário: um Poder Executivo forte deveria ocupar seu lugar. Remetendo-nos aos tempos atuais, Vianna falava em uma “Oligarquia da Toga”, que soaria como melodia para ouvidos bolsonaristas. A diferença se situa no grau de pouca consolidação democrática (ou mesmo nenhuma) dos anos 30 comparado com o pós-1988.

A crise da democracia parlamentar dos anos 1920 não era brasileira, mas ocidental. É nesse período que se desenvolve um “naturalismo jurídico” capaz de detectar uma “efetiva” dinâmica social supostamente não percebida pelo “formalismo jurídico” liberal. É curioso como esse tipo de crítica viaja por décadas em um cinismo completo em relação à força normativa do constitucionalismo. Alberto Torres, ministro do Supremo Tribunal Federal entre 1901 e 1907, ainda falaria em Poder Moderador mesmo com sua derrocada em 1891, utilizando um conceito autoritário como mais efetivo do que instrumentos democráticos.

O livro mostra como juristas desenvolveram fortes laços com os governos do momento

O movimento tenentista adicionará outro elemento antidemocrático com a consolidação da ideia de um “cidadão-soldado”, central para o fim da Primeira República e fulminante para relações civis-militares nas décadas seguintes (e até hoje). Com a entrada em cena da “questão social”, autores como Viveiros de Castro ajudarão a desenhar o inimigo perfeito, e tantas vezes ressuscitado, do anticomunismo. Esses serão elementos fundamentais tanto para o Governo Provisório de 1930 quanto para a ditadura de Vargas. Como nos atos institucionais da ditadura de Vargas, os atos do Governo Provisório foram excluídos da apreciação judicial. O suspiro democrático da Constituição de 1934 seria rapidamente sufocado com o auxílio de um jurista sempre presente nos momentos de autoritarismo: Francisco Campos. Foi ele quem redigiu, praticamente sozinho, a Constituição de 1937. A falência do regime representativo era a justificativa para a ditadura. Enquanto criticava o Parlamento, Campos elogiava Hitler. Também crítico do sistema representativo, Pontes de Miranda defenderá uma estrutura corporativista que dotasse o Brasil de autoridade, eficiência econômica e unidade.

No complexo sistema de constitucionalismo autoritário recuperado por Rosenfield, outro jurista extremamente influente teorizará a respeito e participará do integralismo: Miguel Reale. É dele a visão de que o indivíduo é instrumento de fins sociais. O integralismo partiria de uma ideia de organização social baseada na unidade e na hierarquia. Prevaleceu, de fato, o autoritarismo varguista em que, se havia democracia, ela não seria liberal, mas antiliberal, como já apontado pelo trabalho de Almir de Andrade. Sem partidos políticos e com bandeiras dos estados queimadas, a centralização administrativa foi a tônica do varguismo.

Marcas na história

A tensão entre o tipo de liberalismo do início do século 20 e as aspirações autoritárias de parte considerável da doutrina constitucional brasileira deixou marcas em nossa história constitucional. A predileção pelo autoritarismo foi posta a nu com a ditadura de 1964-85 e permaneceu apenas adormecida sob a Constituição de 1988. Os dias atuais indicam que o autoritarismo nunca desaparece por completo. É preciso olhar para trás para buscar as raízes do que se pode chamar, na atualidade, de um iliberalismo brasileiro: o manejo de instituições e institutos jurídicos com propósitos antidemocráticos. 

Esse manejo não se desvencilhou de velhos truques: militares em crises e inimigos imaginários comunistas. O livro de Rosenfield é um primeiro grande passo na direção de compreender algumas das mazelas do constitucionalismo brasileiro.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Emilio Peluso Meyer

Professor de direito da UFMG, escreveu A decisão no controle de constitucionalidade (Método).

Matéria publicada na edição impressa #59 em junho de 2022.