Literatura israelense,

Imperativo político

Um escritor de Israel precisa escrever sobre conflitos específicos? Quatro autores discorrem sobre o tema

01maio2022 | Edição #57

Há escritores que têm o direito de escrever sobre o que bem entendem — um homem que vira uma barata, uma mulher que decide comprar flores, uma menina que quer namorar um vampiro. De outros autores de ficção, porém, se espera que tratem só dos temas específicos de sua cultura. É, de certa maneira, o caso dos israelenses. Parece existir uma expectativa constante de que sua obra aborde e reflita o abuso dos direitos dos palestinos, a ocupação da Cisjordânia e as guerras da região. Também se espera, aliás, que os escritores palestinos só escrevam sobre suas agruras.

A Quatro Cinco Um ouviu três dos escritores israelenses mais renomados da atualidade — Ayelet Gundar-Goshen, Rutu Modan, Etgar Keret — sobre essa questão. A reportagem conversou, também, com Shir Alon, que pesquisa a ficção produzida em Israel, em hebraico. A primeira pergunta foi a mesma para todos os entrevistados: “um escritor israelense precisa tratar de política em sua obra?”. As respostas variaram, mas expressaram uma frustração em comum. Nenhum deles acredita que os autores devam ignorar a política de seu país. Eles se posicionam publicamente, aliás, contra as ações do governo e por vezes tratam disso na sua obra.

Por outro lado, esperam ser tratados como os escritores americanos e europeus são, ou seja, com a liberdade de explorar temas universais e não só locais. Suas palavras ecoam, de certa maneira, o que o escritor David Grossman disse a esta revista em uma entrevista publicada na edição de abril. Seu livro, disse ele, “merece ser discutido como uma obra de arte literária, não como política”.

Ayelet Gundar-Goshen


[Tal Shahar/Divulgação]

Autora de Uma noite, Markovitch (2012) e Despertar os leões (2014), publicados pela Todavia. Trabalha também como psicóloga. Sua obra é marcada pela tentativa de forçar os leitores a se imaginar no papel do protagonista e se perguntar o que, de verdade, teriam feito no lugar dele.

Um escritor israelense precisa tratar de política em sua obra?
Tudo o que você escreve é político. Quando você se silencia, também está fazendo um gesto político. Se você não fala sobre o que está acontecendo em Israel — não necessariamente uma referência direta à ocupação, pode ser uma metáfora — na sua obra, isso também é algo político.

Mas eu não acho que você deva examinar cada livro da obra de um autor para ver se ele está se referindo à ocupação. Você não leria um autor americano para ver se ele trata da questão racial ou da desigualdade. Escritores precisam estar envolvidos na política, porque nós somos figuras públicas. Se temos um microfone em nossas mãos, existe uma responsabilidade envolvida. Um escritor tem que falar na esfera pública. Só que você não pode dizer para uma mulher que ela precisa escrever sobre feminismo, como não pode dizer a um israelense que precisa falar sobre a ocupação dos territórios palestinos. Isso limita a arte e a transforma em propaganda.

Seu primeiro livro, Uma noite, Markovitch, é talvez o que fala mais diretamente sobre a política, ao narrar o estabelecimento de Israel em 1948. Seus outros livros tratam talvez de outros tipos de política, como racismo, migração, assédio sexual. A senhora concorda?
Mesmo quando não falamos sobre política doméstica, isso não quer dizer que não estamos lidando com questões de poder, de identidade. Essa é uma maneira de achatar a literatura, de fazer com que seja uma lista de tarefas. A literatura é mais do que isso. Quando você olha para a condição humana, para as escolhas que fazemos… Isso tem implicações políticas, mesmo se não mencionarmos.

Quem costuma ter essa expectativa? Os leitores estrangeiros ou também os israelenses?
Por um lado, existe essa ideia do exótico. As pessoas querem ver o Brasil das favelas, das selvas. Ninguém de fora quer ver uma família brasileira de classe média. Mas isso é uma discriminação. Por que é que pessoas em alguns países merecem narrar suas crises conjugais e quando falamos do Brasil tem que ser algo exótico e no Oriente Médio precisa ser sobre conflito? Meu trabalho não é o de fornecer novidades. Faço literatura. Mas eu entendo por que as pessoas dizem isso.

Mesmo quando não falamos sobre política doméstica, isso não quer dizer que não estamos lidando com questões de poder’ (Ayelet Gundar-Goshen)

Os escritores israelenses têm lidado com a política desde a criação do país. Um dos primeiros livros, Khirbet Khizeh (1949), de Samech Yizhar, por exemplo, fala da expulsão dos palestinos.
Khirbet Khizeh é um ótimo exemplo. Parece ser uma história sobre israelenses e sobre o que fizeram com os palestinos. Mas isso deixa algo de fora: o espelho. Se o leitor estivesse naquela mesma situação, presenciando uma injustiça, faria alguma coisa para impedi-la? Se a gente olha para o romance como algo sobre um país, deixa de lado aqueles aspectos com que a literatura nos confronta. Não se trata do que israelenses são capazes de fazer, mas do que humanos são capazes.

Sua obra faz exatamente isso. Por exemplo, ao ler Despertar os leões, o leitor se pergunta se ajudaria um migrante africano depois de atropelá-lo no meio do deserto vazio.
O tratamento dos refugiados da Eritreia em Israel é, por um lado, um tópico bastante local. Mas o livro não é sobre como israelenses tratam refugiados, e sim sobre a responsabilidade humana. Quando você faz literatura, exercita sua empatia. 

Você precisa ser capaz de conviver com narrativas que se contradizem entre si. Toda pessoa tem a sua própria narrativa sobre o mundo. Quanto mais você exercita a habilidade de perceber que existem muitas perspectivas diferentes, mais difícil se torna você ser nacionalista ou populista. O populismo é o antagonista da literatura. A literatura trata de camadas e complexidade. O populismo seria uma única narrativa verdadeira. O ex-premiê Binyamin Netanyahu era um mestre em criar essas narrativas de “bem versus mal”.

Exercitar a empatia, como a senhora diz, pode levar a transformações reais na política?
Não acho que um romance pode nos salvar. Mas, quando você lê um livro, você se força a se identificar com os personagens. Você se força a ver o mundo pelos olhos dos outros, o que é a base da empatia. Em um conflito, o que o governo pratica é a falta de empatia, a desumanização.

Rutu Modan


[Hanan Assor/AcervoPessoal]

Quadrinista e uma das fundadoras do Actus Tragicus, um importante coletivo de autores de hqs israelenses. Seu livro Exit Wounds (2007) narra a busca de um filho pelo pai, que ele acredita ter morrido em um ataque terrorista. Sua hq A propriedade foi publicada no Brasil em 2015 pela editora Martins Fontes.

Um escritor israelense precisa tratar de política em sua obra?
Quando comecei a publicar meu trabalho no exterior, essa era sempre uma das primeiras perguntas das entrevistas. Sentia a expectativa de que eu devesse tratar da política. É compreensível. As pessoas ouvem falar sobre a política israelense, e é confuso. É confuso também para a gente, que mora aqui. Então entendo por que as pessoas esperam que eu explique o que está acontecendo. Há uma curiosidade. “Você que está aí, pode explicar a situação para a gente, e pode simplificar?”

O que é difícil fazer…
É impossível. Talvez não seja justo pensar que eu possa explicar algo tão complicado, ter a resposta para uma pergunta tão difícil, uma charada. Sou uma pessoa, tenho muitas outras coisas na cabeça além da política. Tenho minha vida, meus problemas. Como qualquer outra pessoa em qualquer outro lugar. Mas é uma pergunta que eu me fiz todos esses anos. Tenho a responsabilidade de falar sobre política? Como posso fazer isso? 

E tem outra coisa: a maior parte dos meus leitores está no exterior, e não em Israel, e eles esperam que eu apresente uma espécie de certificado kosher atestando que eu sou uma boa pessoa [no judaísmo, o termo kosher designa uma comida que pode ser consumida, dentro das normas religiosas]. Isso é insuportável.

Apresentar um certificado kosher, nesse contexto, é condenar a ocupação publicamente?
Sim, e não tenho nenhum problema em condenar a ocupação, exceto pelo fato de que esperam que eu o faça. Esperam que eu pense de uma determinada maneira. Minha natureza é enxergar a complexidade de qualquer situação, ver um problema por todos os lados. É quase um passatempo meu ouvir uma segunda opinião. Quando escuto uma fofoca, vou à outra pessoa ouvir seu lado.

São só os estrangeiros que esperam que você trate de política, ou os israelenses também?
Não. Leem meus livros como qualquer outro livro. Gostam dos desenhos e da história, ou não. 

‘A maior parte de meus leitores espera que eu apresente uma espécie de certificado kosher atestando que eu sou uma boa pessoa’ (Rutu Modan)

Desde o começo, a literatura israelense tratou da questão política. É o caso dos gibis?
É difícil falar de quadrinhos em Israel como falamos de literatura, de cinema, de artes plásticas… Não há um mercado como existe em outros países. É um grupo pequeno de artistas e de leitores. A maior parte dos quadrinhos que saem em Israel é de autopublicações. Eu sou uma exceção.

Existe alguma coisa que as HQs podem fazer que outros gêneros não podem, na política?
Você tem tanto imagem quanto texto. Mais do que isso, ao contrário do que acontece no cinema, nos gibis a imagem e o texto não estão combinados. Há duas vozes, o que é ótimo para a ironia, algo importante para mim. Uma outra coisa é que os desenhos não são fotografias, não são “reais”, e por isso permitem que a gente se descole da realidade. É uma abstração da realidade, e isso nos ajuda a retratar situações extremas. Se você pensa na HQ Persépolis (2000), de Marjane Satrapi… Ela retrata tortura, decapitações. Mas são desenhos, e mesmo uma criança pode ler.

Seus primeiros gibis não tratavam de política. Os mais recentes são bem mais explícitos.
Eu não conseguia encontrar a maneira correta de fazê-lo. Não me sentia honesta o bastante. Todos os meus personagens têm algo de mim que quero mostrar para o mundo, algo que talvez eu esconda de mim mesma. A primeira coisa que me vem é a história, e não uma opinião política.

Exit Wounds é notável porque não trata de política diretamente, mas a política está lá.
Exit Wounds é sobre o meu relacionamento com o meu pai, que não desapareceu, mas se parece com o personagem do pai no gibi. Em Tunnels (2021), falo sobre maternidade, o que não é uma questão menos importante do que a política. Meus personagens nunca são políticos. Eles não ligam para as coisas ao seu redor, são bem egoístas. Mas a política está presente, quer eles queiram ou não. Uma das coisas que exploro na minha obra é o indivíduo preso em um tempo e um lugar que ele não escolheu. Eu posso até tentar evitar, mas não posso me esquivar do fato de que eu nasci em Israel, fui criada em Israel e sou o produto de um sistema educacional sionista.

Há um momento interessante na sua carreira quando a senhora publica um trabalho jornalístico em quadrinhos, War Rabbit (2009). Como foi essa experiência?
Foi diferente. Eu nunca me interessei por jornalismo em quadrinhos. Minha paixão é a ficção. Posso ser mais honesta, mais aberta. Mais certeira. Eu estava morando na Inglaterra e fui passar as férias em Israel, em 2009. Uma dessas coisas. Ataques em Gaza. Foi horrível. Eu tinha recebido um convite de uma editora francesa para publicar um quadrinho jornalístico e eu não queria aceitar. Mas, naquele momento, senti que seria irresponsável da minha parte negar. Só que não sabia o que fazer. Então falei com um amigo meu, jornalista, e ele me levou em uma viagem ao sul de Israel. Visitamos uma cidade na fronteira com Gaza, falamos com as pessoas. Gosto do resultado, é bom. Mas sinto que não sou eu. Não é o meu formato. A realidade não é o bastante.

Etgar Keret


[Jonathan Goor/Divulgação]

É o irreverente autor de De repente, uma batida na porta (2010) e Sete anos bons (2013), publicados aqui pela Rocco. É conhecido por seus contos ambíguos e cheios de reviravoltas. É famoso, também, por sua linguagem popular — razão pela qual é um queridinho entre os jovens israelenses.

Um escritor israelense precisa tratar de política em sua obra? 

Tenho muitas coisas contraditórias a dizer. Você pode escolher aquelas que fizerem mais sentido. Quando você fala com um escritor, é legítimo perguntar como ele representa a realidade em suas histórias. Você poderia perguntar a um escritor esquimó por que ele não escreve sobre o frio. É justo perguntar sobre política. Além disso, não existem textos políticos e textos apolíticos. É bem difícil escrever sobre alguma coisa que não tenha implicações políticas.

‘Há essa confusão de que você pode praticar na literatura coisas que não pode fazer na vida real’ (Etgar Keret)

Por outro lado, estou celebrando os trinta anos do meu primeiro livro. Estou aqui há bastante tempo. Sempre falo com jornalistas estrangeiros, e as perguntas são sempre as mesmas — apesar de a realidade ter mudado imensamente ao nosso redor. Não estou dizendo que a ocupação [dos territórios palestinos] não existe mais. Mas dar uma entrevista que eu poderia ter dado em 1997 é um pouco como quando visito meu filho e vejo que os professores ainda escrevem com giz…

É uma expectativa injusta?
Como escritor, ouço mais atentamente o subtexto do que o texto. Cada vez mais, me parece que há menos diálogo e mais uma guerra entre gangues. A vida toda, fui meio que membro da gangue da esquerda em Israel. Agora sinto que as pessoas na minha turma me criticam por não ser político o suficiente, ou não ter personagens mulheres o suficiente nos meus romances. O mundo está ficando binário. Tem que ser “sim” ou “não”. Só que os escritores são, por natureza, atraídos pelo que é obscuro, ambivalente, pelo que é paradoxal. Participei de passeatas, defendi a solução de dois Estados. Eu ainda faço isso. Mas às vezes tudo parece meio estagnado. Quando comecei a escrever, sentia que escrever contos políticos sobre Israel era como aquelas fotos que você vê nos cartões-postais. Se eu pedisse que você me mandasse um cartão-postal do Brasil, você provavelmente me enviaria uma fotografia de Copacabana. Mas esse não é o Brasil.

Eu não digo a mim mesmo “preciso escrever um conto sobre um palestino oprimido por um judeu”. Posso escrever ensaios sobre isso, o que fiz repetidas vezes. Meu conto “One gram short”, que publiquei na revista americana New Yorker, aborda a xenofobia, como os árabes são tratados de maneira diferente em Israel. Minha maneira de lidar com a política é mostrar como os meus personagens agem. Tento encontrar o ponto cego, contar algo que confunda os meus leitores, em vez de contar algo que eles já sabem. Quando escrevo um conto, não estou balançando uma bandeira palestina, estou escrevendo sobre a humanidade. Há essa confusão de que você pode praticar na literatura as coisas que você não pode fazer na vida real. Dizer que um escritor israelense só pode escrever sobre palestinos… Esses mecanismos fazem todo o sentido, mas estão aleijando a arte. Arte é arte, vida é vida — e às vezes elas se encontram em algum lugar.

Onde a política entra, na sua obra?
Minha ideia da vida é de uma instabilidade que fica cada vez mais forte. Não conseguir entender o que está acontecendo. Quando escrevo sobre os territórios, escrevo sobre eu não estar entendendo como algumas pessoas acham que não tem problema oprimir outras pessoas. Moro em Israel. A tensão chega até a minha soleira, mas não moro nos territórios. Do mesmo modo, eu sou um vegetariano que não dedica a vida à causa vegetariana. Há feminismo nos meus contos, mas não sou um ativista feminista. Eu sou uma pessoa que tenta diferenciar o certo do errado.

Quase todos os bons escritores israelenses, se falavam de política, eram de esquerda. Se, depois de 75 anos de trabalho duro — de 1948 até hoje —, ninguém conseguiu escrever o texto definitivo, a palavra mágica que vai consertar todas as coisas… Provavelmente esse texto não vai ser escrito. Se alguém aborda um texto procurando todas as coisas certas, não deve vir até mim.

Shir Alon


[Divulgação]

Professora-assistente de estudos médio-orientais na Universidade de Minnesota, especializada em literatura em hebraico e árabe e doutora em literatura comparada pela Universidade da Califórnia. Publicou seus estudos em algumas das revistas acadêmicas consagradas desse campo. 

Um escritor israelense precisa tratar de política em sua obra?
Há períodos em que a literatura israelense tem bastante interesse em mapear a ocupação e o conflito. Autores se sentem obrigados. Assumem esse papel de representar, vestem o manto de falar de política em forma literária. Historicamente, a literatura em hebraico esteve completamente integrada a esse projeto. Essa pergunta é feita também em Israel, só que há momentos em que é mais fácil fazer literatura sem falar sobre a ocupação. Desde a construção do muro [separando Israel da Cisjordânia, nos anos 2000], desde a Segunda Intifada [2000-05] há muito menos interação com a política, que já não é mais uma parte tão grande da vida israelense.

É uma expectativa doméstica também, não apenas de leitores que vivem fora do país?
Sim. Mas são os escritores que circulam fora do país que se posicionam para falar de política. Tem a ver com o circuito universitário, com o marketing. Ao menos nos eua, grande parte do público leitor está na universidade, no circuito de estudos judaicos. Isso molda as expectativas.

‘Autores se sentem obrigados, assumem esse papel de representar, vestem o manto de falar de política em forma literária’ (Shir Alon)

Como a senhora disse, existe uma tradição desde a fundação de Israel de falar de política.
Mesmo antes disso. A ideia de escrever em hebraico estava atrelada ao projeto sionista de formar um Estado, uma comunidade que falasse hebraico e tivesse sua literatura. Nos anos 20, 30, antes do Estado, havia uma literatura de fronteira, de colonização, que criava um lugar em uma nova geografia e explorava de que modo a comunidade pertencia àquele território onde já havia um outro povo.

Isso muda em 1948, quando o Estado passa a existir?
Leva um tempo para a comunidade criar o seu espaço. As pessoas escrevem de tudo. A questão é o que acaba virando parte do cânone, o que ainda lemos daquelas décadas. Nos anos 80 houve uma espécie de guinada a partir da qual os escritores já não se sentiam tão presos a esse éthos nacional e adotavam um ponto de vista mais individualista. Isso tem a ver com o desenvolvimento da sociedade israelense, com a normalização da ocupação, com a diminuição da ameaça existencial. E com o neoliberalismo, as mudanças no capitalismo, as novas precariedades.

No caso da literatura árabe, a derrota na Guerra dos Seis dias, em 1967, foi um ponto de inflexão tanto em termos de forma quanto de conteúdo. É justo dizer que o ponto de inflexão da literatura israelense foi a invasão do Líbano em 1982?
Foi um ponto de inflexão, certamente. Não apenas produziu muita literatura crítica, antiguerra, antimilitarista, antiexpansionista — mas teve também um legado duradouro de todo tipo de experimentação na forma. Etgar Keret é parte desse momento da literatura, experimentando outras maneiras de narrar uma história, menos lineares e menos interessadas na ideia alegórica de que uma pessoa representa a nação, o progresso nacional. É mais esotérico, fragmentado. A Segunda Intifada [levante palestino do início dos anos 2000] certamente encerra esse momento.

Como?
O período depois dos Acordos de Oslo, de 1993, foi de bastante otimismo. Havia espaço para pensar em novos futuros. De repente, a ideia da normalização parecia possível. Escritores como David Grossman produziam em um contexto que apontava para um novo horizonte. Mas, depois da Intifada, houve decepção quanto à possibilidade de uma solução política de longo prazo. Há um interesse na política apenas de um ponto de vista estático, como expresso pelo termo hebraico hamatzav [“a situação”]. É uma literatura que não é mais capaz de imaginar um tipo de futuro diferente. A política de alguma maneira passa a ser configurada de uma forma insolúvel.

A maior parte dos escritores israelenses conhecidos por falar sobre política em sua literatura são homens — é o caso, por exemplo, de A.B. Yehoshua, Amós Oz e David Grossman. Por quê?
É uma sociedade militar, e é sempre mais fácil falar de política sendo homem. Os três patriarcas — Yehoshua, Oz, Grossman — se apresentam como vozes políticas, observadores. Posicionam-se como figuras de autoridade no Estado israelense, na política, nas relações com a diáspora. É muito mais difícil uma mulher fazer isso e ser levada a sério, apesar de muitas tentarem, como Ronit Matalon e Orly Castel-Bloom. Elas acabam sendo vistas como vozes representando as margens.

A literatura pode levar a alguma mudança mensurável na realidade, na política?
A literatura serve para nos trazer mais histórias, mais maneiras de narrar a realidade, de compreendê-la. E essa multiplicidade de histórias e de ângulos molda nossas convicções. Daí a traçar uma linha entre isso e mudar o mundo, influenciar o mundo… é bastante mais complicado.

Essa editoria tem apoio do Instituto Brasil-Israel.

Quem escreveu esse texto

Diogo Bercito

É jornalista e autor de Vou sumir quando a vela se apagar (Intrínseca).

Matéria publicada na edição impressa #57 em fevereiro de 2022.