Coluna

Bia Abramo

‘Playlist’ de histórias

Rodeado de fantasmas, livro de contos de Chico Buarque retrata um Brasil que desperta fascínio e horror

01dez2021 | Edição #52

Deve ser duro ser o Chico Buarque. Ou deve ser mole ser o Chico Buarque? Deixo para os historiadores da cultura brasileira do futuro essa resposta (caso haja tudo isso, historiadores, cultura, Brasil — e futuro). Mas é uma pergunta honesta que pode perseguir a leitura dos oito contos que compõem Anos de chumbo.

São 168 páginas, coisa rápida de ler. Formatinho menor, capa dura, um mimo. Não é a estreia de Chico escritor na forma breve, como diz o site da editora. A não ser que hoje em dia se use dizer forma breve em vez de conto, Chico Buarque já circulou várias vezes pela brevidade das formas: o conto “Ulisses” (1966, publicado no songbook A banda e no Suplemento Literário do Estadão), a novela-pecuária Fazenda modelo (1974), o poema-narrativo A bordo do Rui Barbosa (publicado em 1981, foi escrito com o colega da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo Vallandro Keating nos anos 60). Isso sem falar em mais de um cancioneiro que reúnem centenas de letras em mais de trinta álbuns de estúdio; algumas que se aproximam do poema, outras tantas da crônica e aquelas (mais ainda) excepcionais de manifestos lidos aos gritos em praça pública.

No entanto, desde que estreou no mercado editorial com um romance — Estorvo, de 1991 — Chico de fato não havia publicado nada parecido com os oito contos deste volume. Se os oito se dividem entre temáticas — e vozes variadas —, a vertigem entrópica do Brasil entre 2016 e 2021 parece ser o traço comum. Em seu último romance, Essa gente (2019), já essa velocidade se apresenta na figura do narrador-personagem, que registra entradas de diário, e-mails mal-educados ao editor, anotações de sonhos alternadas a mensagens de áudio de uma das ex-mulheres, a e-mails em português escorreito de outra e respostas de mensagens educadíssimas do editor em questão e do amigo de colégio. O narrador-personagem é um escritor em crise, devendo originais do “próximo romance genial”, algo misantropo, antissocial, mas com poder agudo de observação para uma civilização que se esboroa a sua frente. Num arco de tempo que vai de dezembro de 2018 aos primeiros meses de 2019, é evidente que ele está falando do Brasil que está se havendo com o fato de ter elegido um presidente de extrema direita.

Como em mais de um romance de Chico Buarque, há elementos autobiográficos explícitos e implícitos (quem quiser se aventurar a decifrar, recomendo paciência e alguma malandragem, porque se há algo que a famosa timidez do Chico-cantor deve ter ensinado ao Chico-escritor é a arte do disfarce), mas o que mais importa em Essa gente é a quase impossibilidade de um artista viver indiferente à decadência que o cerca.

Em seu último trabalho em estúdio, Caravanas, a letra da música que dá título ao álbum (“Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria/ Filha do medo, a raiva é mãe da covardia/ Ou doido sou eu que escuto vozes/ Não há gente tão insana/ Nem caravana do Arará/ Não há, não há/ Sol, a culpa deve ser do sol/ Que bate na moleira, o sol/ Que estoura as veias, o suor/ Que embaça os olhos e a razão”) ao mesmo tempo fala de sua cidade natal com o olhar do sujeito que vive a beleza de “um dia de real grandeza, tudo azul, um mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos” e com a mesma intensidade percebe a débâcle da cidade entregue às milícias.

Fascínio e horror

Voltando a Anos de chumbo, não parece haver nenhuma descontinuidade desse ciclo de fascínio e horror. A não ser a reverência e o rigor, ambos compreensíveis, que ele parece ter com a literatura. Filho de intelectual, ele mesmo um moço educado em colégios de elite e estudante da USP, a aproximação do filho de Sérgio Buarque de Holanda da literatura pode se chamar de cautelosa. Ao contrário do que sugere o hype do sistema editorial em torno de cada livro de Chico Buarque, não há uma obra em livro, das peças aos romances e, agora, contos em que o “compositor popular” não esteja rodeado de fantasmas. E no conto, benza Deus, é fantasma que não acaba mais, uma caravana que começa ali no século 19 com Machado de Assis e vai desembocar nos contemporâneos (alguns, inclusive, amigos pessoais do autor) Rubem Fonseca, Dalton Trevisan etc.

Em um deles, “Para Clarice Lispector, com candura”, a fantasma nada camarada da escritora até se corporifica como personagem e objeto de obsessão do narrador. De certa forma, o conto mais “fácil” do volume, seja pelo fato de Lispector ser objeto de culto, seja por aquilo que o escritor incorpora da prosa lispectoriana, cheia de elipses e “excesso” de vida interior, resvala por um lirismo meio decepcionante em comparação com os outros sete. “Copacabana” vai no sentido inverso ao impregnar a narrativa de uma nostalgia perplexa e irritada em um passeio pelo bairro.

Alguns contos revelam o escritor capaz de inverter a expectativa do leitor com uma voadora no peito

“Meu tio”, com o impacto da voz em primeira pessoa de uma menina adolescente entregue pelos pais ao tio miliciano, bem como “Os primos de Campos”, também com um narrador jovem (desta vez, masculino) numa situação de abandono e violência, revelam o escritor desconcertante, capaz de, numa frase, inverter a expectativa do leitor (ou do ouvinte) com uma voadora no peito. Arrisco aqui dizer que esse movimento, muito machadiano, do recurso ao humor para levantar uma fresta de sentido e oferecer como que outras camadas geológicas de significados, nunca é (apenas) irônico, como no melhor de Machado de Assis, mas sim brutal como uma navalhada ou desconcertante como o nonsense e, exatamente por isso, mais afeito ao humor escarninho contemporâneo.

Da mesma maneira, as relações amorosas contemporâneas, aquelas dos ricos ou dos pobres, que sempre foram objeto de canções, peças de teatro e alguns dos romances, vêm com um grão de sal muito buarquiano. “O sítio” traz a história de um casal da Zona Sul que praticamente se forma para estar isolado na pandemia e se esconde num sítio até que o monstro do ciúme se instala entre os dois. Ora, o ciúme masculino e a desconfiança da traição feminina, tema muito caro em todo romance realista do século 19, assume uma feição trágica justo no Dom Casmurro (1899), que suscita debates eivados de machismo até hoje, com polêmicas estéreis em jornais de grande circulação, até quase o final do século 20. Em “Cida”, um homem que perambula a pé pelo Rio de Janeiro conta seus diálogos com uma mulher em situação de rua, tão despossuída de tudo, inclusive do afeto, que a saída para enfrentar uma gravidez, parto e cuidado de um bebê é a fantasia francamente alucinada.

No contraste entre os dois contos, torna-se evidente aquilo que é outro contínuo espaçotemporal de Chico Buarque, que vou ousar chamar aqui de sensibilidade política. Quando a antiga Polygram Philips lançou um box com cinco cds para marcar os cinquenta anos de Chico, em 1994, não foi à toa que nomeou cada um deles pelo “personagem” ou fio transversal que amarra as canções: “O político”, “O trovador”, “O amante”, “O cronista” e “O malandro”. A ressurreição de “Apesar de você”, música censurada de 1971, nesses anos de chumbo que vivemos desde o golpe que depôs Dilma Rousseff em 2016 e que era cantada nos panelaços do começo da pandemia, também fala por si só.

Deixando o melhor para o final, temos “Anos de chumbo” e “O passaporte”. A potência do Chico-escritor aí se mostra em estado de graça. Graça engraçada, mesmo na jornada de ódio, desconfiança e maluquice do sujeito que vai tomar um avião para Paris e se embaraça com um passaporte esquecido em algum lugar do Galeão. Sobre “Anos de chumbo”, melhor contar o mínimo e abusar de uma referência: o garoto acamado pela poliomielite, que gosta de brincar com soldadinhos de chumbo, talvez observasse com terror o quintal onde a Maria da canção “João e Maria” sumia no mundo sem avisar ao João na “noite que não tem mais fim”.

Continuo sem saber se é duro ou mole ser o Chico Buarque — e provavelmente nunca mesmo eu venha a saber disso. No entanto, depois dos oito contos, consigo dizer que o fato de ele ter se lançado à aventura de escrever livros há mais de quarenta anos mostra Chicos com os quais muitos leitores gostarão de se reencontrar.

Esse texto foi feito com apoio do Itaú Cultural

Quem escreveu esse texto

Bia Abramo

Jornalista, é autora de Aperto de mão (Conrad).

Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.