Literatura,

Por um feminino africano

Vencedora do Prêmio Camões em 2021, a moçambicana Paulina Chiziane celebra a história das mulheres africanas e dá voz aos que estão à margem

28jul2022 • 12mar2024 | Edição #60

Quando Paulina Chiziane ganhou o importante Prêmio Camões, em outubro de 2021, a escritora moçambicana chegou a perder a audição, devido à quantidade de entrevistas realizadas nos dias que se seguiram ao anúncio. Atenção parecida teve sua passagem pela Bienal do Livro de São Paulo, em julho. O fato de ser a primeira africana a alcançar a principal homenagem a escritores de língua portuguesa justifica o sucesso, mas não só. Paulina é carismática. É com ironia e humor que ela trata de opressão religiosa, colonização ou desigualdade de gênero. No Brasil, ela tem obras publicadas pelas editoras Nandyala (Tenta!), Dublinense, (O alegre canto da perdiz) e Companhia das Letras, que editou Niketche: uma história de poligamia e até o fim de 2022 lança outros quatro, entre eles Balada de amor ao vento.

Paulina recebeu a Quatro Cinco Um no hotel onde estava hospedada, em São Paulo, no dia em que chegou ao país. Mesmo cansada da viagem, falou sobre todas as questões que permeiam sua obra. E também sorriu. De tudo e muito. 

Como foi a festa quando a senhora ganhou o Prêmio Camões?
Foi uma confusão. Só sei dizer que as entrevistas foram tantas que, em algumas, nem lembro o que disse. Um dia tive uma surdez de estar no telefone de manhã à tarde. Aquilo foi um furacão. Mas foi bonito.

A repercussão em Moçambique, seu país natal, foi enorme…
Não apenas em Moçambique. Fui a Angola para uma celebração ao lado de grupos juvenis ligados a questões negras. Em minha casa, tenho recebido artistas de países que falam português, como Guiné-Bissau e São Tomé, que me procuram só para ter um abraço e trocar impressões. Esse prêmio foi muito importante para as mulheres e as pessoas de raça negra. Quando [o poeta] Zé Craveirinha o ganhou, houve as felicitações oficiais. Já com Mia [Couto], foi um pouco mais festivo. Mas comigo é todo mundo. Pode ser o efeito da novidade, de ser pela primeira vez uma pessoa preta e uma mulher. 

A senhora costuma ser celebrada por feministas. O que acha disso?
Eu não gosto de etiquetas de espécie alguma: nem feminista, nem romancista, nem nada que se pareça, porque gosto de sentir a liberdade de caminhar em todos os meios. Para mim, as feministas foram a maior revolução do século 20. Mas o feminismo não é linear, assim como o ser feminino. Venho de uma África que tem uma história de construção de sociedade e de mundo diferentes. Que tem mulheres muito mais fortes e guerreiras do que as da Europa e da América. Nós, africanas, ainda não tivemos tempo de estudar o nosso feminismo. Eu primeiro reclamo o meu feminino para depois passar ao feminismo. 

‘Um dos meus problemas são as temáticas que escolho, consideradas subalternas, proibidas ou tabu’

Qual é, então, o papel do colonialismo nesse contexto?
O colonialismo queria derrubar toda a estrutura social africana. As negras deveriam ser mulheres de cama, que o homem branco podia usar e abusar. A África teve mulheres poderosíssimas. Estou a falar da rainha de Sabá, de Cleópatra. Mas o sistema colonial, com as suas religiões, apagou tudo. Por isso, antes de falar do feminismo, deixa-me estudar a história dessas mulheres. As africanas têm que recuperar esse legado para depois escrever um feminismo escuro, sem as marcas da Europa e da América. 

A senhora acredita que as mulheres têm mais coisas interessantes a dizer na literatura do que os homens?
Aqui é uma conversa muito longa. O verdadeiro guardião de uma sociedade e de uma cultura é a mulher. Tive uma experiência recente de trabalho com prisioneiras [o livro A voz do cárcere, sem previsão de lançamento no Brasil], em que entrevistei várias mulheres e homens. Há uma história bonita e dolorosa, de uma mãe de nove filhos, que é presa. O marido arranja uma nova esposa. O drama dela é dizer: “Não sei se, quando voltar, vou encontrar os meus filhos”. Depois, falei com um homem, também com nove filhos. Ele disse: “Sei que os meus filhos estão a sofrer. Ficaram com a mãe, que faz o possível e o impossível para mantê-los juntos”. No mundo em que a mulher está presente, a sociedade não se degenera. Sua ausência é a desintegração total de uma família. Isso prova que a mulher é pedra basilar de toda construção social. Ainda estamos na luta por direitos, mas tem de haver uma fase em que a própria mulher reconheça seu verdadeiro lugar. Tudo isso para dizer que, de fato, temos um mundo a expor, ainda trancado nas gavetas dos preconceitos. 

Como era a cena literária em Moçambique quando lançou Balada de amor ao vento (1990), o primeiro romance publicado por uma mulher negra moçambicana?
Machista e racista. No tempo colonial, tivemos Glória de Santana [1925-2009], uma portuguesa-moçambicana que era contista; e Clotilde Silva, que fazia poesia. Eram brancas. Depois, veio a Noêmia Souza [1926-2002], uma poetisa, e Lilia Momplé. As duas, mulatas. Então, começam a vir as negras. Há uma hierarquia que tem a ver com a estrutura colonial: primeiro quem teve acesso foram os homens brancos; depois, as mulheres, seguidas por mulatos. Com os negros foi a mesma coisa. São poucas as mulheres que publicaram, e todas as que o fizeram antes de mim escreveram poesia, contos ou crônicas. Eu nem sabia que estava a fazer um romance: só fiz uma história enorme!!! [risos]

Balada de amor ao vento chega ao Brasil em novembro. Qual a trama?
É uma história de amor adolescente, em que a família determina que a mulher tem de casar com o homem, mas ela tem sua paixão, e os conflitos em volta disso. Quando lancei, alguns homens diziam: “Paulina, de quem copiaste isso? Não é normal uma mulher escrever todas essas páginas” ou “Uma mulher escrever um romance? Que capacidade tem?”. Houve muita fala, mas, pronto, agora têm que aceitar a realidade. [risos]

A senhora foi muito criticada pelos temas de seus livros?
Estou a ser até hoje. Um dos meus maiores problemas são as temáticas que escolho, consideradas subalternas, proibidas ou tabu, como a poligamia. Mais graves ainda são a feitiçaria, as nossas crenças. Tenho um gosto especial de falar com pessoas cuja voz é abafada. São temas que não agradam a ninguém. 

Quais histórias gosta de contar?
Sei lá. Conto qualquer história, desde que ela me convença, me agrade e emocione. Acontece muitas vezes ir rua afora e ver um acontecimento. Chega um momento em que a memória vem e faço uma nota num pedaço de papel, e vou embora. 

Seu grande sucesso, Niketche: uma história de poligamia, surgiu assim?
Que história magnífica: eu, sentadinha na varanda, a ver a banda passar — como dizem os brasileiros —, vejo duas mulheres que vinham disparadas. Elas vão à casa na frente da minha, batem à porta e gritam “sai daí, sua bruxa”. A mulher [da casa] aparece, e começam os palavrões: “Vim te dizer que teu marido também é nosso. Quando estava com essa barriga enorme, era eu que dormia com teu marido”. O tipo, quando chega, descobre que são suas mulheres e desaparece. Pronto, dou por mim, estou a escrever a memória daquele dia. Quando menos esperava, o livro estava a sair. Sem método, sem planos. 

A intelectual brasileira Lélia Gonzalez criou o termo “pretuguês” em referência à africanização do idioma falado em nosso país… 
Esse termo, pretuguês, é o mesmo que se usava em Moçambique no período colonial: quando fosse um preto a falar, não era português. Havia o pretuguês, português falado pelos pretos, e a língua do cão, que era a nossa língua materna. Mas, enfim, deixa-os com as suas coisas, que nós vamos continuando a falar as nossas línguas e a portuguesa como queremos. Eu nunca tive um conflito com o português; pelo contrário, comunico-me bem com todo mundo através dele. Vou usando, abusando e moldando-o de acordo com as minhas necessidades. Acho que todo mundo já percebeu que cada um de nós tem direito a ter a sua língua portuguesa. 

Para os brasileiros afrodescendentes, seus livros permitem vislumbrar um passado que não tivemos. A senhora concorda?
Houve uma leva humana que trouxe para cá uma memória que não ficou lá. A partir do Brasil, recupero a lembrança que me falta do período da escravatura. Um africano fica mais completo quando tem essas duas versões. De outra perspectiva, nós temos recordações de colonização, que são bem diferentes. A partir de nós, o Brasil completa também a parte que lhe falta. Não se deve apagar a escravatura. A construção de um mundo novo depende disso. Temos de saber o que se passou ontem, e o que se passou aqui no Brasil foi horrível. 

Como é sua relação com o Brasil?
Começou de uma forma estranha. Recebi um convite para ir a Belo Horizonte e vim muito feliz, participar de uma conferência. Ouvi coisas bonitas e, para uma menina jovem, foi um encanto. Até eu perguntar: “Se há uma coisa que eu gostaria de ver aqui são os índios. Onde é que estão?”. Falei isso na maior inocência. Deram-se as respostas mais politicamente corretas, mas começaram a deixar-me pontos de interrogação. E eu começo a penetrar na realidade dos negros e dos índios brasileiros a partir dessa questão. Diziam: “os negros não gostam de leitura, preferem o futebol”, “os índios não gostam muito de civilizar”. Mas alguns negros que estavam na sala vieram dizer-me a realidade. 

Da literatura contemporânea brasileira, o que a senhora lê?
Dos escritores negros contemporâneos, tenho contato fraterno com Conceição Evaristo, que conheci em Fortaleza. Estou num quiosque, à procura de uma prenda para minha filha. Viro para o lado, vejo alguém e digo: “Mas como é que a minha irmã veio parar aqui?”. Ela me olhou e disse: “Olá, menina, que é que está fazendo aqui?”. Respondi que era escritora, começamos a conversar e ficamos amigas. Já trabalhei com várias pessoas e tenho livros editados aqui. A literatura brasileira faz parte de nós.

Escreve desde criança?
Nem sei. É tão difícil de saber. Mas eu sempre gostei de fazer coisas artísticas. Gostava de pintar, mas não pude porque o estatuto social da minha família não permitia ser pintora. Gostava de cantar, mas uma carreira de cantora, para uma mulher, também não dava certo. Então comecei a expressar-me escrevendo. 

Como foi sua infância?
É tão difícil eu falar disso. Vai me perdoar… Nasci no campo, no período colonial, quando ninguém podia ser nada, a não ser pedreiro, sapateiro. Meu pai era alfaiate de esquina e depois teve sua pequena oficina. Minha mãe era uma camponesa. Sou uma mulher de muita sorte porque, apesar de ter nascido num contexto tradicional, meu pai achou que devíamos ir à escola. Ele foi muito criticado, mas, graças a isso, estamos aqui.

Tinha planos de ser escritora?
Nunca cheguei a pensar na escrita como um ofício. O que aconteceu é que comecei a ler livros de outras pessoas e pensar: “Parece que meus textos são melhores do que este”. Isso me deu coragem para publicar.

Em uma entrevista, a senhora disse que iria parar de escrever…
Nunca pensei em parar. Alguns jornalistas são tendenciosos. Vieram ter comigo, saber uma série de coisas para criar um artigo de conflito e eu não gostei. Então, disse: “Comigo, não contam, porque não vou escrever mais”. Como não tinham nada de sensacional, acabaram publicando isso.

O que está escrevendo agora?
Nada. Estou de férias. Mereço! .

Quem escreveu esse texto

Adriana Ferreira Silva

Jornalista, escritora e palestrante, trata de temas como desigualdade de gênero e liderança feminina.

Matéria publicada na edição impressa #60 em julho de 2022.