Música,

Estudando Tom Zé

Em biografia, jornalista italiano reconstrói episódios da vida do artista baiano, o mais tropicalista entre os tropicalistas

01abr2020 | Edição #32 abr.2020

David Byrne havia voltado de uma viagem à Bahia, em 1980, quando colocou Estudando o samba, de Tom Zé, na vitrola de seu apartamento, nos Estados Unidos. “Aquilo me assustou. O que é isso? A música parecia ter mais em comum com a produção de vanguarda de Nova York e Berlim do que com os discos de MPB ou samba que eu ouvira durante a minha vida”, refletiu. O assombro com que o então vocalista do Talking Heads foi absorvido ao ouvir o álbum lançado em 1976 é uma das passagens que fazem parte da trajetória do baiano na biografia L’ultimo tropicalista, do médico e jornalista italiano Pietro Scaramuzzo. 

Lançada na Itália em outubro do ano passado pela Add Editore, a obra parece confirmar a sina de Tom Zé, que vez ou outra é redescoberto lá fora para, então, ser notícia no Brasil. Nesse livro, Scaramuzzo decidiu organizar cronologicamente a intensa vida do baiano, diferentemente do que acontece em Tropicalista lenta luta, autobiografia publicada em 2008 pela Publifolha, que mistura reflexões, entrevistas e letras de música. As Edições Sesc preparam uma tradução sob responsabilidade de Silvana Cobucci, intitulada Tom Zé: o último tropicalista, com previsão de lançamento para os próximos meses.

O livro é dividido em capítulos que abordam a formação musical e pessoal de Tom Zé, incluindo passagens geográficas de Irará — cidade onde nasceu —, o relacionamento familiar e a vida escolar do artista. “Tom Zé é uma criança tímida, introvertida e cheia de inseguranças que são frequentemente acentuadas pelo ambiente caótico de alguns amigos violentos, mesmo que a principal causa desse sentimento de inadequação deva ser buscada no ambiente familiar. A relação entre Helena (mãe) e Éverton (pai) é caracterizada por confrontos que, apesar de nunca terminarem em episódios de violência física, se alimentam de gritos e ameaças mútuas”, diz um trecho da obra.  

Em outro momento, o artista é descrito como pouco afeito aos estudos, ao flertar com a reprovação escolar em meados de 1953, sendo definido então como “o primeiro rebelde em gerações de intelectuais”.  

A preocupação de situar o leitor estrangeiro faz com que acontecimentos políticos e culturais relevantes dos últimos sessenta anos sejam narrados paralelamente à trajetória do compositor. A obra menciona a Bossa Nova, a Jovem Guarda, os anos de ditadura militar e a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2018.

Scaramuzzo conheceu Tom Zé durante uma entrevista posteriormente publicada em seu site de crítica musical, o Nabocadopovo, em 2016. “Ele ficou curioso com o fato de o Chacrinha plagiar o refrão ‘tô te explicando pra te confundir/ tô te confundindo pra te esclarecer’ [da canção ‘Tô’]”, afirmou Tom Zé à Quatro Cinco Um

Scaramuzzo explica que demorou  mais ou menos um ano e meio para finalizar a pesquisa, consultando acervos de jornais brasileiros e norte-americanos, vídeos, rádios e livros. O biógrafo, que alternou ligações telefônicas e visitas à residência do artista em São Paulo, realizou entrevistas com pessoas que acompanharam o baiano desde a década de 1960. “O primeiro foi David Byrne, que o redescobriu. Na sequência, procurei Caetano Veloso, responsável por introduzi-lo no Tropicalismo. Além deles, entrevistei Gilberto Gil, Rita Lee, Arto Lindsay, Luiz Tatit, Washington Olivetto, José Miguel Wisnik, Matinas Suzuki, entre outros”, conta.

Tom Zé brincou que, depois de ter topado o projeto, Scaramuzzo “me fazia telefonemas com hora marcada que demoravam cerca de uma hora. É o caso de dizer que até o WhatsApp merece citação no trabalho”.

Assunto-espelho

Embora meio século tenha transcorrido, a Tropicália, movimento surgido em 1967, ainda proporciona boas histórias. Scaramuzzo relata uma conversa decisiva entre Tom Zé e Caetano Veloso, que o levou a abandonar os minguados artigos para o Jornal da Bahia e partir rumo ao Sudeste. “Caetano sabe muito bem que o epicentro da cultura se moveu irremediavelmente mais ao sul. Não está mais em Salvador, mas no Rio de Janeiro ou, melhor ainda, em São Paulo”, descreve. Se até aquele momento as referências de Tom Zé estavam nos debates ocorridos na Universidade Federal da Bahia, onde estudava música clássica, a vida na metrópole foi acompanhada por descobertas como o clássico Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles; a montagem de O rei da vela, de Zé Celso Martinez Corrêa, no Teatro Oficina; e as obras de Hélio Oiticica. Isso sem falar no desenvolvimento urbano da cidade — a “floresta de cimento” , como caracteriza Scaramuzzo —, que impactou profundamente o baiano nos meses após sua chegada.

As apropriações — espaciais e psicológicas — fornecem a Tom Zé um arsenal de informações capazes de se encaixar naquilo que ele chama de “assunto-espelho”. Desenvolvido em Irará, quando o sonho de ser cantor era tão distante quanto uma viagem à capital baiana, o método presume que o ouvinte possa se sentir integrado à canção, reconhecendo nos versos aquilo que lhe é comum, próximo. A modernização da técnica se junta à atualização da forma: Tom Zé sabe que jamais alcançaria a dramaticidade empregada pelos cantores operísticos das décadas de 1940 e 1950, como Orlando Silva e Francisco Alves. 

O pesquisador Celso Favaretto, autor de Tropicália: alegoria alegria (Ateliê Editorial, 1979), indica que “os tropicalistas realizaram a vinculação de texto e melodia, explorando o domínio da entoação, o deslizar do corpo na linguagem, a materialidade do canto e da fala […] Nas canções tropicalistas, mesclam-se o lirismo cotidiano desindividualizado e a proposta de uma subversão social, imbricando-se um no outro, sangrando o cotidiano”. Caetano Veloso, certa vez, disse que Tom Zé já era tropicalista antes mesmo de o movimento existir de fato. Para David Byrne, o compositor “explora e desconstrói a música, para, em seguida, criar algo completamente diferente e original”.

O método de Tom Zé presume que o ouvinte possa se sentir integrado à canção

Há em Tom Zé um sentimento inegociável pelo novo. Em entrevista concedida à pesquisadora argentina Violeta Weinschelbaum, ele explica que “a novidade funciona como um dos artifícios que estão à minha disposição para tentar ser perdoado por não ser um cantor”. O exercício da linguagem tropicalista na música popular e a consequente união com a temática pop proporcionaram um misto de acontecimentos na vida do cantor. Ele venceu o Festival de Música da Record de 1968, com “São São Paulo”, integrou o disco-manifesto Panis et circencis e lançou três LPs. Em sua autobiografia, no entanto, Tom Zé lembra que “entre 1968 e 1973 foi uma luta para me adaptar à forma A-B-A simples da música popular. 1ª parte, 2ª parte, 1ª parte. Depois de 1961, só voltei a praticar o que chamo realmente de composição em 1973”, quando lançou o disco Todos os olhos.

Enquanto os outros tropicalistas estavam ocupados “criando uma nova linguagem musical que pudesse ser adaptada às necessidades do mercado”, como define o compositor José Miguel Wisnik, Tom Zé aposta na sequência da experimentação, algo que o músico Luiz Tatit caracteriza como uma “preservação do próprio caminho”. Ele estava convencido de que havia criado uma obra-prima, mas Todos os olhos não alcançou êxito comercial, ainda que tenha clássicos como “Augusta, Angélica e Consolação”. 

O disco inaugura o ostracismo no qual Tom Zé se viu imerso durante meados dos anos 1970 e dos 1980, ainda que alguns lps, como o fatídico Estudando o samba (1976) e Correio da estação do Brás (1978), tenham sido lançados. Abrir os jornais à procura de notas e artigos sobre suas músicas tornou-se tarefa repetitiva e desoladora, dada a ausência de citações. “‘O que há de errado?’, ‘Onde eu errei?’”, questiona o músico. Diante disso, é interessante notar que Scaramuzzo utilize, ainda que não de maneira proposital, a frase “Início do fim” para intitular o capítulo sobre o disco Todos os olhos.

‘O que há de errado?’, ‘Onde eu errei?’, questiona o músico, após o lançamento de ‘Todos os olhos’

A retomada

“As pessoas se surpreenderam quando lancei o disco, assim como eu me surpreendi quando ouvi Estudando o samba pela primeira vez. Tom Zé esteve com os tropicalistas e, enquanto outros se tornaram populares, ele seguiu seu caminho. No Brasil, muita gente me perguntou por que eu estava trabalhando com ‘aquele louco’”, conta Byrne à Quatro Cinco Um. Reconstruir a vida de Tom Zé, especialmente após o seu ressurgimento nos anos 1990, tem sido tarefa recorrente em entrevistas e perfis que pipocaram na imprensa nos últimos trinta anos. 

Scaramuzzo, no entanto, refaz o percurso dando a medida exata do que significaram os dois álbuns lançados por Byrne em sua gravadora, a Luaka Bop. O relato do biógrafo mantém a euforia que tomou o baiano ao ver o interesse renovado por seu trabalho, após textos elogiosos em publicações como The New York Times e Billboard, seguido do renascimento de sua carreira no Brasil e da recuperação financeira, depois de anos na penúria. Em um dos melhores trechos, Tom Zé, sua esposa e empresária Neusa e alguns amigos criam um plano mirabolante  para sacar 20 mil dólares e começar a produzir The Hips of Tradition, o segundo disco orientado por Byrne, de 1992. 

Mesmo que o excesso de críticas musicais prejudique a parte derradeira da obra, especialmente nos capítulos dedicados à sua trajetória recente, o livro propõe um olhar aguçado sobre a produção artística do baiano. Aos 83 anos, ele ainda busca uma fresta na janela da invenção: “A impressão que eu tenho é de que não consegui ainda fazer o primeiro disco”.

Quem escreveu esse texto

Guilherme Henrique

É jornalista.

Matéria publicada na edição impressa #32 abr.2020 em março de 2020.