Literatura,

Diálogos na ficção

Novo romance de J. M. Coetzee, sequência de “A infância de Jesus”, imagina sociedade utópica inspirada na Bíblia e em Platão

28nov2018

Que tipo de educação seria oferecida às crianças em uma sociedade utópica? Em A república, Platão propõe, muito simplesmente, “ginástica para o corpo e música para a alma”. Reciclada por J. M. Coetzee, a ideia do pensador grego é um dos pilares do livro A vida escolar de Jesus

Publicado em inglês em 2016, o romance é a sequência de A infância de Jesus, de 2013. No primeiro livro, um homem e um menino se encontram em um navio lotado que parte não se sabe de onde. Ao desembarcar em Novilla, uma terra estranha na qual se fala espanhol, passam a se chamar Simón e Davíd, e, unidos pelo afeto, são agora como pai e filho. Inés, que assumirá o papel de mãe da criança, logo se junta a eles. Em dado momento, graças à resistência de Davíd ao ensino público, a família precisa fugir de Novilla. É então que chegam a Estrella, onde o segundo livro tem início. 

Além da educação oferecida pelo Estado, descartada de antemão, há duas Academias em Estrella: a de música e a de dança. É nesta última que matriculam Davíd. Ali, amparado pela doutrina esotérica do casal Arroyo, o menino aprende a dançar. 

Simón não consegue entender a filosofia da Academia, o que o deixa desnorteado. Também se mostra um pouco enciumado diante do apego de Davíd aos Arroyo.

Filosofia da mente

Até certo ponto, toda narrativa literária é autorreferencial, com suas regras e mecanismos próprios. Mas Coetzee parece, aqui, buscar o radicalismo. A vida escolar de Jesus é mais impenetrável que o livro que o precede, no sentido de ser ainda mais fechado em si mesmo — como, talvez, um bom e velho sistema metafísico.  

Sem modificar o estilo enxuto e direto, o escritor vem exigindo mais dos leitores. Foe, de 1986, discute o realismo ao propor uma intertextualidade com Robinson Crusoé. Desde Elizabeth Costello, de 2003 — que, na fronteira entre a ficção e o ensaio, estabelece um diálogo com Thomas Nagel, um importante teórico da filosofia da mente —, o sul-africano subiu o tom.  

O título é parte do enigma proposto por Coetzee, mais espinhoso na medida em que não há nenhuma menção explícita ao cristianismo. A indefinição proposital contribui para forjar ou potencializar um tom alusivo que atravessa toda a narrativa e cujo eixo é continuamente deslocado dos evangelhos para o platonismo. Vale lembrar que boa parte da escolástica, pelo menos até o século 13, foi baseada em leituras de Platão.

Coetzee se recusa a abandonar o realismo, se não como estilo, ao menos como objeto de discussão

O menino, é claro, não é filho biológico de Simón. E Inés, explica o narrador, “consentiu em se tornar mãe de Davíd”. A construção é uma armadilha elaborada, que remete às duas fontes principais do autor, Platão e a Bíblia. Na utopia platônica, nenhum pai ou mãe saberia dizer com certeza quem é seu filho, e as crianças tratariam os adultos indistintamente.  

O mesmo vale para algumas passagens protagonizadas por Ana Magdalena Arroyo, a belíssima professora de dança. Em uma praia de nudismo, Simón se sente à vontade até o momento em que depara com Ana Magdalena: “só diante dela ele sente a própria nudez”. Ela é feita de mármore, “enquanto ele é formado de barro”. Dentro do esquema proposto por Coetzee, a passagem é tanto uma piscadela para o Gênesis como para o ideal platônico das formas perfeitas. 

A influência platônica em A vida escolar de Jesus não se restringe ao texto d’A república. A doutrina da Academia, por exemplo, é escancaradamente órfica, algo que, até certo ponto, Platão extrai de Pitagóras. Seguindo a tendência curiosa de aliar a matemática ao misticismo, os pequenos bailarinos são instruídos a fazer a dança dos números, que consiste em invocar a perfeição aritmética por meio dos movimentos. Para um órfico, o corpo é filho da Terra, e a alma, do céu. A imortalidade desta última, com constantes evocações da “outra vida”, é parte importante tanto da filosofia da Academia como da cosmologia dos personagens que não pertencem a ela. O casal Arroyo crê — sem jamais citar Platão —, na doutrina da reminiscência, segundo a qual parte do conhecimento deriva das lembranças de uma existência anterior. E, assim, uma criança, de acordo com Ana Magdalena, teria a memória mais fresca. Tudo isso pode ser lido no Mênon e no Fédon

Pé no chão

Coetzee se recusa a abandonar o realismo, se não como estilo, ao menos como objeto de discussão. Está claro que a percepção ou a essência mesma do real, além da maneira de narrar, é um dos motes deste livro — vale lembrar que Davíd, criança prodígio, aprende a ler com uma edição de Dom Quixote. A vida escolar de Jesus sugere que todas as crianças são curiosas e questionadoras. Diante dessa espontaneidade, um ensino rígido, baseado no acúmulo nem sempre contextualizado de informações, pode não ser o melhor caminho.

Os holofotes também apontam para Simón e sua busca por algum sentido: “A opinião dele é que, exista ou não um além, se não existisse a ideia de um além à qual nos apegarmos, nos afogaríamos em desespero”.

Miscelânea de clássicos

Mas há um ponto de virada. Quando Dmitri, zelador do museu adjacente à Academia, comete um crime, a atmosfera passa a ser dostoievskiana. As duas cenas em que se discutem crimes e castigos se desenrolam em um palco, diante de uma plateia — um teatro do absurdo em que Vladimir e Estragon não estariam deslocados. No centro, Dmitri é um Sócrates implorando pela aplicação da pena e, ainda que sem a mesma eloquência e dignidade, recusando-se a fugir. 

Na miscelânea de Coetzee só há lugar para os grandes. Muito se fala em pecado, em arrependimento e perdão, em ressurreição. A justiça terrena, com seus laudos médicos e penas previstas por lei, é atravessada constantemente por sistemas menos tangíveis de expiação.

No fim, não é possível encaixar A vida escolar de Jesus em uma interpretação rígida, como se houvesse uma solução única e pronta para o estado de coisas dado. A melhor crítica para o Coetzee tardio é especulativa.

Quem escreveu esse texto

Camila von Holdefer

Crítica literária, é colaboradora do IMS e da Folha de S.Paulo.