Literatura infantojuvenil,

A imaginação de Suzy Lee

A autora sul-coreana fala sobre o poder do brincar, seu interesse por fronteiras e a vida que continua após o final de uma história

28out2021 | Edição #52

Suzy Lee nasceu em Seul nos anos 70, quando a capital do país crescia após o esforço de modernização e reconstrução pós-Guerra da Coreia (1950-53). Foi lá onde estudou pintura, elemento central de seu trabalho com livros.

Espelho, primeiro volume da “Trilogia da margem” (completada por Onda e Sombra) e que neste ano ganhou nova edição pela Companhia das Letrinhas, traz uma menina que encara e estranha seu reflexo, assim como dança e sente com ele, que é espelhado na página oposta do livro. A história ilustrada é marcada pelos vazios — visuais, ilustrações com poucas cores, traços fortes e bastante espaço em branco na página; orais, notados na ausência de falas; e emocional, na criança que brinca sozinha no mundo real com momentos de fantasia.

A ausência também está presente em Rio, o cão preto, que será lançado em novembro pela mesma editora. O livro narra a história da acolhida do cachorro Rio por uma família, combinando as características narrativas visuais de Lee com um texto curto, intenso e objetivo. Assim, nos apresenta o cotidiano, o passar do tempo, a descoberta do preenchimento e do afeto, com a sutileza e as camadas interpretativas que surgem das poucas palavras, que foram traduzidas direto do coreano pelo coletivo de tradutores ARA Cultural.


Ilustração de Suzy Lee para Rio, o cão preto

 

Em entrevista à Quatro Cinco Um, Suzy Lee falou sobre o poder da imaginação, a importância do brincar na formação das crianças, seu interesse pelas estações e por fronteiras e a vida que continua após o final de uma história.

Marcado pela ausência, Espelho, publicado originalmente em 2003, é também um livro sobre solidão e perda (spoiler: no final, o espelho quebra e a menina perde sua companheira). De onde veio a ideia para essa história?
A ideia de Espelho veio originalmente do meu livro Alice no país das maravilhas (2002, Edizioni Corraini). Nesse livro, coloquei Tweedledee e Tweedledum no centro da página aberta como se estivessem se espelhando, então percebi que uma página pode ser um mundo real e a página oposta pode ser um mundo espelhado. O objeto “espelho” de alguma forma implica tristeza, porque a imagem no espelho não é real. Além disso, o espelho é frágil e deve ser quebrado em pedaços no final.

Onda e Sombra — livros que compõem a “Trilogia da margem” com Espelho — também não têm palavras. Por que você optou pela não palavra?
Imagens carregam vários significados simultaneamente e há uma lógica visual que apenas as imagens podem criar. Por exemplo, eu nunca disse que a outra garota, na página oposta, é uma garota refletida no mundo do espelho, mas os leitores imediatamente notam a mise en scène. Se houver um texto dizendo "Você está olhando no espelho", pode tirar a diversão de encontrar a pista visual dos leitores. Como não há nenhuma palavra que conte a história, os leitores olham para a imagem com muito cuidado; eles finalmente “leem” as imagens e caminham para resolver o quebra-cabeça. Normalmente, os livros ilustrados sem palavras pedem aos leitores que se tornem leitores ativos, e amo isso.

Você estudou pintura, depois artes do livro, e também faz ilustrações para outros projetos artísticos. No seu processo criativo, as imagens antecedem a narrativa? Como se dá essa construção?
Depende do projeto. Alguns projetos precisam apenas das imagens, sem palavras, usando a lógica visual. Nesse caso, as imagens vêm primeiro e a história é construída ao colocar outras imagens antes e depois. Porém, quando faço ilustrações para o texto de outros autores, as imagens que crio são inspiradas nas palavras. Mas não só as palavras e as imagens; existem ainda muitos outros elementos que podem afetar a forma final do livro. Recentemente ilustrei a letra da famosa canção coreana “Dream of Becoming Water” (sonho de tornar-se água). Como a letra era toda sobre água, pensei em fazer um livro que flui como água sem fim. A forma final virou um livro dobrado no estilo acordeão. O comprimento é de cerca de 6 metros quando está espalhado aberto no chão. A forma de um livro também pode ser um componente vital de uma história. Estou tentando usar todos os elementos que mostram "livridade" (as qualidades do livro) para transmitir a essência da história.

Neste e em outros livros, as ilustrações são feitas com carvão. Há alguma ligação especial com esse material?
Achei que precisaria de um traço forte para criar o movimento de um protagonista. O carvão pode criar o desenho da linha negrita e, ao mesmo tempo, as marcas de carvão podem ser esfregadas para criar o volume. Eu amo essa característica bipolar do carvão, então achei que era o material perfeito na época.

Em 2016, você foi finalista do Hans Christian Andersen, principal prêmio dado a autores de livros infantojuvenis. Na época, você disse: “No meu trabalho, quero apenas mostrar crianças brincando na própria imaginação, sem pensar em mais nada”. Por que esse foco na imaginação?
A imaginação significa o brincar. As crianças vivem para brincar. Quando brincam, podem ser o que quiserem. Crianças são pessoas pequeninas que são as mais fracas neste mundo real, mas podem ser as mais fortes em sua imaginação. A imaginação faz as crianças crescerem. Acredito que crianças que criam o seu próprio mundo tornam-se os adultos que sabem do que gostam e de como encontrar o caminho para serem felizes.

No seu Instagram, há fotos de plantas e menções às estações — pétalas de rosas caídas no chão, o vento passando pelas folhas de uma árvore, um pé de tomate, uma foto de uma mata com a legenda “fronteira entre verão e outono”. Qual é a sua relação com a natureza e com as estações do ano?
A natureza é misteriosa. Mudanças sazonais misteriosas fazem você pensar. Sim, eu escrevi que estou sentindo a fronteira entre o verão e o outono; ninguém consegue identificar a fronteira, mas obviamente está lá! Honestamente falando, estou interessada em todos os tipos de fronteiras — onde fica a fronteira da noite e do dia, como você sabe que está sonhando ou que está acordado? E você sabe exatamente quando as crianças se tornam adultas? Em certo sentido, a “Trilogia da margem” e Alice no país das maravilhas são sobre a fronteira entre ilusão e realidade. Se existe uma verdade certa em nosso mundo, acredito que está na fronteira!

Rio, o cão preto conta a história de um cachorro e sua acolhida. Dizem que “saudade” — sentimento expresso em palavras no livro — é uma noção brasileira. Você nasceu em Seul nos anos 70 e vive em Cingapura. Como você vê o cruzamento das culturas nos seus livros, que já foram publicados em dezenas de países? Existem adaptações ou particularidades no formato final em cada país?
É incrível que meus livros sejam publicados em muitos países, mas compartilham o mesmo sentimento. Não vejo nenhuma adaptação peculiar quando meus livros são aceitos em países diversos. Depois de conhecer leitores em diferentes lugares, pude entender o significado exato do adjetivo “universal”. De certa forma, os livros-imagens funcionam com base nessa universalidade. Fico tão feliz que a Companhia das Letrinhas publique Rio, o cão preto — gostaria de compartilhar nossa “saudade” com os leitores brasileiros.

Tanto Espelho quanto Rio não trazem um final feliz — em ambos, o final tem um quê de suspense. Por que você optou por esses desfechos?
Nem todo livro tem um final feliz — isso pode ser um tanto frustrante, mas é a vida! Deve haver vida que continua após o final de uma certa história. Espero que meus leitores possam continuar suas próprias histórias após o livro.


Ilustração de Suzy Lee para Rio, o cão preto

Quais livros ou histórias marcaram a sua infância?
Não havia muitos livros ilustrados ao meu redor quando eu era criança, mas lembro-me do momento em que encontrei The Shrinking of Treehorn, de Florence Parry Heide, ilustrado por Edward Gorey, na estante de minha mãe. Esses livros pareciam estranhos e misteriosos. Eu não entendia a história direito, mas sentia que a estranheza e o mistério eram o suficiente para mim quando criança. Talvez a sugestão de suspense e horror (!?) dos meus livros possa vir dessa ideia, de certa forma.

Como estimular o hábito de leitura entre as crianças?
Acho que o objetivo da educação da leitura é fazer com que crianças gostem de livros. Então, como fazer com que gostem de livros? A resposta é muito simples: dê a eles um livro divertido. Não é importante a quantidade de livros que são lidos. Se a leitura for repetida, ela se torna um hábito. Quero que as crianças sintam que o “livro” é um objeto divertido e que possam tê-lo quando quiserem.

Esse texto foi realizado com o apoio do Itaú Social.

Quem escreveu esse texto

Beatriz Muylaert

Jornalista e editora executiva da Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.