Literatura,

De Leste a Oeste

Clássico de Goethe mostra a influência da cultura oriental na obra do poeta alemão e sua busca por uma literatura universal

01ago2020

A edição brasileira do Divã ocidento-oriental chega em momento apropriado, a complementar os festejos, em 2019, dos duzentos anos da sua publicação original, e dando-nos renovada oportunidade de examinar a vida e a obra do seu autor, o poeta alemão J. W. von Goethe.

Todas as vezes em que me proponho a apresentar Goethe para novos leitores, sinto-me impelida a desfazer uma série de mitos, como verificados no comentário do crítico literário norte-americano Harold Bloom: “Goethe já não é nosso antepassado, como o foi de Emerson e Carlyle. A sua sabedoria ainda subsiste, mas parece provir de um outro sistema solar que não o nosso”.

Bloom não está sozinho entre os ilustres críticos de Goethe. No século 19, Henrich Heine insurgiu-se contra a autoridade poética do seu contemporâneo mais velho. Já no século 20, T. S. Eliot acabou metendo os pés pelas mãos ao escrever O uso da poesia e o uso da crítica (1933): “Sobre Goethe talvez seja mais preciso dizer que ele se meteu tanto em filosofia como em poesia, sem obter grande sucesso em nenhuma das duas coisas. O seu verdadeiro papel era de um homem do mundo e de um sábio ao estilo de La Rochefoucauld, La Bruyère e Vauvenargues”.

No entanto, em ensaio posterior, Eliot se retrata para admitir a grandeza do poeta: “Há muito admito que Goethe teria sido um dos homens mais sábios. Porém, levei tempo para reconhecê-lo como grande poeta lírico. Que a sabedoria e a poesia sejam inseparáveis em um grande poeta é algo que eu mesmo só percebi ao tornar-me um pouco mais sábio”.

O que todos esses comentários revelam é que, seja enquanto personagem da história intelectual alemã, seja como escritor, Goethe permanece um desafio para quem se esforça em estudá-lo na sua integralidade. O que invariavelmente traz à mente a observação de Nietzsche em Além do bem e do mal — um prelúdio a uma filosofia do futuro (1886): “Tudo que é profundo ama a máscara: as coisas mais profundas têm mesmo ódio à imagem e ao símile”.

Para se ter uma ideia da influência de Goethe na vida cultural europeia, basta dizer que o seu nome permanece utilizado para designar todo um período da história intelectual, o Goethezeit (1770 -1830), que compreende o surgimento da filosofia crítica kantiana e do idealismo alemão, das teorias sobre a autonomia e a formação do indivíduo, bem como dos estudos de antropologia e psicologia que mais tarde influenciariam os pioneiros da psicanálise.

Em sua obra, o poeta consegue dialogar com todas essas tendências, mostrando-se igualmente dedicado às ciências naturais. O seu trabalho abrange estudos científicos sobre a óptica, a geologia, a botânica e o desenvolvimento animal. 

As impressões que ele colecionou em Viagem à Itália. Os Escritos autobiográficos, como o grosso volume Verdade e poesia. A rica correspondência com o poeta Friedrich Schiller e outros coetâneos, como o filósofo Johann Gottfried Herder. Peças de teatro cujos gêneros variam entre o drama histórico, o trágico e o drama burguês, ao exemplo de Götz von Berlichingen da mão de ferro, Ifigênia em Táuride, A filha natural, Fausto e Stella. Romances, como Os sofrimentos do jovem Werther, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister e As afinidades eletivas. Ensaios sobre estética e crítica literária, entre os quais textos sobre a obra do historiador da arte e arqueólogo Johann Joachim Winckelmann e William Shakespeare, a poética de Aristóteles e o conceito de literatura universal. 

Além de uma infinidade de poemas, alguns dos quais influenciaram discussões filosóficas, a exemplo de Prometeu, cujo manuscrito original é tido como o gatilho para a Querela do Panteísmo (1785-89) — célebre controvérsia filosófica sobre a concepção spinozista de Deus, a envolver célebres intelectuais alemães da época, entre eles Friedrich Jacobi, Gotthold Ephraim Lessing e Moses Mendelssohn. Essa obra e uma série de outros versos de Goethe chegaram até nós através de versões musicadas por Ludwig van Beethoven, Robert Schumann, Franz Schubert, Johannes Brahms e tantos outros, fazendo com que as suas criações se mantivessem firmemente presentes no imaginário ocidental. 

Goethe e Hafez 

O Divã ocidento-oriental foi inspirado pelo encontro de Goethe com a poesia de Hafez (1315-90), considerado um dos maiores poetas persas. Essa aproximação não foi acidental. Goethe e Hafez compartilham algumas preocupações fundamentais, entre as quais a hipocrisia religiosa tão enfatizada por Goethe em sua obra, a exemplo do que encontramos na primeira parte de Fausto e na caracterização de algumas personagens em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister

Dividida em duas partes complementares, a obra abre com doze livros de poemas que compõem a primeira parte, enquanto a segunda é formada por 59 ensaios sobre a cultura oriental. O Divã — palavra de origem persa que designa uma coleção de poemas — é a única coletânea de Goethe que forma um único todo, diferentemente das suas outras seleções organizadas a partir de textos espalhados em cartas, diários, romances e publicações da época. 

Em 1815, Goethe comentou sobre seu feliz reencontro com a poesia de Hafez, dando-nos a entender que ele próprio, havendo perdido a maioria dos seus contemporâneos — como Schiller, com quem manteve longa e profícua amizade —, percebera no poeta persa um novo interlocutor: “Se antes não consegui tirar nenhum proveito dos trechos desse magnífico poeta, traduzidos e publicados aqui e ali em revistas, agora eles agiram em conjunto sobre mim de maneira muito mais viva, e tive que, em contrapartida, agir de maneira produtiva, caso contrário não poderia ter resistido à poderosa aparição”.

Assim, Hafez resgatou o poeta da intensa sensação de isolamento pela velhice que se lhe anunciava, permitindo que Goethe se sentisse rejuvenescido por um novo impulso criativo, a partir do qual ele inaugurou novas parcerias fundamentais para o desenvolvimento do Divã — por exemplo, com a atriz Marianne von Willemer, com quem dividiu a composição de três poemas presentes no “Livro de Zuleica”, a saber: “Bendita teu amor me faz”, “Canção do vento leste” e “Canção do vento oeste”.

Alguns dos principais temas explorados por Goethe no Divã confrontam a relação do homem com a natureza, a religiosidade, o amor e a velhice. Este último tema empresta densidade à experiência de leitura da coletânea, deixando-se transparecer em diversos poemas, a exemplo do que diz o personagem Hatem no “Livro de Zuleica”: 

Que Zuleica por José foi encantada
        [não é nada novo; 
era moço, graça de quem é novo;
era belo, dizem, era de encantar;
era bela, podiam se deleitar.
Mas que tu, que me foste aguardada,
jovens olhos de fogo me remetas,
me ames já, depois me deleites:
isso em meus cantos exaltarei,
Zuleica sempre te chamarei.

Literatura universal

Outro importante aspecto a ser ressaltado com relação à recepção de Hafez na obra de Goethe está na mais completa aversão dele a qualquer espécie de paroquialismo literário, sobre o qual  assevera: “Toda literatura fica entediada dentro de si mesma se não for renovada pela participação estrangeira”.

Durante toda a sua vida, Goethe interessou-se por ler e colecionar escritos de autores de outras nacionalidades, como os britânicos Samuel Richardson e Laurence Sterne e a japonesa Murasaki Shikibu. Há inclusive uma célebre passagem em Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida, em que o poeta rebate o comentário de seu secretário, J. P. Eckermann, que se surpreendera com a existência de um romance oriental: “Os chineses os têm aos milhares e já os tinham quando os nossos antepassados ainda viviam nas florestas”.

Aqui se faz necessário ressaltar que Goethe é responsável por popularizar a expressão literatura universal, a partir da qual levanta uma série de questões importantes, diferenciando o hábito de lermos autores de culturas diversas da necessidade de se compreender a diversidade cultural a partir da literatura. 

‘Toda literatura fica entediada dentro de si mesma se não for renovada pela participação estrangeira’, observa Goethe

Nesse sentido, o esforço de Goethe na composição do Divã remete-nos justamente a essa tarefa. Pois, em 1817, dadas as primeiras reações de seus contemporâneos à publicação de alguns poemas do livro, ele resolveu adicionar, na sequência das suas poesias, uma série de ensaios para introduzir o leitor nos grandes temas e personagens do universo oriental,  fazendo referência a obras de estudiosos do tema. 

Tradução

Da dificuldade de leitura do Divã ocidento-oriental, o tradutor e autor do excelente posfácio Daniel Martineschen comenta a característica duplicidade de Goethe que, ao meu ver, é assente no belo poema “Ginkgo biloba”, no “Livro de Zuleica”:

Para atender a tais questões
alcancei um senso azado; 
não vês tu nestas canções 
que sou Um e duplicado?

O tradutor ressalta a trama hipertextual que envolve os poemas do livro, dando-nos a impressão de que todos estão interligados e nos remetem às demais produções escritas por Goethe em diferentes momentos de sua trajetória. Além disso, o Divã aponta modelos culturais diversos, o que leva Daniel Martineschen  a concluir: “Mais profundas ainda são as referências às várias culturas que o autor coloca em movimento: as tradições hebraica, árabe, pré-islâmica, islâmica, a antiga religião persa, a herança cultural e linguística do Ocidente como um todo e a poesia de todas essas tradições, em suas várias expressões e expoentes”.

O orientalismo no qual se baseia Goethe não deixa de ser problemático, como bem ressalta o tradutor em sua tese de doutorado, defendida em 2016 na Universidade Federal do Paraná (UFPR), ao mencionar a crítica feita por Edward Said, em Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (publicado no Brasil pela Companhia das Letras), à aproximação entre a Alemanha e o Oriente: “Há algum significado no fato de que as duas obras alemãs mais famosas sobre o Oriente, o Divã ocidento-oriental, de Goethe, e Sobre a língua e a sabedoria dos hindus, de Friedrich Schlegel, fossem baseadas, respectivamente, numa viagem pelo Reno e em horas passadas em bibliotecas de Paris”.

Embora Goethe tenha consultado uma extensa biblioteca oriental para concluir o seu trabalho, Martineschen acrescenta que os mesmos títulos consultados pelo poeta foram utilizados pelos seus contemporâneos em empreitadas menos sublimes do que a promoção de uma literatura universal. 

Ainda com base nos comentários de Said, o tradutor argumenta que, por essas obras terem sido escritas sob a égide de interesses colonialistas, muito do que fora nelas baseado acabou por propagar certo exotismo com relação ao Oriente. Assim, não é de surpreender que Henrich Heine nos ofereça uma crítica ao Divã com base nesse fenômeno: “Às vezes o leitor também se sente como se estivesse confortavelmente estirado em um tapete persa e fumasse, em um narguilé com longos tubos, o tabaco amarelo do Turquistão, enquanto uma escrava negra lhe refresca com um abanico de penas de pavão e um belo menino lhe alcança uma xícara de café: — o inebriante prazer de viver, Goethe colocou aqui em versos, e estes são tão leves, tão felizes, tão sussurrados, tão etéreos, que nos admiramos de que algo assim fosse possível em língua alemã”.

Tudo isso poderia fazer com que o Divã se mostrasse uma leitura difícil para quem quer iniciar o seu trajeto pela obra de Goethe, principalmente em tradução. No entanto, o cuidadoso trabalho de curadoria da edição brasileira permite-nos saborear o Divã em versão bilíngue e valorizar as soluções poéticas encontradas por Martineschen, tornando Goethe um autor com o qual podemos nos familiarizar mesmo em português. 

Quem escreveu esse texto

Juliana de Albuquerque

Colunista do jornal Folha de S.Paulo. Doutora em Filosofia e Literatura Alemã pela University College Cork (Irlanda) e Mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv (Israel). Ela coeditou o volume Anti/Idealism: Re-interpreting a German Discourse (De Gruyter, 2019)