Economia,

Um livro majestoso

Nova tradução restitui o espírito e a letra de uma das obras fundadoras do pensamento liberal

01jan2023

Publicada em 1776, A riqueza das nações logo se tornou referência no debate político e econômico, de Londres à Paris da Revolução, da Europa às colônias americanas. A crítica ao sistema mercantilista, a defesa do livre-comércio, sua censura ao tráfico negreiro e ao trabalho escravo e a ampla discussão sobre a arrecadação e o gasto público deram novos ares à sisuda ciência econômica praticada pelos fisiocratas e outros contemporâneos. Por um curto período, a economia se tornou, graças a Smith, uma ciência crítica: dos preconceitos e das paixões humanas, mas, sobretudo, de seus próprios princípios, a serem revisados e renovados à luz da experiência histórica. Quando se pôs a escrever, Smith não pensava em inaugurar uma ciência “exata” e “sólida”, concebida nos moldes da matemática (a economics tal como a conhecemos). Considerou a economia sob a rubrica da jurisprudência, ciência que estuda as condições de administração do Estado, ou, se quisermos, do corpo político. Desde as suas célebres lições de jurisprudência, ministradas em Glasgow entre 1762 e 1766, ele deixara claro que a vida política só existe enquanto tal — e seus atores só podem entrar em cena — quando as comunidades humanas são geridas por leis claras, constantes e aplicadas de maneira regular. Não importa como são reunidas, se em uma constituição, um código ou sob outra forma, são essas leis que garantem a vida e a propriedade de cada indivíduo contra a violência e a ganância dos outros. Sem isso, não pode haver nem liberdade política (civil liberty) nem liberdade individual (freedom).


Publicada em 1776, A riqueza das nações, de Adam Smith, logo se tornou referência no debate político e econômico

Apenas quando tais liberdades se encontram minimamente garantidas é que o comércio pode se tornar extensivo. Ora, se não há dúvida, segundo Smith, de que em toda e qualquer sociedade existe algum tipo de relação comercial entre grupos ou indivíduos, é apenas nas sociedades modernas — mais precisamente a partir do século 16 — que o comércio se torna um assunto de Estado, ou uma questão política. Expandindo-se para além de seus próprios limites, os Estados europeus conquistam territórios na América, transformam-nos em colônias de extração e os ligam ao comércio de mão de obra africana escravizada e aos monopólios das chamadas “Índias ocidentais”.

Sociedade comercial

Smith dá a esse processo — que outros depois chamarão de “capitalismo”, “mundialização”, “antropoceno” etc. — a modesta alcunha de “sociedade comercial”, e põe-se a analisar o fenômeno historicamente, buscando extrair, em meio ao peso das circunstâncias que determinam a direção das coisas humanas, a silenciosa porém inequívoca atuação das leis gerais que tornam essa experiência regular, malgrado as aparências. A terceira parte d’A riqueza das nações traça uma conjectura histórica sobre as origens da sociedade comercial, que Smith remonta à queda do Império Romano. A certa altura dessa seção, certamente a mais acessível do livro, ele observa que “a ordem natural das coisas” que leva ao comércio entre a cidade e o campo, e que “ocorre, em maior ou menor medida, em todas as sociedades”, se deu, “em muitos aspectos, de maneira completamente invertida, em muitos Estados da Europa”. Quer dizer, se é possível e mesmo necessário identificar leis gerais e traçar um quadro esquemático sobre as origens da sociedade comercial, é igualmente indispensável ficar atento às vicissitudes que condicionam os efeitos empíricos dessas leis.

Mas isso não é tudo. Para Smith, a história humana é um processo que ocorre às cegas, no qual os agentes, na realização de seus interesses imediatos, terminam por produzir uma ordem cujos lineamentos eles não poderiam sequer entrever. Daí a célebre metáfora da mão invisível: querer controlar, para além de certo ponto, as interações humanas é brincar de Deus, com consequências nefastas — mesmo porque, na obra de Smith, Deus não é uma coisa, nem mesmo uma ideia, mas apenas uma metáfora da ordem que se produz a si mesma, sem desígnio nem intenção.

Smith não pensava em inaugurar uma ciência ‘exata’ e ‘sólida’, concebida nos moldes da matemática

O advento da “sociedade comercial” não é um fenômeno neutro. Introduz na cena histórica, pela primeira vez de maneira generalizada, uma oportunidade para o desenvolvimento de uma propensão característica da natureza humana: a invenção. Dez anos antes d’A riqueza das nações, na última de suas lições sobre jurisprudência, Smith exprimira essa ideia de maneira curiosa. Contrariamente aos outros animais, que se sentem satisfeitos com o que a natureza lhes oferece para sustento e bem-estar, o “homem é dotado de uma delicadeza tão grande, que nada do que a natureza produz pode lhe agradar, e em tudo ele vê necessidade de melhoria”. Mas esse instinto é relativo às condições em que os humanos se encontram, e inevitavelmente se torna mais aguçado numa sociedade como a comercial, definida tanto pela multiplicação das necessidades a serem satisfeitas quanto pelo número quase infinito de meios para satisfazê-las.

Ocorre que a sociedade comercial, além de incitar ao aguçamento desse instinto natural, também facilita o seu desenvolvimento. Nesse sentido, a primeira parte d’A riqueza das nações continua sendo o momento mais alto de um livro sem pontos baixos. Dedicado à análise de um fenômeno preciso, a divisão do trabalho, ele oferece, ao mesmo tempo, uma perspectiva de conjunto sobre o mundo moderno.

Divisão do trabalho

Para Smith, a divisão do trabalho explica “os grandes avanços do poder produtivo do trabalho, e a parte mais substancial da habilidade, da destreza e do discernimento com esse poder é atualmente empregado”. Trocando em miúdos, a divisão do trabalho responde pelo alto grau de complexidade e perfeição atingido, na segunda metade do século 18, na manufatura.

Smith realiza uma análise magistral de como a introdução desse expediente trouxe, na época, uma alteração completa na própria organização da sociedade. O exemplo que ele toma como ilustração é o da manufatura de alfinetes, processo que passa por nada menos que dezoito etapas e que requer, no lugar do trabalho de um ou poucos artesãos num ateliê, a mobilização de uma numerosa equipe dentro de uma oficina.

A reorganização do trabalho produtivo não se restringe à manufatura: estende-se à agricultura, ao comércio e, para além da esfera da produção da riqueza, à divisão de grupos na sociedade e na própria administração do Estado. O mundo moderno não apenas requer o uso da invenção como capacidade humana, mas também fomenta o seu desenvolvimento constante, em busca de meios cada vez mais eficazes para a produção dos fins desejados. Smith nunca foi um utilitarista puro, e essa consideração é temperada pela atribuição de um pendor estético à natureza humana. Não nos contentamos com a realização de um objetivo, temos de alcançá-lo pela maneira mais sofisticada e complexa possível, pois o que nos deleita, acima de tudo, é a beleza do sistema, para além de sua eficácia.

Não nos contentamos com a realização de um objetivo, temos de alcançá-lo pela maneira mais sofisticada e complexa possível

A riqueza das nações é testemunho de como isso acontece. A exemplo de outros livros escritos na mesma época ou logo depois — como Declínio e queda do Império Romano, de Gibbon, ou A origem das espécies, de Darwin — a obra-prima de Smith se alonga para muito além do que requerem a exposição e a demonstração de suas principais teses e argumentos. Tanto melhor para o leitor, que conta com mais uma obra no catálogo das que são, por definição, inesgotáveis.

É uma questão saber em que medida a posteridade fez justiça a esse livro majestoso. Como poderia tê-lo feito? Esforços não faltaram. Hume o leu e houve por bem corrigi-lo, já no leito de morte. Malthus foi um discípulo tacanho; Say, um continuador original. Ricardo percebeu a insuficiência da teoria do valor. Não falemos sobre Marx nem sobre Hayek, que lançaram A riqueza das nações na arena de disputas ideológicas que se arrastam desde o século 19 até os nossos dias.

Pensador radical

Vez por outra se lê, na pena de um de nossos numerosos articulistas de economia, um elogio a Smith, o “pai da economia moderna”. Que seja. Outros, mais atentos à profusão de tesouros oferecidas em suas obras, vêm redescobrindo em Smith nada menos que um pensador radical, ou, se quisermos, um liberal autêntico, às voltas, na quinta parte d’A riqueza das nações, com questões como o ensino público, a saúde da população, os investimentos do Estado, e, em outros escritos, com o impacto potencialmente desestabilizador da prática extensiva do comércio sobre a vida política.

Por tudo isso, uma nova tradução d’A riqueza das nações é mais do que bem-vinda. Eu não saberia dizer quantas já foram feitas para a língua portuguesa, mas sei de ao menos três, além desta, em circulação. Nenhuma, porém, tão fiel ao espírito e à letra do original. Smith não era um estilista, e sua prosa pode se tornar convoluta mesmo às voltas com questões relativamente simples. Pode ser difícil encontrar, na língua portuguesa, um equivalente satisfatório para suas sentenças, tantas delas calcadas no francês — que Smith, a exemplo de Hume, considerava uma língua mais rigorosa que o inglês.

Smith vem sendo redescoberto como um pensador radical, ou, se quisermos, um liberal autêntico

A tradução de um livro como este, ainda por cima tão extenso, é uma tarefa ingrata, para dizer o mínimo. O que ressalta ainda mais o mérito de Daniel Moreira Miranda, que enfrenta com pleno êxito a grande maioria dos obstáculos que se interpõem à fluência do texto. Ao qual vem se acrescentar a exímia revisão técnica de Mauricio Coutinho, autor do prefácio, provavelmente nosso maior especialista na obra econômica de Smith.

Quem escreveu esse texto

Pedro Paulo Pimenta

É autor de A trama da natureza: organismo e finalidade na época da Ilustração (Editora Unesp).