Fichamento,

José Falero

Autor do elogiado romance ‘Os supridores’ lança coletânea de crônicas sobre os becos, os bicos, os trabalhos, as paixões e as revoltas no mundo em que vive

24out2021 | Edição #51

José Falero proclama que escrever é um direito humano e reflete sobre a vida nas periferias das grandes cidades, as questões raciais e sociais do país e seus medos e desejos. Fala também da força da indignação, dos livros e dos Racionais MC’s nas crônicas de Mas em que mundo tu vive? (Todavia).

A proposta de publicar um livro de crônicas surgiu depois da repercussão de seu primeiro romance?
Foi o contrário. O Leandro Sarmatz, editor na Todavia, descobriu meu trabalho lendo meus textos na revista Parêntese e me convidou para lançar um livro de crônicas. Daí veio a pandemia, eu já tinha o romance pronto, e a gente inverteu o lançamento. As crônicas foram escritas entre 2019 e 2021. Aos 45 do segundo tempo, escrevi mais um texto para a revista e vi que era o título do livro. Acho legal porque pega o leitor pelo colarinho, diz: “Esta conversa é contigo”. E também porque a maior parte dos textos fala de um mundo inteiro que é varrido para debaixo do tapete. Eu me espanto quando as pessoas ficam espantadas com as coisas que eu escrevo, tenho vontade de perguntar: “Mas em que mundo tu vive que não sabia que o Brasil e as periferias são assim?”.

Além das periferias, em quais mundos você vive?
Todas as pessoas transitam em vários mundos. Eu transitava no centro, nas regiões mais nobres durante um período da minha vida. Algumas crônicas falam desse momento. Mas onde se deu minha socialização mais sólida e construí minha relação sujeito/cidade foi aqui mesmo, na periferia de Porto Alegre.

E o mundo da escrita?
Antes de escrever me meti em coisas que não têm diretamente a ver com literatura, como construção civil. Trabalhei como auxiliar de gesseiro. Quando tu acaba de colocar as placas, tem falhas, precisa passar uma massa, fazer repasse. Olha o nome. Quando comecei a escrever, pensava nisso. Escrevo dois parágrafos, faço o repasse. Às vezes com cada palavra, cada letra. Só que no repasse do gesso, uma hora fica perfeito. Já o texto pode melhorar sempre, mas nunca atinge a perfeição. Chega o momento em que a gente precisa terminar para se livrar daquilo.

Por que você escreve?
Gosto de fabular. Isso não é específico da escrita, está na música, nos quadrinhos, nos games, nos filmes. Mas a literatura potencializa a fabulação, dá para desenvolver uma cadeia de eventos, ideias e também desejos, emoções. Tem certas coisas que tu consegue na escrita que é como fazer um gol no Maracanã lotado. Quando isso acontece, fico pensando: como é que as pessoas não escrevem? Mas existe todo um mecanismo de distinção, a ideia de que não é qualquer um que pode escrever. Acho isso uma barbaridade, todo mundo tem que escrever, é um direito humano e até um dever. Escrevendo a gente se entende melhor, entende nossa posição no mundo, organiza as ideias.

Uma pergunta sobre a canção dos Racionais que faz parte da playlist das canções citadas no livro: qual é “A fórmula mágica da paz”?
Pois é, quando você perguntou por que escrevo, não falei a coisa mais importante. A gente trabalha para viver, mas vive para quê? Achei esse sentido da vida na escrita, antes mesmo de ter publicado qualquer coisa. Num dia em que pensei em desistir, imaginei uma entidade na minha frente que responderia a todas as minhas questões e perguntei: “Rapaz, um dia eu vou ser escritor publicado, ganhar dinheiro, reconhecimento?”. Ele disse: “Não”. E percebi que assim mesmo queria escrever. Evidentemente é legal ganhar um troco com a sua escrita, ter reconhecimento, mas minha realização é no ato mesmo de escrever. É minha fórmula mágica da paz.

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, , editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34)

Matéria publicada na edição impressa #51 em setembro de 2021.