Política,

A força de Lélia

Uma das intelectuais negras mais expressivas do Brasil, Lélia Gonzalez já abordava no século passado questões essenciais das eleições de 2020

01nov2020

Há um ano, Angela Davis desembarcou em São Paulo para lançar a sua autobiografia no Brasil. A filósofa e ativista estadunidense é saudada como o ícone do feminismo negro mundial. Davis decidiu, então, provocar o modo como nós, brasileiros, a enxergamos: “Por que no Brasil vocês precisam buscar essa referência nos Estados Unidos? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês poderiam aprender comigo”. Segundo ela, a brasileira já pensava o conceito de interseccionalidade em seus estudos antes de o termo ser cunhado por Kimberlé Crenshaw e ganhar popularidade.

No Rio, à mesma época, Patricia Hill Collins fazia coisa parecida. Autora do livro Pensamento feminista negro (Boitempo), a socióloga estadunidense citou Lélia Gonzalez como uma das suas principais referências. Essa repercussão pode ter estimulado o contato de jovens feministas com essa força que é Lélia Gonzalez. Mas quão decepcionante não seria perceber a dificuldade de encontrar a produção intelectual de uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU). Dificuldade essa mais relacionada a um apagamento sistêmico de produções intelectuais de autores negros — um epistemicídio — do que uma falta de acesso à antropóloga.

Vale ressaltar: não faltaram esforços de estudantes, professores e pesquisadores negros para que a obra de Lélia pudesse ser difundida. No campo editorial, cito o belo trabalho realizado pela União dos Coletivos Pan-Africanistas, que organizou parte expressiva da produção de Lélia no volume Primavera para as rosas negras (2018).

Dessa forma, Por um feminismo afro-latino-americano, lançado pela Zahar, já chega às livrarias como um título essencial. A publicação, organizada por Flavia Rios e Márcia Lima, é uma reunião inédita da obra da intelectual negra mais expressiva do Brasil no século 20 e faz jus ao seu pioneirismo por se aprofundar nas questões verdadeiramente brasileiras.

Diferentes abordagens

A maior parte dos ensaios, intervenções e diálogos reunidos no livro segue uma ordem cronológica que compreende duas décadas — dos anos 1970 à primeira metade da década de 1990 —, o que marca os anseios democráticos do Brasil e de outros países da América Latina e do Caribe, além de reivindicações por igualdade racial nos Estados Unidos e das lutas por independência dos países africanos.

A produção da autora desmistifica a ideia de que os movimentos negros são pouco atuantes no Brasil

Com produção sofisticada e escrita fina, irônica e acessível, Gonzalez transita por diferentes campos do conhecimento. Sua obra pode ser interpretada a partir de três principais abordagens: a decolonial, a interseccional e a psicanalítica. Na primeira, ao criticar o viés eurocêntrico das ciências sociais e do feminismo ocidental, a ativista nos brinda com o conceito de amefricanidade, que faz referência a toda uma ascendência: não só a dos africanos trazidos pelo tráfico negreiro como a dos povos pré-colombianos. Na segunda, reflete sobre as dimensões da dominação sexual, de classe e de raça nas formas de opressão e hierarquização racial. Com relação à psicanálise, destaca-se a sua exposição da “neurose cultural brasileira”, com uma preocupação recorrente, com o não dito, o interdito e a dimensão subversiva da linguagem no cotidiano.

Filha de um ferroviário e de uma empregada doméstica, Lélia Gonzalez nasceu em Belo Horizonte, em 1935. Ainda criança, em 1942, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde viveu até 1994, quando faleceu, vítima de um infarto. Graduou-se em história e filosofia, foi professora da rede pública de ensino, fez mestrado em comunicação social e doutorado em antropologia política. Na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, chefiou o departamento de sociologia e política. Além de ser uma das fundadoras do mnu, ajudou a criar o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), o Coletivo de Mulheres Negras N’Zinga e o Olodum. Sua militância levou-a ao Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM).

A biografia e a produção intelectual de Lélia Gonzalez desmistificam a ideia de que os movimentos negros — sim, no plural — são (e sempre foram) pouco atuantes no Brasil, ideia que voltou com tudo na cobertura sobre a onda de protestos provocada pelo assassinato de George Floyd nos Estados Unidos. Falta sofisticação no olhar daqueles que dizem que nós somos enfraquecidos. Prefiro recorrer à formulação de Vilma Reis: o movimento negro é o movimento social mais bem-sucedido da história brasileira. Sua participação na Constituinte, em 1987, ao lado de parlamentares como Benedita da Silva e Carlos Alberto Caó, é um caso exemplar.

Por um feminismo afro-latino-americano resgata o forte pronunciamento de Lélia Gonzalez na Constituinte durante a reunião da subcomissão destinada às minorias sociais. Um texto inédito que mostra o papel concreto da intelectual e ativista negra na construção do pacto constitucional. Concordo com as organizadoras: é um dos pontos altos do livro.

Não fossem os exemplos citados por Lélia ao longo dos textos, acontecimentos ou produções artísticas de décadas atrás, a obra pareceria ter sido escrita há poucos meses. Além de fazer duras críticas ao racismo e ao sexismo presentes na cultura brasileira, a ativista e intelectual negra defende ferrenhamente candidaturas negras e de mulheres, desde que ancoradas em representação substantiva e de valores; fala sobre a importância da autonomia dos movimentos sociais em relação aos partidos políticos, mas sem deixar de lado a relevância da atuação política institucionalizada no parlamento, em conselhos e em organizações partidárias. Tudo que estamos enfrentando, mais uma vez, nas eleições deste ano.

Neste momento em que percebemos a democracia capenga da qual fazemos parte, a voz de Lélia deve ressoar em nossos ouvidos: “Sem o criouléu, sem os negros, não se construirá uma nação neste país”, brada a ativista na Constituinte. “Não adianta continuarmos com essa postura paternalista de bater nos ombros, mas que na hora H fecha todas as portas para que o negro, com toda a sua competência histórica, não tenha acesso ao mercado de trabalho, à organização dos partidos políticos. Sempre somos as bases, já perceberam isso? Ou então somos cooptados para representarmos o teatro da democracia racial. Não queremos mais isso.”

Quem escreveu esse texto

Yasmin Santos

Jornalista. Foi editora-assistente do Nexo Jornal e repórter da revista Piauí.