Quadrinhos,

As verdades de cada um

Obra de autor norte-americano não aproveita as técnicas narrativas que o quadrinho oferece para contar a vida de Hannah Arendt

01jun2021

Je crois”, um homem mascarado diz a Hannah Arendt, “que amar é um a posteriori… que é transformado num a priori.” Notas de rodapé explicam: “je crois” significa “eu creio” em francês; “a posteriori” é uma expressão latina que significa “uma constatação da razão indutiva, segundo a vida observada”; enquanto “a priori” se trata de “constatações evidentes por si sós, verdades funcionais além das experiências”. A cena está no início de As três fugas de Hannah Arendt e exemplifica o que vem pela frente no quadrinho: declarações românticas, intelectos elevados e notas de rodapé. Essa declaração, no caso, vem de Günther Stern, que virá a ser o primeiro marido de Arendt. Ela, segurando seu cigarro, fica impassível diante do galanteio cerebral. Pergunta “quem é você?”.

Arendt (1906-75) foi uma filósofa política nascida na Alemanha que deu definições muito influentes a temas como totalitarismo e verdade. Ela era parte integrante e influente do círculo de pensadores e artistas alemães e austríacos que estariam entre os mais referenciados do século passado. Em Berlim, tomou cafés filosóficos com o dramaturgo Bertolt Brecht, o cineasta Fritz Lang, o multipensador Walter Benjamin (amigo muito querido) e até o físico Albert Einstein, a quem declarou que o Strudel do Café Romanisches era “o sentido da vida”. Como o name-dropping filosófico-intelectual é constante, essas e outras figuras são rapidamente biografadas com notas de rodapé espertinhas. Uma delas: “David Hume. Outro britânico supercético, este da Escócia. Desconfiava tanto do pensamento habitual que, se você dissesse a ele ‘O sol vai nascer amanhã’, ele responderia: ‘Como você sabe? Ainda não estamos no amanhã’”.

O período do Romanisches veio depois da formação de Arendt na Universidade de Marburgo, onde ela foi colega de Herbert Marcuse, Karl Löwith e Leo Strauss, entre outros que assistiam às aulas de Martin Heidegger, figura central da fenomenologia e do existencialismo. Arendt foi também amante de Heidegger, como a biografia não deixa de explorar.

As três fugas do título remetem a um aspecto central da história de vida da pensadora: as mudanças que a levaram primeiro a Berlim, depois a Paris e, por fim, a Nova York. Duas das fugas foram motivadas pelo nazismo. Judia, intelectual e, portanto, perigosa, Arendt fugiu da Alemanha pouco depois do incêndio do Reichstag, em 1933, o alerta de que o regime nazista havia dominado o país. Quando a Segunda Guerra Mundial chegou à França, o país do seu exílio, ela teve que fugir de novo. Foi nos Estados Unidos que sua carreira se firmou. O calhamaço Origens do totalitarismo virou best-seller e fez com que recebesse convites para lecionar em várias universidades.

Rabiscos 

Como história em quadrinhos, As três fugas não é uma produção apurada. O traço do norte-americano Ken Krimstein, colaborador da New Yorker, é elementar e inconstante, uma salada de técnicas de rabisco e preenchimento que não conseguem fechar um estilo e trazem o pior dos recursos de software para desenho, como recortes mal-ajambrados e um cinza esfumaçado que faz as vezes de fundo. A única cor da HQ é o verde do vestido de Arendt, que parece aplicado com pressa.

São poucos os momentos em que Krimstein aproveita as vantagens de narrar em quadrinhos. Há alguns diálogos bem trabalhados, com as devidas pausas e quebras entre personagens e suas reações. No geral, porém, a enumeração de fatos e acontecimentos é o tom dominante, e o desenho perde em narração e vira mera ilustração. Há pouca variação nas expressões de Arendt, por exemplo, sempre com seu cigarrinho na mão.

Há a tendência do autor de dar mais espaço à vida íntima de Arendt do que às suas ideias

É de pensar que a HQ embarcou na moda editorial de biografar filósofos em quadrinhos, como aconteceu com Herbert Marcuse, Angela Davis e Antonio Gramsci, que saíram recentemente no Brasil; no exterior, a oferta é ainda maior. A moda é louvável, mas a execução ainda deixa a desejar.

O texto é bem editado e espirituoso, sendo a narração feita pela própria Arendt em primeira pessoa. Por outro lado, as notas de rodapé, mesmo quando fazem algum comentário esperto, travam a leitura na primeira metade do livro. Há outra tendência de Krimstein, que é dar mais espaço à vida íntima de Arendt do que às suas ideias. O que, digamos, é uma linha editorial: as biografias de figuras intelectuais aprofundam-se na intimidade do biografado ou biografada, buscando o corpo e as imperfeições da figura que é mais conhecida pela mente arguta. É justificável. Há grandes chances de que a pessoa que procura uma biografia de Hannah Arendt já conheça algo do pensamento da autora e queira saber o que ela tinha de ser humano.

O relacionamento com Heidegger, por exemplo, ressurge algumas vezes no álbum. Como no reencontro deles nos Estados Unidos, quando Arendt já tem um nome no mundo das letras. É o momento para mais uma declaração de amor: “Juntos, nós, você e eu, temos nas mãos o poder de revelar de uma vez por todas a verdade que explica tudo”, diz Heidegger. Ele faz a proposta após afirmar que ela tinha sido sua aluna mais inteligente. Arendt, cigarrinho na mão, responde: “Não”.

Há, sim, espaço para Arendt, via Krimstein, expressar o que (possivelmente) pensou de cada momento. As páginas finais da HQ dão alguma atenção às suas ideias filosóficas, como o “transpensar” e as noções de verdade. Krimstein até investe em representações gráficas do pensamento arendtiano. Mas é um trecho breve. Nesta explicação gráfica, entende-se uma das propostas filosóficas de Arendt: “A verdade é… um milhão de bilhões de verdades, desempenhadas em público, a cada segundo que passa”. No posfácio, ao comentar as biografias de Arendt que consultou para montar a sua, Krimstein diz que, naqueles livros, “acabamos aprendendo muito mais sobre o próprio autor do que sobre Arendt”.

Para o leitor ou leitora ainda iniciantes em Hannah Arendt, As três fugas é uma introdução à pessoa, que pode despertar o interesse pelo seu pensamento. Para quem já o conhece, pode ser interessante entrar em contato com esta verdade de Krimstein a respeito da vida de Arendt: uma filósofa refletindo constantemente sobre o mundo e sobre si, sujeita a uma sequência de homens tentando seduzir seu intelecto. E sempre com um cigarro na mão.

Quem escreveu esse texto

Érico Assis

Tradutor e jornalista. É autor de Balões de Pensamento (ed. Balão Editorial).