História,

O dom de Rondon

Biografia feita por jornalista americano tem narrativa hábil e organizada, mas não tira o marechal do pedestal

01maio2019

O marechal Cândido Rondon teve uma vida extraordinária. Um dos maiores defensores dos povos indígenas do país, o militar é um personagem de modo geral tão positivo que a publicação de uma biografia, sobretudo no atual contexto brasileiro, é um chamado à razão para capitães e generais do Exército que negam a tradição de alguns de seus melhores homens.

O experiente jornalista Larry Rohter, que trabalhou no Brasil como correspondente do The New York Times de 1999 a 2007 — e que ganhou notoriedade em 2004, quando foi ameaçado de expulsão do país pelo então presidente Lula, que não gostou de uma reportagem que o retratou como adepto do álcool —, conduz o leitor com habilidade pela trajetória muitas vezes improvável desse brasileiro miúdo (tinha cerca de 1,60 m), mas vigoroso e tenaz, que percorreu milhares de quilômetros de selvas brasileiras durante anos a fio.

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É difícil não admirar Rondon, e Rohter não foge à regra — de largada um problema potencial, já que a tendência de um biógrafo fascinado por seu biografado é magnificar os feitos e minimizar as falhas. Isso não significa, de forma alguma, que o americano tenha feito uma hagiografia: ele descreve em detalhes, por exemplo, a política de espancamentos e maus tratos praticada pelo marechal contra seus subordinados rebeldes, que levou à morte de pelo menos um deles. Chama a atenção, contudo, a escassez de testemunhos dos mais diretamente afetados pelas empreitadas de Rondon: os próprios indígenas. 

Há, aqui e ali, manifestações de apreço dos índios pelo marechal, mas o leitor pode se perguntar se não existe algum registro sobre o que eles realmente pensavam sobre a dita “integração nacional” — uma política de governo, carreada no contexto das expedições para implantação das linhas telegráficas, da demarcação das fronteiras e do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado e presidido por Rondon por quase vinte anos.  

Sabemos da existência de ao menos um registro. Em meados dos anos 1990, quando eu fazia pesquisas para uma série de reportagens sobre os 130 anos do nascimento de Rondon, encontrei um relato instigante no Arquivo Público do Mato Grosso: uma conversa entre o marechal e um bororo que criticava duramente o uso de mão de obra de índigena no projeto militar que comandava.

O anti-Bolsonaro

O texto de Rohter prende a atenção do leitor ao tratar de detalhes das expedições sem descuidar da turbulenta macropolítica do período. A organização objetiva da cronologia e a habilidade de Rohter em encadear os fatos qualificam a obra como essencial para conhecer o personagem.

Mas o livro gasta apenas dois ou três parágrafos com uma virada importante da vida de Rondon: as dúvidas que passou a alimentar sobre a eficácia da política integracionista. Há pelo menos uma declaração do próprio marechal admitindo ser um equívoco buscar contato com índios isolados, colhida pelo Diário Carioca em 1949 e localizada pelo cineasta Joel Pizzini na pesquisa para seu filme Rio da dúvida (2018). O tema tornou-se central entre antropólogos e indigenistas, mas Rohter limita-se a tachar os críticos à prática rondoniana de “revisionistas”. Não parece ser um bom caminho interditar um debate. Personagens históricos não devem ficar cristalizados como intocáveis. Discutir suas motivações e a consequência de seus atos ajuda a iluminar o presente e projetar o futuro.

Rondon passou a advogar que o homem branco deixasse de procurar os índios isolados

Também não fica muito clara a decisão de Rohter de não expor com maior profundidade os impactos da política do spi sobre as populações indígenas. Rondon e órgão são indissociáveis: trata-se da materialização administrativa do pensamento rondoniano, de modo que seria natural verificar com mais atenção em que medida o SPI conseguiu converter em políticas públicas as pretensões do marechal. 

Espaço não faltaria. Por exemplo, o livro dedica quase cem páginas à já bem conhecida expedição Roosevelt-Rondon — certamente com um olho no leitor americano —, mas nada fala sobre uma série de demarcações de terras indígenas realizadas pelo SPI que impactaram diretamente a vida dos guaranis de Mato Grosso do Sul (é sintomático que a palavra “Guarani” nem sequer apareça no livro). 

Como observou o antropólogo Rubem Ferreira Thomaz de Almeida, uma das primeiras medidas do SPI, em 1910, foi transferir para Campo Grande uma inspetoria de Bauru (SP), a fim de atender “uma quantidade imensa de indivíduos caiuás”. Entre 1915 e 1928, o órgão, então presidido por Rondon, demarcou apenas oito áreas para os Guarani Kaiowá e os Nhandeva, seguidamente reduzidas com o passar do tempo. Hoje, a escassez de terra para os guaranis de Mato Grosso do Sul representa uma das maiores tragédias humanas do país. Não se trata de culpar ou eximir Rondon pelos acontecimentos subsequentes. O contexto da época, permeado por pressões políticas e escassez de recursos, certamente relativiza o seu papel na questão. Deixar de tratar de temas como esse, porém, não parece ser uma decisão acertada.

De qualquer modo, no cômputo total o livro é uma leitura imprescindível num país cujo presidente, além de declarar que não demarcará mais nenhum centímetro quadrado de terra e que as minorias devem se curvar à maioria, afirma que os índios devem sair de suas terras — inclusive vendê-las, se necessário, pois querem ser “como nós”. 

Rohter registra que Rondon gostava da expressão positivista segundo a qual os mortos governam os vivos. Definitivamente, a máxima já não se aplica ao caso brasileiro. Sepultado em 1958, o marechal é o perfeito oposto do capitão reformado Jair Bolsonaro. Ouvir sua opinião sobre os indígenas, de cem anos atrás, é um bálsamo para as barbaridades de 2019: “Há vinte anos que trabalho no meio deles. E até hoje os tenho encontrado por toda a parte de peito aberto aos nobres sentimentos da humanidade; de inteligência lúcida e pronta a aprender tudo quanto se lhes quer ensinar; invencíveis às fadigas do mais rude labutar; amigos constantes e fiéis dos que os tratam com bondade e justiça”.  

Quem escreveu esse texto

Rubens Valente

Jornalista, é autor de Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura (Companhia das Letras).