Poesia,

O homem e os seus possíveis

Morte de Libério Neves faz relembrar a obra do poeta que escrevia como se jogasse snooker

01set2019

Libério Neves não era deste mundo. E este mundo, definitivamente, não era de Libério, que recebia com serenidade espasmos de reconhecimento. Quando foi lançada em 2013 sua primeira e — até agora única — antologia poética, Papel passado, o crítico e escritor José Castello se entusiasmou: “Desconhecido, mas genial”.

Muito antes, em 1966, ao comentar a estreia de Libério, o poeta José Paulo Paes se reconheceu impressionado com a “vigorosa nota pessoal” de quem estava em dia “com o que haja de mais criativamente novo no campo da expressão poética”, uma façanha digna de registro numa época de “conformada diluição epigonal”.

Em 1979, no lançamento da terceira obra, Silviano Santiago notou: “O bonito de sua poesia é que a voz poética, abrangente e universal, não tem a pretensão divina (vide Jorge de Lima) nem a pretensão profética (vide Murilo [Mendes]). Sua voz é a do homem e dos seus possíveis, como nos lembrou [Paul] Valéry, citando Píndaro”.

Nascido na cidadezinha goiana de Buriti Alegre, em 1934, Antônio Libério Neves chegou a Belo Horizonte aos dezoito anos para estudar e nunca mais deixou a capital mineira. Bem mais cedo, seu pai, Marinho, um homem do campo, projetava o futuro do filho: “Quando crescer, o menino será amansador de burros que nem eu”. A mãe, Gabriela, mulher da bica d’água e das gamelas, desejava diferente: “O Antônio será amansador de burros, mas com lápis e caderno”.

A figura franzina de olhos verdes, com 69 quilos e 1,69 metro, ostentando um bigode honesto (só abandonado aos setenta anos), logo percebeu que a poesia era um destino. Na faculdade de direito da Universidade Federal de Minas Gerais (ufmg), encontrou afinidades: Sérgio Sant’Anna, Sebastião Nunes, Fernando Brant. Procurou, também, o diretor do suplemento literário do jornal Estado de Minas, o poeta Affonso Ávila, para quem mostrou seus poemas. “Foi lendo na minha frente e falou: ‘Já vi que é bom’. Fiquei numa felicidade.”

Um amigo da faculdade, Pierre Santos, colocou-o diante de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, que passaram a ser, até o fim, sua trilogia de admiração. Pierre fez uma comparação que nunca esqueceu: “O Drummond vai na frente comendo banana e jogando a casca fora, e o Cabral vai atrás, pega as cascas e, das cascas, ele faz poesia”.

Já Affonso o apresentou à poesia concreta. O livro de estreia, Pedra solidão, de 1965, traz a mistura da influência modernista e da poesia concreta. Esta, reconhecia Libério, foi importante como experiência e exercício.

O estilo definitivo aparece em O ermo (1968), pela Imprensa Oficial, quando se liberta da visualização do poema na página para manter apenas as conquistas de linguagem enxuta, mais despojada, sem muitos adjetivos.

A vivência solitária no local quase deserto, imagens da infância perdida, ficou explicitada nos títulos dos dois primeiros livros, ambos premiados, assim como os dois seguintes, Força de gravidade em terra de vegetação rasteira (1979) e Circulação de sangue (de 1972, mas só publicado em 1983), todos pela Imprensa Oficial. A partir daí, dedicou-se à poesia para crianças, reunida em vinte livros, e também lançou três livros em prosa, mas sem abrir mão de sua característica de poeta.

Quando conheceu Murilo Rubião surgiu o convite para publicar um poema — “O bigode” — no primeiro número do Suplemento Literário do Minas Gerais (slmg), criação do lendário contista em 1966. No lançamento, Bueno de Rivera soprou-lhe ao ouvido: “O bigode lembrava/ olhando o conjunto/ assim um boi/ chifrudo/ chifrando/ a própria palavra”.

O futuro da poesia

Nos anos 1970, foi trabalhar na redação do slmg. Murilo constantemente perguntava se tinha algum poema novo para publicar. “É a coisa que mais tenho”, respondia Libério, cheio de versos engavetados. No Suplemento, uma nova amizade, o poeta Emílio Moura. Quando foram tirar uma foto juntos, na redação, encheu-se de timidez, mas Emílio ordenou: “Levanta a cabeça, o futuro da poesia lhe pertence”.

Todos os seus livros saíram por editoras mineiras. Querendo publicar em outros estados, mandou um original para São Paulo. A resposta da editora foi: “Não discutimos a qualidade de sua poesia. Discutimos se vende ou se não vende. Como se trata de poesia, que naturalmente é destinada a público mínimo, e como se trata de uma poesia refinada — não temos como publicar o seu livro”.

Estabeleceu-se com a família em Santa Tereza, tradicional bairro em que convivia com dois mundos simultâneos — a vibração incessante das ruas principais com a pletora de carros e gentes. E, no fundo da casa modesta na rua Salinas, o quintal silencioso, onde observava os mais diversos bichos. O quintal animado motivou a epígrafe de um livro infantil: “A beleza do mundo está nas coisas mínimas. A grandeza do mundo está dentro de mim”.

Em relação ao processo criativo, Libério tinha uma certeza: a escrita acontece em momentos de motivação para concretizar a inspiração, que nele era permanente. “Penso, então, o que é inspiração. É a motivação. A motivação é a circunstância. Se você filtra a circunstância, o que fica é a poesia. Passei, então, a buscar o que estava por baixo daquilo que via.”

Deu um exemplo disso no memorialístico “Santa Tereza” (2011): Os coletivos passam sempre lotados, provocando longas esperas. Numa delas, o sol quente, protegeu-se ali na sombra do poste de cimento. Percebeu que a sombra do poste engolia sua sombra, por completo. Foi quando lhe ocorreu escrever o poema “O magro”: “Eu me escondo — na sombra do poste — e me aponto — mais leve na morte”.

Na juventude, se revelou exímio jogador de snooker. A habilidade sugere a metáfora que talvez explique o virtuosismo de Libério: fazer poemas é similar a jogar snooker. Assim Libério procedia na construção do verso: as melhores palavras na melhor ordem, perfazendo uma tacada de mestre.

O trabalho de seleção era rigoroso. Certa vez, ele disse: “Um poeta nunca deve usar a conjunção ‘cujo’, que é uma palavra feinha”. O diminutivo entregava a ternura acolhedora, mesmo na reprimenda.

No dia 11 de agosto deste ano, depois de alguns dias internado numa  Unidade de Terapia Intensiva (uti), com problemas de saúde, o poeta transportou-se em definitivo para o reino da linguagem. Libério não era mesmo deste mundo.

Do ser o ser e ser seu parecer

Libério Neves

No quando em conversando assim contigo
e tido em ser um ser assim sincero
sou uma sombra boa, um vulto amigo

e sou, quando te falo, e quando sério
um grave ser sutil que nesta vida
transcende ao anjo, ardendo-se matéria

minha palavra então espessa vibra
ou tímida se evola, ou gruda como visgo
nos corações melífluos das pessoas.

Contudo quando durmo (quando em sonho)
ou quando em meus re-versos me componho
um outro eu, em mim, pulsa e ressoa

uma linguagem funda e diferente!
pois uma coisa é ter-se o meu retrato
que mostra o magro rosto externamente,

enquanto que mostrado, em raios-X,
o dentro é contraponto e ponte exata
entre o ser-se o que é e o que se diz:

bem mais que olhos mansos nas capelas
ser o suspiro posto à luz das velas
queimando entre ser alma e ser matriz.

Quem escreveu esse texto

Fabrício Marques

Poeta e jornalista, escreveu Fuera del alcance de la memoria (Vallejo & Co.).