Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Eternizar o presente

Exposição e livro-catálogo exploram as relações complexas entre a obra de Annie Ernaux e a fotografia

14mar2024

No bairro das lojas chiques da Cidade Nova, uma mulher negra entra na Hédiard usando um boubou. Imediatamente, o olhar da gerente vira uma faca, vigilância implacável sobre essa cliente que se supõe ter entrado na loja errada, que não percebe que está fora de seu lugar.

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No trem para Paris, o homem pergunta à moça: “Quantas horas você trabalha por semana?”, “A que horas você começa?”, “Você pode tirar férias quando quiser?”. Necessidade de avaliar as vantagens e as restrições de uma profissão, o lado material da vida. Não é uma curiosidade inútil, uma conversa insípida, mas a necessidade de saber como os outros vivem para saber como nós mesmos vivemos, ou como poderíamos ter vivido.

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Vamos, de volta pra casa! O homem diz isso ao cachorro, que está de cabeça baixa, rastejando, culpado. A frase milenar para tratar as crianças, as mulheres e os cachorros.

Desvios do senso comum

Anotações como essas, de aparente simplicidade e ressonâncias pouco óbvias, formam o Journal du dehors (em tradução livre, Diário do exterior) que Annie Ernaux publicou em 1993 e trinta anos depois serve de fio condutor para explorar as complexas relações de sua obra com a imagem. Extérieurs — Annie Ernaux et la photographie, exposição em cartaz na Maison Européenne de la Photographie até maio próximo, se desdobra num excelente livro-catálogo (mep/Mack), que funciona tão bem ou melhor do que a mostra ao aproximar as anotações da escritora às 150 imagens escolhidas nos acervos da instituição parisiense pela curadora inglesa Lou Stoppard.

O essencial está na intenção com que a escritora e as fotógrafas e fotógrafos buscam captar desvios da percepção anestesiada

A “mulher de luvas” nas escadas rolantes do metrô de Paris, de quem não se vê o rosto no flagrante de Dolorès Marat, ou uma outra, que encara a câmera de Daido Moriyama destacando-se da multidão nas ruas de uma cidade não definida, dificilmente funcionariam como meras ilustrações do texto de Ernaux. A princípio empenhada em balizar a seleção por imagens de Paris e arredores feitas entre 1985 e 1992, período coberto pelo diário, ainda inédito no Brasil, Stoppard logo perceberia que o essencial está na intenção com que a escritora e as fotógrafas e fotógrafos buscam captar desvios da percepção anestesiada, do senso comum, do literal, em registros potencialmente contaminados pela objetividade da representação, não importa se em Tóquio ou Nova York, num parque, numa feira ou nas imagens saturadas de uma tela da televisão.

La femme aux gants (A mulher com luvas, 1987), de Dolorès Marat, que faz parte da exposição Extérieurs — Annie Ernaux et la photographie, em cartaz na Maison Européenne de la Photographie, Paris [Collection MEP/Dolorès Marat/Divulgação]

Distanciamento proverbial

O proverbial distanciamento da escrita de Annie Ernaux, marca de livros que tratam de sua própria história, tem na fotografia uma referência constante. O curioso L’usage de la photo, publicado em 2005 em parceria com Marc Marie, é, a despeito do título de ensaio, um experimento narrativo: no peculiar “uso da fotografia”, os dois comentam catorze fotos de roupas e sapatos embolados no chão, vestígios do sexo da noite anterior. A outra filha (2011), parte da descrição minuciosa do retrato da bebê que a narradora julgava ser uma lembrança de sua infância — até descobrir naquela criança a irmã mais velha, morta antes de seu nascimento.

Para Écrire la vie, volume de mais de mil páginas que reúne suas obras mais importantes até 2011, Ernaux organizou um “foto-diário” autobiográfico de quase cem páginas, justapondo entradas de escritos íntimos a imagens pessoais, muitas das quais descritas, segundo ela, em O lugar, A vergonha, Os anos e Uma mulher (que sai este ano, também pela Fósforo). Na introdução, ela adverte que o conjunto não ilustra ou explica o que escreve, mas permite perceber como nascem os livros e “esclarece as razões” pelas quais escreve. “Acho que [o foto-diário] deve ser considerado como outro texto, perfurado, sem fechamento”, observa ela, “portador de uma verdade distinta das imagens que se seguem”.

Diários objetivos

Os diários têm papel importante na obra de Ernaux, seja como instrumento de trabalho, não publicados, ou submetidos a elaboração formal. Estes podem ser mais tradicionais, como nos casos de Se perdre (Se perder, 2002), que é o registro íntimo do tortuoso affair narrado em Paixão simples (1991), e de L’atelier noir (O ateliê escuro, 2011), notas sobre embates com a escrita e processo criativo. Mais originais e radicais são os diários “objetivos”, as reuniões de breves descrições do cotidiano inauguradas justamente com o Journal du dehors, que tem prolongamento direto em La vie extérieure (A vida exterior, 2000), e no desconcertante Regarde les lumières mon amour (Olha as luzes, meu amor, outro dos lançamentos da Fósforo em 2024), reunião de cenas presenciadas em supermercados publicada originalmente em 2014.

O enfrentamento com o presente e a fugacidade que o constitui atravessa toda a obra da escritora

A decisão de partir para esses textos breves e descritivos é inseparável do momento em que, em meados dos anos 70, Ernaux passou a viver em Cergy, a 40 quilômetros de Paris. Então em construção, a cidade “nova” lhe pareceu fascinante pela mistura de nacionalidades e de pessoas de todos os pontos da França, distante do “coração burguês” de Bordeaux ou Rouen, onde vivera antes. “Eu me perguntei, o que significa estar aqui, em Cergy, e comecei a escrever sobre tudo o que via e que me parecia importante dizer”, diz ela em Le vrai lieu (O verdadeiro lugar, 2014), livro de entrevistas a Michelle Porte. “Eu não tinha a ambição de ser etnógrafa, de jeito nenhum, apenas o desejo de capturar vivendo, no dia a dia, imagens que eu queria guardar. Escrever sobre Cergy era uma maneira… sim… de dizer que eu ia ficar aqui”.

Testemunha do presente

Percorrendo a obra de Ernaux — e contando com a colaboração ativa da autora — Lou Stoppard consegue formular, para além de especulações quiméricas tão comuns nas curadorias de artes visuais, o que seria essa “escrita fotográfica”. Um texto que depende, é claro, de sua localização, da ancoragem territorial bem precisa, mas que expõe lugares, pessoas e situações a partir de um ponto de vista que transcende a literalidade destes parâmetros. “Antes de ser arquivista de seu passado, ela é testemunha do presente”, escreve Stoppard, indicando a filiação possível entre Ernaux e os 29 artistas da mostra — entre os quais Martine Franck, Garry Winogrand, Marie-Paule Nègre e Luigi Ghirri.

Dimensão que sobressai nos “diários objetivos”, o enfrentamento com o presente e a fugacidade que o constitui atravessa toda a obra da escritora, a começar pela tão citada frase de abertura de Os anos: “Todas as imagens vão desaparecer”. Em conversa com Stoppard, a própria Ernaux sublinha esta intenção:

Em relação às pessoas que aparecem no Journal du dehors, certamente há o desejo, é um desejo criador, de lhes dar a eternidade, ou quase. Sentimos a mesma coisa quando olhamos uma fotografia que foi tirada há quarenta anos… É como se disséssemos a nós mesmos, sim, eles estão aqui, eles estão aqui para sempre. E é algo prodigioso, vertiginoso.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).