Jornalismo,

Do foca à fera

Com histórias saborosas, livro de memórias de Seymour M. Hersh é um alento em tempos de ataques ao jornalismo

01maio2019

A pequena e caótica sala de dois ambientes, num prédio de escritórios na região central de Washington, é o reduto de Seymour Myron Hersh há uns bons anos. De sua mesa de trabalho, sem computador (estava em outra parte), sobressaía uma montanha de livros, pastas e blocos de notas de folhas amarelas: os manuscritos em que ele estava trabalhando naquele março de 2013 — um livro-reportagem sobre a atuação de Dick Cheney, vice de George W. Bush (2001-09) e figura central na Guerra ao Terror promovida após o 11 de Setembro. 

“Não coloco nada dessa pesquisa no computador”, explicou. “Meu amigos do serviço secreto dizem que um computador off-line pode ser rastreado.” 

Parecia uma típica (e pleonástica) paranoia de repórter, mas três meses mais tarde o mundo conheceria Edward Snowden, ex-analista da National Security Agency (NSA) que promoveu o maior vazamento de dados da história da inteligência americana. Entre as revelações, estava o monitoramento que o serviço secreto fazia em computadores off-line.  

“Se eu tivesse publicado o livro sobre Cheney”, voltou a me dizer Hersh em abril passado, numa troca de e-mails, “ele contaria que o vice-presidente ordenou que todas as restrições às interceptações da NSA fossem removidas ainda na noite do 11 de Setembro. Eu conhecia uma pequena parte dos ossos revelados pelo Snowden”.

Hersh soube da descontrolada espionagem após os atentados de 2001, quando se envolveu na cobertura, e desde então passou a escrever à mão tudo o que considera sensível: “Gravadores e registros on-line não combinam com informações secretas”. 

O livro sobre Cheney está parado, mas em compensação Hersh pôde se dedicar a escrever as suas memórias. Lançado nos Estados Unidos em 2018, Repórter — seu terceiro livro publicado no Brasil — é uma fascinante aula de jornalismo que percorre seis décadas de história da imprensa e do poder.

Sobrevivente da era de ouro do jornalismo, como se apresenta, Seymour Hersh é um dos grandes personagens da história da imprensa americana, autor de reportagens que impactaram a opinião pública do país nos últimos cinquenta anos. Há mais de uma década ele foi definido pelos ingleses do Financial Times como o “último grande repórter americano”. Nos anos 70, ao comentar um de seus furos, a Time escreveu que suas reportagens “podiam ser lidas como um guia histórico de uma geração”. 

Nascido em Chicago em 1937, Hersh tem uma trajetória peculiar. Enquanto a maioria dos colegas de geração vinha da Ivy League (grupo de elite das universidades americanas), Hersh se fez sem ter nível superior completo e sempre achou a tal objetividade jornalística uma bobagem. 

Filho de um casal de imigrantes judeus, ele da Lituânia, ela polonesa, Hersh trabalhava na lavanderia da família de classe média baixa quando o pai adoeceu e pouco depois morreu de câncer. Ajudou a tocar o negócio num gueto negro da zona sul de Chicago, onde teve as primeiras lições sobre o racismo. “Aquele período me ajudou a endurecer para as críticas do futuro. Depois daquilo, poderia enfrentar qualquer coisa. Não era um lugar tão ruim como as favelas do Rio, mas era difícil para uma criança. Aprendi que ser honesto e direto com as pessoas era a única maneira de me comportar”, me disse ele. 

Foca

Seu sonho era trabalhar na Xerox, mas, depois de perder tudo numa noitada de pôquer, foi parar na redação do City News. O foca se formou repórter nos anos 50, cobrindo os crimes e incidentes da perigosa Chicago, tempo em que os jornalistas deixavam a redação após o fechamento para beber nos inferninhos onde se apresentavam nomes como Miles Davis, John Coltrane e Thelonious Monk. 

Em Washington, onde se estabeleceu na década seguinte, cobriu pela Associated Press a campanha do pastor Martin Luther King. E fez amizade com outro ícone da imprensa americana, I. F. Stone, com quem aprendeu que para ser bom repórter e conseguir uma matéria é necessário ler — antes de escrever e principalmente antes de fazer uma entrevista. 

O primeiro grande furo, que o alçou à fama internacional, veio em 1969, nos tempos de freelancer. A revelação de que militares americanos massacraram centenas de civis no vilarejo de My Lai, no Vietnã, episódio que o governo tentava manter em segredo, foi publicada por uma modesta agência de notícias e lhe rendeu um Pulitzer, o mais prestigioso prêmio do jornalismo mundial. 

Desde então foram dezenas de reportagens (quase todas contestadas por quem se incomodou com elas, evidentemente) que, mesmo com o passar do tempo, ainda servem como uma guia histórico do país, seja sobre a vigilância doméstica ilegal da CIA, seja sobre as ligações do crime com conglomerados empresariais. Hersh ainda mostrou as tentativas da Casa Branca para encobrir ações ilegais dentro e fora do país (foi dele a reportagem que mostrou como Kissinger e Nixon pressionaram a CIA para que fosse mais agressiva nas ações de sabotagem contra Salvador Allende, presidente chileno deposto em 73).

São saborosas as passagens sobre os seus oito anos no New York Times, na década de 1970, quando ganhou dos inimigos (muitos trabalhavam no mesmo jornal) o rótulo de “terrorista do jornalismo americano”. Como ele escreve, “humor e persistência” costumam funcionar no momento da apuração, mas “ameaçar e ser agressivo” não costumam trazer resultados, ensinamento que muitos jornalistas passam a vida sem assimilar. A pressão para barrar seu trabalho e a campanha difamatória movida contra ele na cúpula do jornal são reveladoras do que é capaz o poder para impedir o vazamento de segredos.

Em outra passagem divertida, ele rememora a concorrência com Bob Woodward e Carl Bernstein, do Washington Post, na cobertura do Watergate. Nascia ali a suposta rivalidade entre ele e Woodward, uma duradoura obsessão dos jornais americanos. Hersh conta que os dois jogavam tênis juntos, chegaram a compartilhar uma fonte — decerto não era o Garganta Profunda, o principal informante do escândalo que derrubou Nixon — e até se reuniam para fumar um baseado (geralmente na presença de Bernstein). 

O pior pecado de um jornalista é a autocensura, escreve Hersh, e ele lembra alguns de seus erros, como não ter investigado a informação das agressões de Nixon contra a mulher. 

Ele também discute uma das principais críticas ao seu trabalho: o uso de informações off the records, quando a fonte da informação é omitida. Para ele, trata-se de um compromisso sacrossanto, fundamental para quem se dispõe a contar os segredos e crimes cometidos por um governo. 

O uso recorrente do off — a chefia sabia a identidade dos informantes — foi um dos motivos dos desencontros  dele com Abe Rosenthal, o todo-poderoso editor-executivo do Times, e com David Remnick, ainda hoje o editor da New Yorker. Hersh deixou de colaborar regularmente com a revista após a eleição de Obama, em 2008, para se dedicar ao livro sobre Cheney. No livro, ele conta ter se incomodado com a proximidade de Remnick com Obama — o jornalista escreveu uma biografia do presidente no início do seu governo. “Aprendi, com o passar dos anos, a nunca confiar nas aspirações declaradas de nenhum político, e eu também era puritano o bastante para achar que editores não deveriam virar amigos de um presidente no poder.” 

A tensa relação entre eles foi exposta em 2015, quando Hersh publicou na London Review Of Books a reportagem, recusada pela New Yorker, sobre a morte de Osama Bin Laden no Paquistão. Ele sustenta que Bin Laden era mantido em segredo no Paquistão por alguns anos e foi executado numa ação entre os dois países — a Casa Branca divulgou que a ação para matar o terrorista foi unilateral. 

Remnick argumentou que as informações em off não sustentavam a matéria. Hersh, no livro, conta que as duas principais fontes da história (um oficial do serviço secreto paquistanês, outro dos Estados Unidos) eram as mesmas de reportagens sobre a Guerra ao Terror de Bush que tiveram destaque na revista na década anterior, sob os cuidados do mesmo editor.

Trump

É um alento que o livro seja publicado no atual momento do jornalismo, criminalizado e em permanente ataque mundo afora. Mas Hersh não é otimista quanto ao futuro e desaprova a atitude da imprensa em relação a Trump. “Escrever coisas negativas sobre Trump levará o repórter para a primeira página, vai trazer leitura. A imprensa se animou a acompanhar os tuítes do presidente, mas ignora o dano que ele causou no governo ao trocar profissionais experientes por apoiadores de extrema direita.”   

Hersh pessoalmente se mostra mais simpático do que sugere sua fama de ranzinza. Na visita a seu escritório em 2013, para uma entrevista sobre os dez anos da (última) guerra do Iraque, ele foi seco no primeiro contato, por telefone: “Sou apenas um repórter, que merda tenho para falar?”. Depois, soltou-se. Na introdução das memórias, ele debocha de jornalistas que aparecem na TV e começam a fala com duas palavras mortais na imprensa, segundo ele: “Eu acho”. 

Hersh foi seco no primeiro contato, por telefone: ‘Sou apenas um repórter, que merda tenho para falar?’

Naquele dia, Hersh me apresentou o velho amigo de cabelo branco e ralo com quem conversava animadamente: Daniel Ellsberg, ex-analista militar do Pentágono e responsável pelo primeiro grande vazamento de documentos secretos da história americana, no início dos anos 1970, episódio conhecido como Pentagon Papers. Precursor de Snowden, Ellsberg é um dos tantos com seu quinhão de histórias nas memórias do repórter.

Hersh continua na ativa aos 82 e com disposição para viagens. Atualmente está envolvido na produção de um documentário em que volta ao tema de sua primeira grande reportagem, o Vietnã. Sempre considerou que My Lai estava longe de ser uma exceção nas violações americanas, e acha que agora, cinco décadas depois, terá uma maneira de mostrar isso. 

O livro sobre Cheney está temporariamente pausado (e continua bem longe do computador). Ele conta que não poderá voltar ao trabalho enquanto o ex-vice-presidente estiver vivo (Cheney tem 78 anos), para não expor as suas fontes, pois algumas ainda estão em cargos federais e teriam a carreira prejudicada. 

Herói para diferentes gerações, Seymour Hersh sabe que o tipo de jornalismo que sempre praticou está em baixa — não só pela crise no modelo de negócio da imprensa, mas também pelos “editores covardes”, como diz, que têm dificuldade em se relacionar com “repórteres difíceis”. 

“Acho que os problemas que tive na carreira têm a ver com o tipo de reportagem que faço. Os editores simplesmente cansam de um repórter que entra no escritório com um rato morto, cheio de piolhos, e diz que esta é a história que ele quer escrever. Vai custar dinheiro, vai ser difícil de apurar, pode não funcionar. Pode ser tempo e dinheiro jogados fora. Se publicado, poderá gerar processos, perda de leitores e possivelmente será ignorado pelos idiotas, e às vezes criminosos, que comandam o país. Que editor aguenta isso?”  

Quem escreveu esse texto

Lucas Ferraz

Jornalista, é colaborador da revista Piauí, do jornal Valor Econômico e do portal UOL