Literatura infantojuvenil,

Espírito próprio

Em livro infantil, Olga Tokarczuk reflete sobre as profundezas da alma sem dispensar as características que lhe renderam o Nobel de literatura

01out2020

É madrugada. Um homem acorda assustado em um quarto de hotel. Ele mal consegue respirar. Não sabe o que está fazendo ali; nem mesmo sabe onde está. Além disso, esqueceu o próprio nome. A polonesa Olga Tokarczuk não recorre, é claro, a nenhuma das palavras que estariam perfeitamente à vontade em um livro para adultos: estresse, crise de pânico ou de ansiedade, colapso. Como o título adianta, a questão aqui é o extravio de uma alma. A alma do protagonista, que não conseguiu acompanhar o ritmo do corpo. 

Há de fato algo de metafórico nos romances de Tokarczuk, Nobel de literatura de 2018. Essa e outras características da escrita da autora surgem, em A alma perdida, como que condensadas e adaptadas para crianças. Também estão presentes as combinações peculiares, que aqui aparecem sintetizadas numa resolução que une uma espécie de clichê místico ou de autoajuda a um cientificismo convencional. Alarmado, o protagonista — que consulta o próprio passaporte para descobrir que se chama João — recorre a uma médica, que por acaso também é uma sábia. A explicação dela para a situação de João situa o surgimento das almas lado a lado com o Big Bang. A velocidade do corpo e a velocidade da alma, diz a mulher, são diferentes. Muita gente não se dá conta de que, de tanto andar apressada, perdeu a própria alma. A médica-sábia então aconselha João a se sentar e esperar sua alma alcançá-lo. É o que ele faz. 

Se as camadas de sentido da literatura de Tokarczuk — como no ótimo Sobre os ossos dos mortos, tão distante quanto possível do público infantil — não se entregam facilmente para os adultos, o mesmo acontece com as crianças. O dualismo que opõe a alma ao corpo serve aqui a uma metáfora que ajuda o leitor em formação a compreender e a lidar com certas abstrações, sobretudo as relativas ao tempo. É por isso que a experiência de leitura de A alma perdida é enriquecida pela mediação de um adulto ou por uma discussão posterior. 

Basta dizer que o livro não traz pequenas frases espalhadas aqui e ali, o que favoreceria a leitura de alfabetizandos, mas uma página inteira de texto. No que há de mais sutil e delicado, no entanto, a história é contada pelas lindas ilustrações da também polonesa Joanna Concejo. 

Os desenhos, aliás, sugerem lembranças de uma época em que João sabia enxergar e reconhecer a alma ainda no compasso do corpo — a infância. Ele está sentado numa espécie de cabana, e reflete. As plantas vão crescendo enquanto aguarda. O tempo passa e as plantas tomam o lugar. Flores nascem dos relógios que João enterrou. Essa vida que cresce sem pressa, mas com tremenda urgência, Concejo capta com muita graça. Quando João finalmente recupera a alma, há uma criança ali com ele. 

Lembrete

John Dewey, filósofo pragmatista e um dos nomes mais destacados da pedagogia, escreveu que a educação tem a ver com o processo do viver, não com a preparação para uma vida futura. É provável que Dewey — a despeito do dualismo corpo-alma — gostasse do livro de Tokarczuk. De modo que o enredo sensível de A alma perdida funciona, é verdade, como um lembrete ou uma advertência — desacelere, não se transforme em um autômato — para o adulto que lê ou acompanha a leitura. 

Mas a perspectiva que deve ser levada em conta e discutida é a da criança — ou seja, a perspectiva de alguém que por ora vive o tempo de outra maneira, bem mais bonita. Curiosa e atenta aos detalhes, confiante nas possibilidades, a criança ainda não foi submetida — pelo menos não por completo — à tirania do relógio. E aí não se trata de ver no livro uma espécie de aviso ou de alerta que visa à prevenção, como a tal preparação para a vida futura. Trata-se de aprender a reconhecer e aproveitar uma fase aberta à plenitude da experiência — do olhar, do interrogar, do investigar — e de assegurar sua continuidade. A diferença é sutil, mas é fundamental. Se o tempo do brincar e do imaginar da infância for respeitado, educa-se, como disse Dewey, no processo do viver. É um comportamento adquirido. E aí a alma não se perde jamais.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Camila von Holdefer

Crítica literária, é colaboradora do IMS e da Folha de S.Paulo.