A Feira do Livro,

Ações afirmativas deveriam durar os mesmos quatro séculos em que negros foram parasitados, acredita Cida Bento

Autora de ‘O pacto narcísico da branquitude’ e Winnie Bueno puseram o dedo na ferida dos privilégios brancos

11jun2023 | Edição #70

Quatro séculos. Esta foi a resposta de Cida Bento a um jovem branco que perguntou por quanto tempo precisaríamos de ações afirmativas. “Eu respondi que por quatro séculos seria adequado, porque a gente foi parasitado por quatro séculos. Por quatro séculos, as pessoas escravizadas foram os únicos trabalhadores deste país, que foram parasitados e criaram para os brancos uma herança que perdura até hoje.”

A fala da psicóloga e autora do livro O pacto narcísico da branquitude (2022) deu o tom da mesa O pacto da branquitude, que abriu o último dia d’A Feira do Livro sem medo de pôr o dedo na ferida. Bento dividiu o Palco da Praça com a escritora e pesquisadora Winnie Bueno, autora de Por que você não acredita em mim (2023), e com a mediadora Juliana Borges, escritora, ativista e colunista da Quatro Cinco Um.


Cida Bento e Winnie Bueno [Sean Vadaru/Divulgação]
 

“Não tem mais volta o questionamento desses lugares de privilégio. Nem todos os brancos estão em lugares de poder, mas todos os lugares de poder são ocupados por brancos. E a gente tem que procurar entender como isso aconteceu", disse Bento. “Quando eu saí da Companhia Energética de São Paulo, onde eu era executiva de recursos humanos, saí querendo entender como acontece isso, dos brancos ocuparem esses lugares de decisão, de pensar o Brasil.”

“Como determinado segmento, ao receber uma herança, ao receber o poder, como ele transfere para suas novas gerações, como lava o sangue que banha esses privilégios e os transforma em mérito?”, questionou a autora. “É por isso que eu falo em pacto narcísico da branquitude, que poderia ser pacto narcísico da masculinidade, pacto narcísico das classes altas, pacto narcísico da cisgeneridade…”

“O pacto da branquitude nasce como esse conceito pra discutir as relações de dominação dentro das instituições, porque as instituições têm que ser diversas, têm que ser democráticas, elas não podem ser bolhas brancas em uma sociedade em que metade da população é negra. O pacto da branquitude é um pacto de constituir, preservar e transmitir privilégios. Quem tá no lugar de privilégio não quer sair, porque privilégio é gostoso. É essa estrutura que a gente tem que quebrar”, apontou Bento.

Privilégios e responsabilidade

Seguindo no tema do privilégio, Bueno aproveitou o fato de estar em um evento literário para cobrar as grandes editoras que estão publicando autoras negras como Cida Bento, que entenderam que esses livros vão ser best-sellers porque tem muita gente esperando há muito tempo por eles.

“Vou aproveitar que a gente tem muita gente de grandes editoras pra fazer uma provocação: o que é feito do lucro desses livros? Quanto desse dinheiro vai pra comunidades negras? Pras periferias? Quanto desse dinheiro vai pra esses lugares onde é fundamental que cheguem as palavras de Cida Bento, de Sueli Carneiro, as minhas?”, questionou. “Sobretudo porque essas pessoas possam se entender como produtoras de conhecimento. Ler essas mulheres foi pra mim a abertura de um possível, de poder pensar o mundo e produzir conhecimento a partir de perspectivas diferentes.”

Bento aproveitou a deixa: “O que é ser antirracista? É todas essas grandes editoras que estão aqui se manifestarem contra a violência racial, se manifestarem contra tirar as câmeras dos uniformes da polícia. Ser antirracista é isso, romper o pacto é isso. Comprar espaços na Folha, no Estado, esses lugares que esse povo que está no poder lê, e se colocar contra essas políticas”.

Ainda assim, ela acredita que está havendo mudanças. “Sou otimista porque tenho visto isso mudar o tempo inteiro. A gente só falava disso pra nós mesmos, mas agora isso está nas escolas de samba, está nos morros, está nas livrarias. A nossa sociedade tem muito mais coisas maduras do que a gente consegue identificar. Eu não tenho dúvida de que precisa mudar mais, que precisa acelerar, mas a mudança está em curso e não tem volta.”

“Tem uma necessidade de se afirmar antirracista, que eu entendo e acho muito bonita, mas a gente precisar repensar as nossas condutas, não só nosso vocaubulário antirracista. Porque, se a gente de fato tiver compreendido esses conceitos, a gente vai precisar agir de forma mais incisiva”, completou Bueno.

Celebrando o fato de que intelectuais como Cida Bento, Sueli Carneiro e Jurema Werneck estejam recebendo o reconhecimento que sempre mereceram, ela não deixou de lembrar a forma como a literatura sempre desumanizou as mulheres negras.

“Me vem sempre a imagem da tia Anastácia [de O sitío do pica-pau amarelo]. Sempre me incomodou muito como uma boneca de pano e um sabugo de milho tinham mais humanidade que a mulher negra, tinham maior capacidade crítica, mais subjetividade. E essa imagem permeou a formação de muitas gerações”, apontou.

“Quando mães, educadoras, escritoras negras questionam isso, pedem mais subjetividade pra tia Anastácia, isso incomoda muito os grandes pensadores da literatura brasileira, eles dizem que temos que pensar Monteiro Lobato como um homem de seu tempo. Se é pra pensar Monteiro Lobato como um homem de seu tempo, tem que pensar Monteiro Lobato como um homem eugenista, racista, de um período recém-saído da escravidão, que colocou isso na sua literatura”, completou, sob aplausos.


A escritora Juliana Borges [Sean Vadaru/Divulgação]
 

Para Bento, “não adianta pensar que tem um processo de mudança que não tenha diálogo com o branco, porque é o branco que ocupa os lugares de decisão nas instituições”. É por isso que faz questão de ir falar em escolas particulares. “É lá que eu quero estar, porque é lá que estão as pessoas que vão ter a caneta, que vão ser os futuros operadores do direito que vão achar que tudo bem amarrar uma pessoa negra pelos pés e mãos e carregar pra lá e pra cá. O conceito do que é uma boa escola, uma boa educação, também precisa ser repensado.”

A conversa entre Bento e Bueno foi parte da curadoria realizada por Juliana Borges com o tema “Perspectiva amefricana”, que também incluiu a mesa Continuo preta, um diálogo entre Sueli Carneiro e Bianca Santana, que também tocou em temas como privilégio branco.

A Feira do Livro acontece de 7 a 11 de junho na praça Charles Miller, no Pacaembu, em São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Natalia Engler

É jornalista e pesquisadora de comunicação e gênero.

Matéria publicada na edição impressa #70 em maio de 2023.