Arquitetura,

O homem e o espaço

Arquiteto finlandês e socióloga francesa discutem a fenomenologia das formas de habitar e os problemas da arquitetura moderna

12nov2018 | Edição #5 set.2017

Em meio aos condomínios de luxo que prometem uma liberdade intramuros e os conjuntos de habitação social que ignoram questões como identidade e acesso à cidade, talvez tenhamos perdido a referência sobre o significado de habitar um espaço. Desde sempre a relação com o território se colocou para a humanidade como elemento essencial na constituição das sociedades. Apropriar-se de um lugar para depois habitá-lo são etapas que se repetiram ao longo das épocas e nas mais diversas culturas.

Da cabana primitiva preconizada por Laugier no século 18, tida como o mito fundador da arquitetura, passando pelas leituras incontornáveis de Heidegger e Bachelard, a relação entre homem e moradia continua tendo uma relevância indiscutível. Habitar, de Juhani Pallasmaa, e Antropologia do espaço, de Marion Segaud, partem dessa tradição para nos mostrar como o nosso estar-no-mundo está intimamente ligado à relação com o espaço à nossa volta.

Um dos nomes de maior destaque da arquitetura finlandesa, Pallasmaa é conhecido sobretudo por sua atividade teórica e acadêmica. Os olhos da pele (1996), livro em que investiga por que a arquitetura prioriza o olhar quando existem outros quatro sentidos a serem estimulados, se tornou um clássico no ensino da disciplina.

Em Habitar, coletânea de ensaios escritos entre 1994 e 2015, Pallasmaa reflete sobre a capacidade da arquitetura de construir lares, e não casas. Partindo do princípio de que se baseia em uma teia intrincada de memórias e sensações e que realiza a mediação entre a intimidade e a vida pública, o autor questiona se o lar constitui uma expressão arquitetônica. Sendo ele próprio arquiteto, Pallasmaa considera que foram os cineastas e escritores — e não seus pares — que entenderam os significados mais profundos e sutis do ato de habitar. Os textos são permeados por incursões pela fenomenologia e referências a clássicos da literatura que enriquecem a leitura e a tornam mais prazerosa. Ao abrir o debate para assuntos como o vínculo entre arte e ciência e o papel da imaginação, Pallasmaa evidencia as ramificações possíveis da discussão sobre o habitar.

Em sua busca pelo significado do lar, ele recupera os sentidos primordiais da arquitetura, defendendo que objetos domésticos à primeira vista banais têm uma forte carga simbólica. Não é necessário que o projeto atribua sentidos específicos aos edifícios, mas sim que evoque sentimentos e associações. A moradia ocupa tamanha importância em sua análise que ele considera que a arquitetura como um todo resulta do ato de habitar, o que faz com que suas “imagens primordiais” sejam identificadas mais facilmente na figura da casa.

A globalização do espaço

Socióloga e professora emérita na França, Segaud dedicou sua pesquisa às relações entre o urbano e o social. Em Antropologia do espaço (1983), ela parte de um questionamento sobre os efeitos da globalização em nossa maneira de nos relacionarmos com o espaço. Haveria algo do particular que resistiria à uniformização? A autora acredita que a outra faceta da integração em escala global seria justamente um fortalecimento de identidades próprias a cada cultura.

Baseando-se na premissa de que o espaço é algo obrigatoriamente social, Segaud investiga as origens de nossa ligação com o território e o modo como ela se dá em cada sociedade. A autora propõe quatro categorias de análise: habitar, fundar, distribuir e transformar. Antes de se dedicar a seu objeto, recupera a formação dos campos da sociologia urbana e da antropologia do espaço, sendo um dos méritos do livro a introdução de leigos à vasta literatura sobre o tema.

Assim como Pallasmaa, Segaud diferencia o habitar da habitação e aponta a distância muitas vezes encontrada entre as necessidades das pessoas e as soluções propostas por arquitetos. Embora sejam bastante distintos na forma, os dois livros sublinham de maneira sensível a importância dos aspectos imateriais do espaço habitado. Outro ponto em comum é a crítica — ferrenha no caso de Antropologia do espaço — à arquitetura moderna, que tem como maior expoente o franco-suíço Le Corbusier. No caso de Pallasmaa, a crítica recai mais sobre a arquitetura contemporânea, em que os edifícios dos denominados starchitects se apresentam como objetos a serem olhados, descolados do contexto e de seus usuários.

Os dois livros merecem algumas ressalvas. A partir de um dado momento, os argumentos e citações de Habitar se repetem, fazendo crer que a escolha dos ensaios poderia ter sido mais cuidadosa. Quanto a Antropologia do espaço, por vezes temos a impressão de que seus capítulos não aprofundam o bastante os conceitos propostos. No entanto, a leitura de ambos é proveitosa. Mais do que um chamado para a ação, as duas obras podem ser pensadas como um convite para refletir sobre algo que de tão elementar é por isso mesmo muitas vezes esquecido: a ligação poética e filosófica do homem com a terra.

Quem escreveu esse texto

Mariana Schiller

É crítica literária e mestre em planejamento urbano pela Bartlett School of Planning, em Londres.

Matéria publicada na edição impressa #5 set.2017 em junho de 2018.