Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

O pão de ló dos eufemismos

Na Argentina e no Brasil, Javier Milei é normalizado como ‘ultraliberal’, ‘polêmico’ e ‘anarcocapitalista’

21set2023 | Edição #74

Javier Milei, o desclassificado que é o novo poster boy da extrema direita, soa como música aos ouvidos seletivos de parte significativa de analistas e comentaristas brasileiros. Sua candidatura à presidência da Argentina revigora o antiesquerdismo arraigado que em 2018 pautou a adesão, por omissão conveniente ou entusiasmo explícito, à eleição do Inelegível.

Afinal, como é voz corrente no Centro, essa terra imaginária habitada por intelectuais e jornalistas tão equilibrados quanto alheios às lutas sociais, os fascistas que hoje minam democracias em todo mundo são produtos das esquerdas, reação à incompetência ou às iniquidades relacionadas ao “petê” — ou, no caso, ao “peronismo”.

Até ser violentamente atacada, como sempre acontece na eleição de antidemocratas, a imprensa evita chamá-los pelo nome. Preferem tratá-los ao pão de ló dos eufemismos, dos protocolares “polêmico” e “controverso” a pretensas categorias político-ideológicas como “ultraliberal” ou, de forma ainda mais patética, “anarcocapitalista”.

Que Milei reivindique para si uma e outra qualificação é não só seu direito como obrigação de uma campanha embusteira, na batida da antipolítica que tão bem conhecemos. Que se publique uma e outra expressão livre de restrições críticas é um disparate. E um risco.

A cada tentativa de explicação do que há de “liberal” ou “anárquico” em seu discurso — em geral com referências a think tanks brasileiros de extrema direita e seus financiadores — colabora-se um pouco mais para a difusão de ideias nefastas. A menos, é claro, que se tome como razoável o estabelecimento do livre comércio de órgãos ou a oposição conceitual à ideia de justiça social, pontos sempre destacados no programa de governo de Milei.

Javier Milei enfeita os fundamentos fascistas de seu discurso com penduricalhos de bazar progressista

Autor do fundamental Uma breve história das mentiras fascistas (Autêntica), Federico Finchelstein fala com propriedade sobre personagens deletérios deste tipo. E em artigos, entrevistas e postagens vem advertindo sobre a “normalização” de Milei em seu país — ele é argentino e vive m Nova York, onde é professor da New School for Social Research.

“Tucker Carlson entrevista o misógino e pirado mini-Trump Milei e recebe elogios de Musk. O resultado é propaganda populista de direita feita por intelectos de baixa qualidade… Mas de alguma forma na imprensa argentina isso aparece como um poderoso reconhecimento de Milei”, escreveu ele no ex-Twitter.

A referência é a entrevista que o candidato da agremiação La Libertad Avanza concedeu ao ex-âncora da Fox News. Publicada semana passada na rede de Elon Musk, onde o autodeclarado jornalista bate ponto depois de demitido por Murdoch, a conversa teria sido vista, de acordo com as insondáveis sondagens da internet, por mais de 300 milhões.

No Brasil, prefere-se destacar estas diferenças superficiais em relação ao Inelegível do que dissecar a identidade profunda entre os dois

Carlson não é entrevistador, é capacho e escada para o histrionismo de fascistas a que dá palanque. Foi assim com Viktor Orbán e Donald Trump e é assim na conversa com o candidato que promete fazer da Argentina “o farol moral do continente”.

A plataforma mitômana para salvar a economia e a dignidade argentinas inclui medidas práticas como o fim de relações comerciais com China, Rússia e Brasil. Afinal, garante ele, o pecado original de seu país é, há mais de cem anos, viver às voltas com o socialismo e o comunismo.

Milei enfeita os fundamentos fascistas de seu discurso com penduricalhos de bazar progressista. É contra a instituição do casamento mas opõe-se ao direito ao aborto — “a criança dentro do corpo das mulheres não é seu corpo” — e a qualquer política de equiparação salarial de gênero — “discriminação positiva, que é ofensiva para a mulheres porque implica em tratá-las como seres inferiores”.

Surdos e cegos

Por aqui prefere-se destacar estas diferenças superficiais em relação ao Inelegível do que dissecar a identidade profunda entre os dois. Prefere-se, como li outro dia, qualificar Milei como “sintonizado com o vazio das ruas” a apontar a exploração do ressentimento como ativo político. Prefere-se, com os custos que sabemos, confundir o enfrentamento ao fascismo com uma reação de intelectuais acuados pelo rugir da turba.

Não resta mesmo dúvida de que o anti-intelectualismo é a herança menos óbvia e mais insidiosa dos anos que vivemos sob o Führer de Chanchada. Seu fundamento é a prova eloquente de que a esquerdofobia primária é base mais do que eficiente de mobilização.

Nos últimos meses, quantas vezes você já ouviu que uma entidade chamada “a esquerda” é incompetente em entender os neopentecostais? Ou que outra, conhecida como “a crítica”, ignora a música sertaneja e outras produções de baixa extração artística? Elitistas, ambas seriam surdas aos clamores populares. O que soa como música às orelhas sempre em pé da cadela do fascismo — aquela que, como lembrou Brecht, vive no cio.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #74 em setembro de 2023.