Literatura em língua francesa,

Pedra e palavra

Reedição de primeiro volume da obra poética de Yves Bonnefoy mostra o desejo de revelar a existência anterior à linguagem

01jun2021

É irônico saber que o poeta francês Yves Bonnefoy iniciou uma conferência na Universidade de Genebra, em 1989, com uma reflexão sobre a palavra “liberdade”. Em obra coesa e coerente, Bonnefoy esteve aprisionado pela linguagem, em permanente luta corporal. “O sentimento do valor criativo é parte constitutiva de nossa humanidade, um dos meios de que dispomos, além da linguagem, para nos distinguir de todas as outras vidas animais”, disse.

Filho de um ferroviário e uma professora, Bonnefoy nasceu na cidade de Tours em 1923. Passava as férias em Saint-Pierre-Toirac, vilarejo onde seus avós tinham uma casa. A região do rio Lot é conhecida por abrigar vestígios de antigas civilizações em pinturas rupestres incrustadas nas rochas do vale. O apreço pela metafísica é, como diz o poeta, a busca pelo vrai lieu (lugar verdadeiro): a infância perdida e a condição humana que erode nas gargantas do vale.

Na juventude, estudou matemática e filosofia. Aproximou-se dos surrealistas, tendo publicado seu primeiro poema, “Le cœur-espace” (O coração-espaço), na revista La Révolution de la Nuit. Em 1947, rompeu com o grupo de André Breton ao fazer do real a matéria-prima de sua poesia. Notabilizou-se pelas traduções das obras de Shakespeare, Keats, Yeats e Petrarca. Foi eleito, em 1981, para o Collège de France. Morreu em 2016, sendo eterno candidato ao Nobel.

A força criativa do autor volta às livrarias na reedição do primeiro volume de Obra poética, lançado pela editora Iluminuras. Com organização e tradução de Mário Laranjeira, o livro compreende cinco obras, publicadas entre 1947 e 1965. Bonnefoy ambicionou transformar sua poesia em resposta a uma eterna perseguição metafísica. Desejou revelar o ser anterior às palavras e, diante da impossibilidade, empregou um campo lexical restrito, cuja potência é atingida nas alterações semânticas de um grande jogo de armar. Poeta de dicção solene, sua erudição aparece em inúmeras referências mitológicas, em odes que reforçam a preocupação com a musicalidade. É no campo da linguagem, e não da conceituação, que seu projeto poético se arquiteta.

Sem forma definida

Não à toa, Anti-Platão (1947) pressupõe no título a busca pelo real na negatividade. Não se nega a abstração da poética de Bonnefoy, mas esse livro de poemas em prosa sem títulos e numerados tem na superficialidade seu ponto de partida. “Trata-se deste objeto: cabeça de cavalo, tamanho maior que o natural, onde se incrusta toda uma cidade […]”, diz o poema 1º. O pronome demonstrativo não substitui o objeto nunca revelado, mas provoca imagens surrealistas, na comparação entre cavalo e cidade. Em Anti-Platão, o poeta concebe a porosidade da superfície na qual o indivíduo moderno se insere. No 9º, a pedra, como objeto perfeito, é citada pela primeira vez. “Dizem-lhe: cava essa pouca terra móvel, sua cabeça, até que encontrem teus dentes uma pedra.”

Em 1953, Bonnefoy publicou Do movimento e da imobilidade de Douve, talvez seu livro mais importante. Criado pelo autor, Douve é um ente sem forma definida. A depender do poema, pode ter composição mineral, vegetal ou assumir a figura de uma mulher. A primeira parte do livro, “Teatro”, reforça a natureza dramática da obra, revelando diferentes estados do ser metafísico. Os poemas 10º, 12º e 14º são iniciados pela mesma frase: “Vejo Douve estendida”. Com a repetição, o eu lírico busca dimensionar a criatura Douve, que se transfigura a cada poema. 

Na seção seguinte, intitulada “Últimos gestos”, descobrimos uma série de poemas em que Douve inicia uma travessia até a morte. 

Que pegar senão quem escapa […]
Que desejar senão quem morre,
Senão quem fala e se lacera? 

No poema “Verdadeiro nome”, Bonnefoy alia a ambição de apreender a morte como absoluta ao desejo de conhecer a finitude em devir.

Morrer é um país de que gostavas. Venho
Mas pela eternidade em teus negros caminhos.

Influenciado por Arthur Rimbaud, Bonnefoy utiliza em sua obra símbolos, como “cervo” e “salamandra”, animais velozes que tematizam sua frustração diante da metafísica. Na terceira parte do livro, “Douve fala”, nota-se a abertura à polifonia para a construção do significado. 

A inquietude espaçotemporal é tema de Reinante ontem deserto, obra de 1958 incluída no livro. O poema “A ponte de ferro” indica que a polissemia explorada pelo eu lírico é uma tentativa de acessar um território primeiro, absoluto e longínquo. Em “A imperfeição é o cimo”, o autor despreza as impurezas da paisagem cotidiana. 

Acontecia ser preciso destruir, destruir, 
                                             [e destruir,
Acontecia a salvação ter esse preço.

No ano seguinte, Bonnefoy publicou Devoção, livro que marca uma nova fase de sua luta. Em diálogo com Rimbaud e Baudelaire, Bonnefoy entrega-se aos símbolos, promessas de redenção no mundo dividido entre “urtigas” e “pedras”, como escreveu no poema de abertura. 

Entre as ruínas da linguagem, o poeta caminha na projeção de um lugar verdadeiro, eterno e mineral. Em Pedra escrita (1965), catorze poemas são intitulados “Uma pedra”. Do artigo indefinido, inferimos que cada unidade poética poderia ser outra pedra. Centralizados no corpo da página, os poemas de mesmo título tentam ser pedras, mas cada composição mineral é formada por signos distintos. Bonnefoy tentou dizer o indizível: ser anterior à luz que refrata na quebra sintática do poema “A luz do entardecer”. 

A tarde, 
Pássaros que se falam, imprecisos, 
Que se mordiscam, luz.
A mão que se moveu sobre o flanco
                                            [deserto. 

Nós estamos imóveis já há tempo.
Falamos baixo.
E o tempo fica em volta a nós tal como
                                   [poças coloridas.

Este texto foi feito com o apoio da Embaixada da França no Brasil

Quem escreveu esse texto

Gustavo Zeitel

Jornalista e escritor, publicou O submundo do meu quarto (Multifoco).