Literatura,

Roberto Bolaño, ‘tú me acostumbraste’

Coletânea póstuma traz grandes momentos do escritor chileno e seu fascínio pela repetição de traumas

19jan2024 • 20mar2024 | Edição #78

O catalão Enrique Vila-Matas costuma ser colocado ao lado do chileno Roberto Bolaño (1953-2003) como um dos grandes autores da língua espanhola contemporânea. Os dois se aproximam não apenas pelo acaso arbitrário das listas, como também por uma fixação (uma zombeteira fixação, é verdade) na literatura como lugar-abismo, onde a gente cai e se perde lá dentro. Ao longo dessa “queda”, os escritores, claro, são convertidos em grandes personagens, que se escrevem na tentativa (muitas vezes vã) de escrever as próprias obras. É o que encontramos no Vila-Matas de Bartleby e companhia e no recente Montevidéu. E que também está lá no Bolaño de Os detetives selvagens, 2666, Estrela distante e todos aqueles outros livros sobre seguir alguém que não se mexe, como alegoria do impasse do leitor diante do texto.


O gaucho insofrível, de Roberto Bolaño

A tamanha proximidade literária com Bolaño (de quem ainda foi amigo) nem sempre é algo confortável. Tanto é que Vila-Matas escreveu um ensaio sobre a necessidade de tomar alguma distância do companheiro, para olhar o que de fato os aproxima e os afasta. Precisava investigar essa relação a partir de uma espécie de “distância de resgate”. O título do ensaio brinca com o nome de um bolero famoso — o clássico “Contigo en la distancia” virou “Bolaño en la distancia”. Se a canção discorre sobre a luta de um casal para reaquecer a relação, apesar de uma separação física brutal, aqui, um escritor precisa se afastar de outro para, só assim, manter suas “afinidades eletivas”. 

Releio o texto de Vila-Matas e fico imaginando o que Bolaño sentiria ao ver seu nome atado a uma letra de bolero. Acho engraçada a mistura e penso num outro bolerão diante do lançamento da coleção de narrativas curtas (cinco contos e duas conferências) O gaucho insofrível, último livro organizado por ele, entregue aos editores quinze dias antes de morrer. Mas penso agora em “Tú me acostumbraste”, canção sobre o esforço do hábito como a liga final entre duas pessoas. Ou mesmo uma canção sobre a repetição como vício: 

Tú me acostumbraste
A todas esas cosas
Y tú me enseñaste
Que son maravillosas

A gente lê Bolaño justamente pelo vício na repetição. Pela certeza de que vamos nos deparar sempre com passagens sobre a literatura como porta de entrada de todo o mal, com a violência política e os fantasmas que dela ficam para nos assombrar, com a ausência atrapalhada dos dependentes de exílio, os poetas de produções perdidas e jamais publicadas, os agentes duplos e caçadores de óvnis e aparições de santos e os lugares que são desertos ou que neles se transformaram… A lista de repetições é enorme, e seu denominador comum são os traumas herdados do século 20, que se encerrava quando Bolaño começou a escrever suas grandes obras. Em especial, os traumas de quem viveu na América Latina após a epidemia de golpes de Estado que se alastrou a partir da década de 60. 

Vários nunca mais

A repetição desses traumas é reencontrada com maior ou menor intensidade em todos os livros de Bolaño, por isso vale a leitura até mesmo dos póstumos mais “apressados” (para usar aqui um eufemismo), como O espírito da ficção científica e Sepulcros de vaqueros (ainda inédito no Brasil), que encaramos não necessariamente pelo maquinário exemplar da história, e sim pelo tal vício na repetição. Porém a simples necessidade de reaquecer o costume está longe de ser o atrativo maior das narrativas de O gaucho insofrível. Aqui estão reunidos grandes momentos da produção do chileno, e arrisco a dizer que o conto de abertura, “Jim”, talvez seja um dos mais perfeitos de Bolaño, pela precisa desolação com que ele descreve seus vagabundos perdidos, seus Rimbauds pessoais:

Faz muitos anos tive um amigo que se chamava Jim, e desde então, nunca voltei a ver um norte-americano mais triste. Desesperados, vi muitos. Tristes, como Jim, nenhum. Certa vez partiu para o Peru, em uma viagem que deveria durar mais de seis meses, mas ao fim de pouco tempo tornei a vê-lo. Em que consiste a poesia, Jim, perguntavam-lhe os garotos mendigos do México. Jim os escutava olhando as nuvens e depois se punha a vomitar. Léxico, eloquência, busca da verdade. Epifania. Como quando a Virgem aparece para você.

Com o tempo, o narrador perde contato com Jim, para reencontrá-lo, anos depois, com o cabelo mal cortado, a camisa branca e suja e “os ombros curvados como se ainda sentisse o peso da mochila”, observando um engolidor de fogo numa rua do centro da capital mexicana. Está tão absorto na performance, como se o engolidor fosse uma aparição (ou a lembrança de alguma violência, ou um et, ou um santo qualquer), que não escuta o chamado do antigo amigo. Tem o olhar fixo de quem espera uma tragédia e agora só enxerga através das coisas, como costumam ser os grandes personagens de Bolaño. 

No conto de abertura estão, com precisa desolação, seus vagabundos perdidos, seus Rimbauds pessoais

Na última linha do conto, a frase que costuma marcar uma repetição clássica na sua obra, a sentença “Nunca mais voltei a vê-lo”. “Jim” é um exemplo perfeito da maestria de Bolaño como contista. No prólogo da edição reunindo os contos completos do autor (inédita no Brasil), inclusive, a escritora chilena Lina Meruane discorre justamente sobre seu fascínio pela repetição nas variantes da frase “Nunca mais voltei a vê-lo”. É compreensível: um exilado (ou um fugitivo) sabe que não é seguro marcar um próximo encontro.

Outro ponto central de O gaucho insofrível é justamente o longo conto (ou a pequena novela) que nomeia o volume, dedicado ao escritor argentino Rodrigo Fresán. Assim como ocorre em “Jim”, o conto parte com a descrição precisa (e precisa justamente para nos embaralhar logo em seguida) de um personagem: 

Na opinião daqueles que o conheceram intimamente, Héctor Pereda teve duas virtudes acima de tudo: foi um cuidadoso e terno pai de família e um advogado irrepreensível, de comprovada honradez, em um país e em uma época em que a honradez não estava exatamente na moda.

Entretanto, o mundo que Pereda ergueu ao seu redor com esmero, por toda uma vida, começa a desmoronar numa dessas crises econômicas aterradoras que vez ou outra abatem a Argentina. Encurralado, com os filhos distantes e já sem os meios de manter seu padrão de vida, o personagem decide se exilar, para o que acredita ser outro país dentro do seu. Ou mesmo o país que acredita como sendo o “real”. Vai para o Sul, como uma espécie de gaucho travestido, num jogo de espelhos de que Bolaño lança mão para se aproximar ironicamente da tradição literária argentina.

Sentenças fatais ele tem escrito e reescrito na enorme câmara de ecos que é sua literatura

Pensamos, claro, no conto “O Sul”, em que Jorge Luis Borges — o autor nascido com o século 20, numa Buenos Aires que já se veste de metrópole, e que fez do mundo inteiro sua biblioteca e preferia ler o Quixote traduzido para o inglês — recria um Sul mítico. Ainda que a sombra borgeana seja aqui imensa, é preciso olhar também para outro argentino: Julio Cortázar, no seu clássico conto fantástico “Carta a uma senhorita em Paris”, em que o narrador, largado num apartamento emprestado em Buenos Aires, começa a vomitar coelhinhos. Primeiro um, depois dois e, logo, logo, uma dezena de coelhinhos. Uma “doença” ou uma “dádiva” que o leva ao suicídio. 

Pereda, já travestido de gaucho e ao chegar a seu Sul mítico, é logo tomado por uma aparição. Ou melhor, por várias delas: 

No deserto, viu um coelho que parecia apostar corrida com o trem. Detrás do primeiro coelho corriam cinco coelhos. O primeiro coelho, que estava quase ao lado da janela, seguia com os olhos muito abertos, como se a corrida com o trem estivesse lhe custando um esforço sobre-humano (ou sobrecoelhal, pensou o advogado). 

O conto, tal qual o de Cortázar, parece a carta aberta do suicida, que já não encontra mais lugar algum onde pousar. As sombras da cidade financeiramente arrasada não oferecem mais resposta. Nem o território que um dia precisou mitificar para se salvar.  Parece que, ao fim de tudo, só sobraram os coelhinhos.

Bestiário de fixações

“Carta a uma senhorita em Paris” está no volume de contos Bestiário, que Cortázar publicou em 1951. A expressão bestiário me leva a pensar que Bolaño talvez tenha montado o último livro como uma espécie de bestiário de suas fixações, como um aceno derradeiro a Cortázar. Estão todas elas aqui, reunidas em um desfile para sua obra final: o poeta vagabundo sonâmbulo de “Jim”, a brincadeira com a tradição literária de “O gaucho insofrível”, a retomada da narrativa detetivesca de “O policial dos ratos”, passando, claro, pelas duas conferências que encerram o volume e, que, pensadas como bestas em exposição, fazem ainda mais sentido. São elas: “Literatura + doença = doença” e “Os mitos de Cthulhu”, dedicada a Alan Pauls.

 Na primeira, Bolaño se confessa gravemente doente num mundo já bastante enfermo; na segunda, profere uma série de máximas que estariam destinadas a pensar sobre o estado da atual literatura em língua espanhola. Mas são tantos os dardos lançados nessa conferência, que, a certa altura, deixamos de olhar para onde estão indo. Ficamos apenas com a força de passagens como:

A América Latina foi o hospício da Europa, assim como os Estados Unidos foram sua fábrica. A fábrica agora está em poder dos capatazes, e loucos fugidos são mão de obra. O hospício, há mais de sessenta anos, está queimando em seu próprio óleo, em sua própria graxa.

No finalzinho dessa conferência, Bolaño parece se despedir, sentenciando: “Mas somos ruins de cama e provavelmente voltaremos a meter os pés pelas mãos. Tudo leva a pensar que isso não tem saída”. Sentenças fatais assim ele escreveu e reescreveu, desde o começo, dos poemas aos romances e contos, na enorme câmara de ecos que é sua literatura. A música retorna aos meus ouvidos: “Tú me acostumbraste…”.

Quem escreveu esse texto

Schneider Carpeggiani

É editor, jornalista, doutor em teoria literária e curador.

Matéria publicada na edição impressa #78 em dezembro de 2023.