Filosofia,

Refletir sobre a reflexão

Dois pensadores brasileiros iluminam as obras de dois grandes pensadores franceses do século 18, Diderot e Rousseau

28nov2018

É incerta a posição de Denis Diderot (1713-84) na história da filosofia. Reconhecido como um dos grandes escritores da língua francesa, foi traduzido para numerosos idiomas, e ninguém contesta que, nesse sentido, é um clássico. Os especialistas volta e meia se referem a ele, mas poucos o incluem entre os filósofos mais importantes. 

Isso se explica, em boa medida, pelo caráter aparentemente errático de seu pensamento, que em nada lembra os grandes sistemas, erguidos à maneira de edificações arquitetônicas — em que cada uma das peças se encaixa perfeitamente nas outras, conforme um plano. Kant, por exemplo, fala na razão como um organismo, mas, com esses termos, termina por assimilá-la a uma estrutura rígida, da qual estão excluídos o dinamismo e a imprevisibilidade da vida. 

Quanto a Diderot, ele concebe a forma orgânica em movimento e em transformação, e, ao comparar o sistema dos conhecimentos a um ser vivo, como quando, a propósito da Enciclopédia, fala em “árvore do saber”, refere-se a algo ditado pelo fluxo da experiência, sujeita a revisões constantes e a alterações profundas. 

O tema atravessa, de uma ponta a outra, o livro A cadeia secreta, de Franklin de Mattos, publicado em 2004 e agora oportunamente reeditado. De formulação instigante, o título é um achado: sugere ao leitor, de saída, que um fio tênue e sutil percorre os escritos de Diderot. 

Interpretar a natureza

Como nota o autor, esse filósofo foi desde sempre um “experimentador”, o que explica “a aparente dispersão de sua obra em geral e de seus romances em particular. Este livro procura sugerir que, por trás da desordem, há uma unidade de preocupações. Ou uma cadeia secreta, metáfora que aparece nos melhores escritores das Luzes e que se aplica indistintamente à natureza, à linguagem, à literatura e até mesmo à arte da conversação”. 

Explicar o que Diderot entende por romance filosófico é mostrar, ao mesmo tempo, como funciona a oficina literária de um homem que não se contentou em transitar por diferentes gêneros da arte de escrever, mas se deleitou ainda em inventar tantos outros, convenientes aos objetos que lhe interessava discutir. 

A propósito da natureza, Diderot declarou que não bastava conhecê-la, era preciso interpretá-la, ou seja, tomar os fenômenos como signos de uma ordem silenciosa, que não se declara, só pode ser decifrada. Inventou assim a história natural como gênero filosófico, concebendo o mundo natural como objeto de literatura, no sentido amplo de uma trama de signos. 

Um dos pontos altos de A cadeia secreta é justamente o ensaio “Materialismo e conversação”, que comenta esse tópico ao mostrar que há em toda a obra de Diderot uma ligação sutil entre a filosofia da natureza e uma crítica da noção de alma — e esta, por sua vez, liga-se a uma teoria dos signos que é também uma poética. 

Demonstração vertiginosa, que em mãos menos habilidosas poderia ser pesada e onerosa para o leitor, mas que Franklin de Mattos executa com destreza rara. É um exemplo, dentre outros possíveis, de como A cadeia secreta alia ao comentário filosófico rigoroso uma crítica do mais alto calibre, inscrevendo-se em um gênero difícil, que poucos autores ousaram ou poderiam cultivar. 

Mais importante, sentimo-nos impelidos a retornar a Diderot, a abrir suas páginas em busca das delícias proporcionadas por uma inteligência filosófica ímpar e muito atual, independentemente do que pensam os elaboradores de “cânones filosóficos” (eles mesmos críticos menores).    

Qualidades similares, condensadas em um estilo também único e original, são conspícuas em A retórica de Rousseau, que reúne ensaios de Bento Prado Jr. dedicados a outro representante das Luzes ou, antes, ao seu dissidente de primeira hora. Seria temerário reduzir um livro rico como esse a uma unidade temática, mas Bento Prado Jr. já indica seu assunto no próprio título: a retórica de Rousseau, não o estilo retórico do filósofo, mas o centro retórico de sua obra. 

Demonstrar onde reside esse centro é vasculhar um conjunto de escritos cuja unidade está longe de ser aparente, o que pode explicar por que, assim como Diderot, tampouco Rousseau costuma contar entre os “grandes”. Cegos para a complexidade de sua obra, suas nuances e sutilezas, os escoliastas da filosofia fazem questão de apontar para “contradições” e “incoerências” que o relegariam ao campo da literatura. 

Bento Prado Jr. não perde tempo e ignora solenemente também o emaranhado ideológico que costuma envolver as discussões sobre a teoria política e a moral de Rousseau. Evitando o método escolar da tediosa recensão bibliográfica, A retórica de Rousseau encara as leituras mais instigantes do filósofo na cena contemporânea — Starobinski, Derrida e Lévi-Strauss, entre outros — procurando mostrar que essas leituras díspares têm afinidades que permitem conectá-las entre si, desde que se identifique corretamente o princípio de articulação do pensamento de Rousseau. 

Interrogar as relações

Trata-se com isso de estudar como o discurso de Rousseau introduz uma novidade no panorama filosófico: a ideia de que a filosofia é uma antropologia, e o homem, antes de ser um sujeito, substancial ou transcendental, é uma espécie em relações com outros seres vivos, à qual cabe encontrar sua própria identidade, ou, se quisermos falar com os alemães que se deixaram seduzir por esse projeto, realizar sua “destinação”. 

No ensaio introdutório, Prado questiona: “Como Rousseau quer ser lido por nós que pertencemos a outro século, qual é o perfil desse leitor tardio que ele espera do fundo de uma paciência infinita? Como nos situar, a nós mesmos, em relação à sua obra e em que lugar situá-la para lê-la melhor? E, já que se trata de escrever sobre ele — empreitada que poderia perfeitamente parecer-lhe destituída de seriedade e de fundamento —, o que acrescentar, nesse discurso segundo e secundário, àquilo que é dito pelos próprios textos?”. 

As interrogações resumem de maneira exemplar a imbricação entre o comentário de texto e a elaboração conceitual da qual ele é inseparável. Atente-se bem: nas páginas de Bento Prado Jr., o comentário não é a antecâmara da verdadeira filosofia, é imanente à própria reflexão. Exemplo difícil de ser seguido, mas nem por isso menos valioso.

Quem escreveu esse texto

Pedro Paulo Pimenta

É autor de A trama da natureza: organismo e finalidade na época da Ilustração (Editora Unesp).