Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

V de vaidade

A biografia que Philip Roth encomendou para si mesmo examina a vida em busca da obra numa longa e tediosa redução de sua complexidade

27maio2021 | Edição #46

Philip Roth (1933-2018) deixou 31 livros publicados e um inacabado. Ainda que assinado por Blake Bailey, Philip Roth: The Biography é a obra final e póstuma de um escritor por demais consciente e zeloso de seu processo criativo, de sua indiscutível importância literária e, sobretudo, de sua posteridade. O fato de, pouco depois de lançado, o livro chegar a ser retirado de circulação nos Estados Unidos em meio a um escândalo de denúncias de assédio sexual e estupro contra Bailey é, por cortesia do imponderável, a reviravolta final em um enredo que nasce mirabolante: criteriosamente escolhido pelo próprio biografado, o biógrafo parece ter sido tragado pelo universo ficcional em que mergulhou. 

[Para poupar espaço da revista e paciência do leitor, deixo aqui apenas indicado o parágrafo sobre a “polêmica” em torno da biografia. É o momento em que, em nome de liberdade de expressão, se imprecaria contra a cultura do cancelamento (sic) e a patrulha (sic) de feministas. É também onde se retomaria o debate bizantino sobre vícios e virtudes de criador e criação, deixando a recomendação de que, sim, se deve ler Céline apesar de seu antissemitismo. Seria ainda o momento de resenhar as resenhas americanas para afiançar o sonho da tese própria. Voltemos, pois, ao que interessa.]

“Não quero que você me reabilite. Apenas que me faça interessante”, teria dito Roth a Bailey, que fez muito bem em tomar a frase como epígrafe. Afinal, vira e mexe ele tenta provar sua independência em relação ao personagem que encontrou pela primeira vez em uma espécie de entrevista de emprego. Não sem orgulho, Bailey conta como se saiu bem de perguntas capciosas e conquistou o cargo — deixando sem explicação como essa experiência, sem dúvida opressiva, não deixaria marcas em oito anos de trabalho. Se não é propriamente um amanuense de Roth, Bailey chega perto. Cumpre à risca um modelo — sugerido, exigido ou autoimposto, tanto faz — de narrar incontáveis episódios, decisivos ou desimportantes, do ponto de vista de Roth e dos outros envolvidos. Como se o confronto “fulano disse, sicrano disse” fosse garantia de imparcialidade. Como se tal ideia de imparcialidade fosse garantia de qualidade ou equilíbrio.

Quando começou a ruminar a ideia de contratar um biógrafo, Roth não escondia que a obra futura seria uma espécie de resposta, delegada a outrem, a Leaving a Doll’s House (Deixando uma casa de bonecas), o livro em que Claire Bloom se vingou da ruína amorosa e existencial da relação que os uniu por quase vinte anos. Roth chegou a escrever um volume inteiro refutando as acusações de egocentrismo, traições em série, machismo e misoginia (com direito a uma cantada na melhor amiga da enteada), mas foi fortemente desaconselhado a publicá-lo por editores e amigos. A Bailey, franqueou acesso irrestrito a esses originais, espécie de terceiro segredo de Fátima e uma das principais fontes das revelações exclusivas responsáveis pelo caráter supostamente “definitivo” da biografia — das 898 páginas na edição americana, 171 são dominadas pela dr mais entediante da história da literatura.

Roth era um arquivista de si mesmo. Guardava tudo. Originais e notas de compras; anotações detalhadas de situações cotidianas e correspondência com escritores, editores e amigos; registros de suas intensas relações com advogados (não era raro fazer-se representar legalmente até mesmo em assuntos afetivos) e de uma complicada história médica — dos severos problemas na coluna às complicações cardíacas que terminariam por matá-lo. Acrescente-se a esse acervo prodigioso o material produzido por Ross Miller, seu primeiro biógrafo e amigo, a quem deu longos depoimentos e com quem romperia para sempre por discordar dos rumos tomados pela pesquisa e pelas entrevistas com pessoas por ele indicadas. Há ainda, é claro, os esforços do próprio Bailey, que também tomou longos depoimentos de Roth e rastreou personagens e novos documentos.  

Fetiche pelo inédito

Os pontos mais fracos de Philip Roth: The Biography têm a ver com a seleção e a hierarquização do que deveria vir a público — o fetiche pelo inédito resulta em um oversharing às vezes constrangedor. Não sei na de vocês, mas nunca me passou pela cabeça especular quantas cicatrizes, oriundas de cirurgias, Roth ostentava no final da vida. Se é essencial conhecer os números de O complexo de Portnoy (1969) para aquilatar o que o livro representou comercial e culturalmente (420 mil cópias em capa dura vendidas em menos de um ano e 3,5 milhões da edição de bolso nos cinco anos seguintes), o mesmo não se pode dizer dos 2.563 dólares pagos por um vestido e um casaco dados de presente a uma jovem namorada em uma loja do SoHo. De minha parte, também preferia ser poupado do complexo diagnóstico para as fissuras anais que o levaram ao hospital em 1959. E nada acrescentou saber que Roth comemorou a Légion d’Honneur, recebida no consulado francês da Quinta Avenida, em uma loja da cadeia de fast food Shake Shack.

A estratégia de Bailey para se embrenhar nesse mar de informação, memória e fabulação é a princípio engenhosa, desentranhada da própria obra de Roth, criador de alter egos tão robustos como Nathan Zuckerman e David Kepesh e prodigioso manipulador de verossimilhança até no jogo entre títulos e subtítulos como O avesso da vida (1986), Os fatos: a autobiografia de um romancista (1988), Patrimônio: uma história real (1991) e Operação Shylock: uma confissão (1993). Tomando como ponto de partida os truques que fazem salivar teóricos da “autoficção” e que já nos infligiram montanhas de teses, o biógrafo dedica-se a escrutinar cada episódio, personagem e mínimo movimento de vida para estabelecer suas correspondências com a obra.

No que se pode depreender do tom constantemente justificatório, tais sugestões vinham do próprio Roth, que desde Adeus, Columbus (1959), seu livro de estreia, se debateu contra uma espécie de biografismo selvagem na abordagem de seus livros, sobretudo no escândalo moral de Portnoy. Não é por outro motivo, por exemplo, que o biógrafo dedica duas páginas a um episódio da década de 50 — o jovem Roth assustado com o inesperado felatio de uma namorada ocasional — que irá inspirar uma cena de Indignação (2008). Na biografia, o encontro no banco de trás de um carro é rememorado pelos envolvidos, que não sem surpresa têm pouco ou nada a acrescentar. 

‘Não quero que você me reabilite. Apenas que me faça interessante’, teria dito Roth a Bailey

A vaidade, desmedida que leva um autor consagrado a contratar seu biógrafo, é também o grande tema do livro — e não o digo em tom de reprovação: escritor humilde nasce morto ou é mentiroso patológico. E Roth, é claro, tinha do que se jactar. Antes mesmo de Adeus, Columbus, já era um contista reconhecido e um desenvolto personagem na competitiva vida literária de Nova York. Logo depois, ganharia a credencial da resenha superlativa de Saul Bellow: “É um primeiro livro, mas não um livro de iniciante. […] Diferentemente daqueles que, entre nós, vêm ao mundo chorando, cegos e nus, o sr. Roth chega com unhas, cabelo e dentes, falando coerentemente”. Mais tarde, Roth ficaria sabendo que a edição da Commentary suprimiu muitos dos senões de Bellow, tornando a crítica totalmente favorável, mas o detalhe pouco importaria ao jovem escritor, que já era alguém aos olhos de seu maior ídolo e também o seria diante de outros narradores judeus para ele inspiradores, como os gigantes Isaac Bashevis Singer e Bernard Malamud.

A fogueira das vaidades começa a crepitar para valer à medida que Roth se torna uma sensação fora do mundinho das letras. E, da forma como é narrada, sua trajetória alterna períodos de intenso trabalho em cada um dos livros e momentos de ira e insatisfação diante de críticas desfavoráveis ou não tão favoráveis quanto ele julgava merecer. A expectativa por resenhas (incluindo o ódio, involuntariamente divertido, por Michicko Kakutani, a crítica do New York Times) e prêmios (todos menos o Nobel), as picuinhas entre editores e agentes — toda uma flutuação de humores que tinha como pano de fundo uma impressionante ascendente de sua conta bancária, elemento importante na revelação (ainda que excessivamente detalhada) de um Roth materialmente generoso com amigos, escritores em dificuldades, ex-namoradas, funcionários.

Vida de Casanova

Esse enredo não deixa dúvidas sobre a intensidade de seus 85 anos, em que procurou manter enquanto pôde o “sonho byroniano”: “bibliografia de dia, mulheres à noite”. O problema é que a vida de Casanova só teve graça porque nos foi contada por Casanova. Narrada com minúcias burocráticas, a vida amorosa de um homem de muitas mulheres é pouco mais do que uma lista, sucessão de nomes e do registro de encontros e rompimentos. E, no caso da narrativa de Bailey, um repetitivo relato de desentendimentos miúdos e trocas de acusações — em suma, a incontornável miséria cotidiana — que tenho muita dificuldade de entender a quem de fato interessa e qual sua real importância para além de círculos íntimos e circuitos de fofoca. 

De certa forma, o que aqui aponto como problemas parece fazer parte do êxito de Philip Roth: The Biography tal como foi imaginada por seu protagonista. Roth encomendou e Bailey entregou um retrato que propositalmente o exporia em minúcias nem sempre agradáveis. A expressão “assuma o repelente” era, segundo o biógrafo, “uma frase que ganharia a força de um manifesto ao longo dos anos” para mostrar como a complexidade humana seria a melhor resposta, na ficção e na vida, à mais redutora — e bem-sucedida — acusação que terminou colada à sua reputação, a de um egocêntrico misógino, predador de mulheres. Essa discussão, talvez uma das mais difíceis e estimulantes que Roth propôs de diversas formas em seus livros, não tem, no entanto, repercussão em um relato que parece eleger o factual como verdade última e incontestável. 

O resto é escândalo.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #46 em abril de 2021.