Literatura brasileira,

Monumento a um jovem de 182 anos

‘Dicionário de Machado de Assis’, de Ubiratan Machado, sai em edição revista e ampliada

21jun2021

O que já era bom ficou ainda melhor. Nos dias que correm, são raras as ocasiões em que podemos tirar o pó desse velho clichê. Mas é o caso de evocá-lo aqui, a propósito do lançamento da segunda edição do Dicionário de Machado de Assis, revista e ampliada, lançada em parceria da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo com a Academia Brasileira de Letras e a Imprensa Nacional de Portugal. Ao texto da primeira edição, de 2008, que já se tornara uma obra de referência fundamental sobre o escritor, foram acrescidos cerca de 120 verbetes inéditos. Além disso, a nova edição ganhou mais ilustrações e uma qualidade gráfica muito superior à da primeira edição.

Organizado em ordem alfabética, o Dicionário tem caráter enciclopédico. As entradas podem ser divididas em alguns grandes grupos temáticos principais, tratados de maneira bastante exaustiva. Há o conjunto de entradas que se ocupam dos escritos machadianos, de todos os gêneros. Outro grupo informa sobre as dezenas de assinaturas, entre abreviações, pseudônimos e criptônimos que utilizou. Outro ainda dá conta das editoras e dos periódicos responsáveis pela publicação dos seus escritos. E há também muitos verbetes sobre as pessoas com quem Machado conviveu ou se correspondeu ao longo dos mais de cinquenta anos de trabalho na imprensa, nos círculos literários, no funcionalismo público e também no gabinete pessoal.

O leitor pode ligar, pelos asteriscos que seguem certos termos, nomes e palavras, assuntos que vão desvendando faces mais ou menos conhecidas do escritor, como o enxadrista, o melômano, o amante de trocadilhos

Mas além das entradas voltadas para aspectos mais objetivos da vida e da obra de Machado de Assis, há entradas temáticas, que abordam a vida pública e também a vida íntima do escritor. Assim, o leitor pode ligar, pelos asteriscos que seguem certos termos, nomes e palavras, assuntos que vão desvendando faces mais ou menos conhecidas do escritor, como o enxadrista, o melômano, o amante de trocadilhos.

Curiosidades

Há histórias pitorescas, como aquela do encontro fortuito de Manuel Bandeira com Machado, num bonde. A certa altura, Machado pediu ao jovem Bandeira que o socorresse para lembrar uma estrofe de Os Lusíadas. A memória do rapaz de quinze anos, que sabia o trecho de cor, falhou. Há também a história de Florêncio, contínuo do Ministério da Viação, onde Machado de Assis trabalhou por muitos anos, que tinha a mania de dividir os funcionários em duas categorias: sangue enxuto e sangue doce. Também aí Machado não se encaixava nas categorias, e o funcionário acabou classificando-o como “sangue temperado”.

Ainda no capítulo das curiosidades, o leitor fica sabendo, no verbete “Cachorro”, que além de ter feito de dois cães, Miss Dollar e Quincas Borba, títulos e protagonistas de histórias famosas, o escritor teve dois animais de estimação: Graziela, uma tenerife, e Zero, um pinscher, que volta e meia levava a passear pelo Cosme Velho no bolso do casaco.

A entrada “Amores”, por exemplo, atravessa a grossa cortina da discrição que Machado estendeu em torno da sua vida pessoal e amorosa. Sabemos pelo verbete que, ao longo dos 35 anos de casamento com Carolina, Machado teve um relacionamento extraconjugal, com a atriz portuguesa Inês Gomes. Isso se deu entre 1882 e 1883, logo após a publicação das Memórias póstumas de Brás Cubas e de Papéis avulsos. O verbete dedicado à atriz informa que, na época, ela era mais conhecida pelos pés imensos do que pelo talento, tendo dado ensejo até a uma quadrinha nada lisonjeira: “Um rolete de cana já chupado,/ uma espiga de milho sem caroço./ No drama e na comédia um pé apenas, mas um pé sem igual, comprido e grosso.”

A inconfidência do amor extraconjugal foi feita na época pelo jornal de escândalos O Corsário, que circulou no Rio de Janeiro no início da década de 1880. Prova de que àquela altura Machado tinha status e tratamento de celebridade, o jornal dirigido por um certo Apulco de Castro não só devassou a intimidade do autor de Brás Cubas, mas também dedicou-lhe um texto maldoso: “Espiègle, macambúzio, preocupado, um Hamlet em brochura… porém moreno. Espírito que se debate na dualidade da alegria comunicativa ou da nostalgia porejante de simpatia. Um talento modesto. Dorme no Clube Beethoven.”

Na leitura, ficamos sabendo também o motivo da brevidade da colaboração e da saída abrupta de Machado do jornal O Cruzeiro, no qual publicou o romance Iaiá Garcia (1878) e uma série de crônicas, as “Notas Semanais”, que assinou com o pseudônimo de Eleazar. O diretor do jornal firmou um pacto com escravocratas, passando a receber subvenção em troca da defesa de ideias escravagistas. Isso provocou a debandada, em protesto, de vários colaboradores, entre eles Quintino Bocaiúva e Machado de Assis.

Para conhecer a trajetória do homem e do escritor, não há outra fonte mais acessível, fidedigna, completa e atualizada

Dicionário, sempre muito criterioso na distinção entre o que tem apoio documental e o que são boatos sobre o escritor, muitos deles criados e propagados até por seus melhores biógrafos e críticos, às vezes adota postura crítica e aproxima-se da polêmica. Na entrada “Correspondência”, ao comentar a afirmação de Medeiros de Albuquerque (e repetida por muitos outros) de que a correspondência do autor era irrelevante, o dicionarista responde: “O que queriam? Intriguinhas? Fofocas sobre os colegas de ofício? Confissões sensacionais? Revelações de recalques? É pedir luz solar à lua.”

Ao tratar do “Humor”, traço muito peculiar da escrita machadiana, refuta o que disse Graça Aranha sobre o assunto. O autor de Canaã atribui fundo romântico ao humorismo de Machado, em contraposição ao que o considera ser um tipo de humor mais moderno, mais alegre, sadio e até mesmo apoiado sobre a tolice. Ao que o dicionarista reage: “Ora, o humorismo que se apoia na tolice é que nos parece, hoje, uma grande tolice. Moralista ou revelando ódio à humanidade, o humor machadiano continua sendo um dos arcabouços de sua modernidade.”

Biblioteca

Dicionário de Ubiratan Machado se junta e complementa iniciativas anteriores, como O mundo de Machado de Assis (1961), de Miécio Tati, o Dicionário de Machado de Assis — História e biografia das personagens (1972), de Francisco Pati, e o Dicionário de Machado de Assis — Língua, estilo, temas (2018), de Castelar de Carvalho. Para quem quiser conhecer a trajetória do homem e do escritor, ou obter informações precisas e atualizadas sobre os textos que escreveu, tudo reunido num único volume, não há outra fonte mais acessível, fidedigna, completa e atualizada.

O trabalho de Ubiratan Machado, que inclui também a Bibliografia machadiana (1959-2003) e Machado de Assis, roteiro da consagração, ainda soma-se e dá continuidade às grandes contribuições de José Galante de Sousa, que produziu duas obras monumentais, a Bibliografia de Machado de Assis (1955) e o Fontes para o estudo de Machado de Assis (1958), reunião de informações inesgotáveis e fidedignas sobre o escritor.

O fato de uma obra desse porte ser publicada é motivo de celebração. Que seja resultado do trabalho de um único pesquisador, faz refletir sobre os motivos para que os projetos coletivos — os construtivos, bem entendido — raramente vinguem no Brasil, muitas vezes cabendo a iniciativas individuais dos Galantes e Ubiratans os grandes feitos sobre uma das figuras mais relevantes e admiráveis que este país ainda está por merecer.

Este texto foi feito com o apoio do Itaú Cultural.

Quem escreveu esse texto

Hélio de Seixas Guimarães

É professor livre-docente na Universidade de São Paulo e pesquisador do CNPq.