Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Como morre uma Constituição?

Professor apresenta um diagnóstico robusto da erosão democrática brasileira e alerta para a gravidade da corrosão de seus alicerces

18fev2022 | Edição #56

A esta altura, estamos todos escaldados, com o perdão do trocadilho, na metáfora do sapo que morre na panela de água fervente. Nessa pequena fábula de moralidade democrática, um sapo colocado em uma panela com água levada ao fogo eventualmente morrerá cozido, por não perceber a elevação progressiva da temperatura da água.

O mesmo aconteceria, e aqui vem a lição de moralidade política, com a erosão das democracias atuais. Não há mais generais saindo fardados de tanques para cortar faixas de inauguração de ditaduras. Não é mais possível marcar no calendário o dia em que a Constituição morreu. Como o sapo cozido, as democracias atuais fenecem aos poucos, por mudanças que paulatinamente tornam inoperantes espaços institucionais e convenções que são pressupostos de sua existência. Subjugação de juízes independentes, estrangulamento financeiro da imprensa não alinhada, assédio intimidatório a funcionários públicos e lawfare contra ativistas e organizações da sociedade civil: esses e outros fenômenos análogos compõem o caldo fervente em que o sapo da democracia vai cozinhando até morrer.

Há um descompasso entre os desejos e as promessas da Constituição e a disposição de autoridades encarregadas de fazê-la cumprir toda a sua plenitude

Se por um lado é apelativa em seu chamado por alerta permanente, essa metáfora é essencialmente limitada por prender-se a fenômenos físico (a fervura da água) e biológico (a morte do sapo) que, como tais, ocorrerão da mesma forma em qualquer lugar. Morrerão cozidos de forma idêntica os sapos da Hungria, da Polônia, das Filipinas, da Turquia e do Brasil.

Os fenômenos de erosão democrática, ao contrário, são diferentes entre um país e outro, pois as oportunidades para a autocratização não se apresentam de maneira uniforme em todos os lugares. Os caminhos mais curtos para que a democracia liberal seja carcomida pelo trabalho de agentes públicos que deveriam defendê-la serão mais longos ou mais curtos a depender do grau de controle do governo sobre o Legislativo, da capacidade de centralização de poder na figura do líder nacional (especialmente nos regimes federativos), da resiliência da imprensa e de outros observadores independentes, da confiança e do prestígio desfrutados pelo Poder Judiciário e da governança do processo eleitoral. Não há receita comum, com um passo a passo sempre idêntico, para essa anti-iguaria.

Caldo brasileiro

Em Constitutional Erosion in Brazil (Erosão constitucional no Brasil), o professor Emilio Peluso Neder Meyer, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), apresenta a sua interpretação para a receita brasileira do anfíbio autoritário. O arco de seu argumento é de longa duração, não se limitando à eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, ou a eventos imediatamente anteriores que sugeriam que as coisas já não iam bem, como a interrupção prematura e ilegítima do mandato de Dilma Rousseff em 2016, descrita pelo autor como “golpe parlamentar”.

Professor de direito constitucional, Meyer dá embocadura especificamente jurídica à sua análise. Constitutional Erosion é uma variação de “Como as constituições morrem”, e seu maior alerta é que a nossa Constituição de 1988 está morrendo, e não é de hoje. Há um descompasso entre os desejos e as promessas da Constituição, de um lado, e, de outro, a disposição de autoridades encarregadas de fazê-la cumprir em sua plenitude.

Como o sapo cozido, as democracias atuais fenecem aos poucos, por mudanças que paulatinamente tornam inoperantes espaços institucionais e convenções que são pressupostos de sua existência

Essa recalcitrância vai cavando buracos em nosso tecido constitucional, que vão se alargando com o tempo. Cedo ou tarde, esses rombos serão grandes o suficiente para que por eles passe alguém como Jair Bolsonaro, figura que personifica todos os valores políticos que a Constituição de 1988 buscou proscrever: o culto à tortura, o desprezo aos direitos humanos, a homofobia orgulhosa, o desmonte de políticas públicas que perseguem objetivos sociais constitucionalmente impostos, a degradação ambiental escancarada que nos torna párias globais.

Quando certo grau de avacalhação constitucional é atingido, a correção que se impõe será fatalmente deletéria, ainda que a Constituição não chegue a morrer na fervura. Para salvar o regime, faz-se necessário sacrificar alguma dimensão da própria Constituição ameaçada — e o resultado desse processo, como ocorre com a erosão do solo, é de difícil previsão. A única certeza é a gravidade da ameaça ao edifício constitucional dentro do qual vivemos como comunidade política.

Colônia de cupins

Percebe-se no diagnóstico de Meyer uma relevante contribuição do Poder Judiciário para a construção do impasse que hoje vivemos. Enquanto outros países transicionaram de ditaduras para democracias acertando contas com o passado e deixando claro que violações sistemáticas a direitos humanos eram transgressão política inviolável, o Brasil não apenas acolheu e acalentou assassinos e torturadores, nossos e de outros países, como também resolveu dar fama folclórica a quem os vendia como heróis, a exemplo do deputado Bolsonaro. Para isso, foi decisiva a bênção do Supremo Tribunal Federal (STF) à interpretação de que a Lei da Anistia abrange torturadores.

Essa tibieza do STF é vista pelo autor como sintoma de um medo maior: nossos togados têm receio de se impor a militares. Seu limite de tolerância, acrescento eu, só é ultrapassado quando a integridade do tribunal está diretamente ameaçada. Nas demais circunstâncias, sobra boa vontade para com a instituição que até hoje não se pronuncia sobre o fato indubitável de que seus homens torturaram e mataram cidadãos brasileiros por identificarem-nos com inimigos da pátria. Ao contrário: no governo Bolsonaro, ganharam lugar na assessoria da presidência do Supremo, a convite do ministro Dias Toffoli, e assento em comissão eleitoral que atestará a lisura das eleições de 2022, a convite do ministro Barroso. Quem disse que o crime, ao menos contra a humanidade, não compensa?

Quando certo grau de avacalhação constitucional é atingido, a correção que se impõe será fatalmente deletéria, ainda que a Constituição não chegue a morrer na fervura

O bordão autoelogioso de que ninguém está acima da lei, tantas vezes repetido em julgamentos criminais do STF, carece de nota de rodapé para explicá-lo quanto aos militares. Quando entram em cena questões de interesse corporativo, como o auxílio-moradia pago ao longo de quatro anos graças a uma liminar engavetada pelo ministro Luiz Fux, o bordão soa especialmente cínico aos olhos de qualquer cidadão. Talvez a cruzada moral que empolgou tantos magistrados, de Sergio Moro ao próprio ministro Fux, se explique também como lavagem reputacional. Em qualquer caso, não é bom sinal para a integridade do sistema jurídico e constitucional, cuja respeitabilidade e autoridade se confundem com as do próprio Poder Judiciário. Não é difícil perceber como essa dinâmica corrói o alicerce de nossa respeitabilidade institucional como faria uma colônia de cupins.

Resgate

Constitutional Erosion in Brazil também enfrenta a difícil discussão sobre políticas econômicas e as exigências da Constituição de 1988. Esse debate foi reavivado a partir dos anos 90, quando constituições ambiciosas em termos de direitos sociais, que exigem pesados gastos públicos, se confrontaram com agendas econômicas que propunham contenção fiscal e redução da participação do Estado na prestação de serviços básicos. Além da própria frustração de programas constitucionais em saúde, educação e moradia, a conjugação de um Estado absenteísta em políticas sociais com um quadro econômico de ampla pobreza e acentuada desigualdade arma uma bomba-relógio que alimenta frustrações e descontentamentos, explode em revoltas sociais e cria pretextos para toda sorte de violências para reprimi-las. O risco, alerta Meyer, é enfraquecer também por essa via a força da Constituição, que se expõe como incapaz de impor rumos diferentes à ortodoxia econômica, defendida por muitos dos mesmos autores que apoiaram ditaduras latino-americanas — e que servem aos populistas do presente.

Pintando horizonte das esperanças possíveis, Meyer nos lembra que a defesa de nossa Constituição precisa ser feita por muitos daqueles cujas ações contribuíram para erodi-la: a classe política e as carreiras de elite jurídicas, em especial a magistratura. No primeiro caso, pelos contrapesos do federalismo, que empoderam governadores e prefeitos, e da separação de poderes, que dá armas ao Congresso. Quando estes faltarem, haverá sempre o Poder Judiciário, o mesmo que atiçou a fogueira que hoje queima nossos pés ao vestir confortavelmente a fantasia de cruzado anticorrupção. Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é, nos dizeres de Caetano. E para sabê-lo é preciso diagnosticar, algo que Emilio Peluso Neder Meyer faz com fôlego e inteligência.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Rafael Mafei Rabelo Queiroz

Co-organizou História oral do Supremo: Francisco Rezek (FGV Direito Rio).

Matéria publicada na edição impressa #56 em fevereiro de 2022.