Divulgação Científica,

Quando acordei, o dinossauro ainda estava lá

O que os fósseis revelam de novo, de Goiás à Transilvânia

01set2019

“Há um dinossauro em frente à minha janela. Estou observando-o enquanto escrevo essas linhas. Não é uma foto em um outdoor, ou uma cópia de um esqueleto de um museu, ou ainda uma daquelas coisas animatrônicas detestáveis que vemos em parques de diversões. É um dinossauro absolutamente real, vivo, respirando, em movimento”, escreve Steve Brusatte, em seu Ascensão e queda dos dinossauros, lançado no Brasil este ano pela Record.

Poucas coisas despertam tanto a imaginação e o espírito de aventura em adultos e crianças quanto a ideia de que monstros gigantes podem ter de fato existido no mesmo planeta que hoje habitamos. Contudo, um campo tão recente como a paleontologia — apenas 180 anos nos separam do momento em que se deixou de tomar os fósseis como ossadas de gigantes bíblicos ou animais que perderam a vez na Arca de Noé — está sujeito a constantes revisões de conceitos. Ao longo do tempo, nossa visão sobre dinossauros evoluiu, passando dos animais grandes, lentos e burros descritos em O mundo perdido (1912), de Arthur Conan Doyle, aos predadores ágeis, de sangue quente e inteligência sofisticada de Jurassic Park (1990), de Michael Crichton. Mas já neste último, uma passagem em que um cientista discute com o criador do parque a questão da verossimilhança dos dinossauros clonados — que não correspondiam à expectativa comum do público e precisavam ser “adaptados” — alerta para um detalhe importante: nossa visão dos dinossauros é moldada sobretudo pela ficção, sem muito amparo das ciências.

Aquilo que nos acostumamos a identificar como um dinossauro já não corresponde mais ao que hoje se conhece deles — considerar a imagem do velociraptor do cinema como realista equivaleria a tomar um frango depenado como representação fiel do animal em vida. Brusatte, um paleontólogo americano da geração que se apaixonou pelos dinossauros na infância graças a Spielberg, não só atualiza o leitor no que se sabe deles agora, mas também — e nisso reside um grande mérito de seu livro, em tempos de ataques à ciência e à pesquisa — mostra com clareza e didatismo como se chegou a essas conclusões, e o que elas nos ensinam.

Grandes e pequenos

Nascido nos montes suaves da Transilvânia no final do século 19, o barão Franz Nopcsa von Felsö-Szilvás passou três décadas percorrendo a Europa de moto, ao lado de seu amante e secretário, o pastor albanês Doda — o primeiro na moto, o segundo no sidecar —, como espião do Império Austro-Húngaro e paleontólogo amador. Uma das primeiras pessoas a tentar entender como os dinossauros seriam enquanto seres vivos (e não apenas considerando seus ossos para classificação num museu), logo percebeu que havia algo de estranho nas ossadas que encontrava nas terras altas da Albânia: eram muito menores do que as de seus parentes imediatos no continente. Sugeriu que o tamanho diminuto se devesse a algum efeito insular — pendurou a resposta na conta da geografia, o que acabou sendo comprovado por pesquisas posteriores.

No interior do Brasil atual, o professor Carlos Roberto Candeiro, do curso de geologia da Universidade Federal de Goiás, caminha por pedreiras junto de seus alunos — um comediante, uma jovem kickboxer de dezoito anos e um rapaz com pinta de cantor de boyband — atrás de fósseis enterrados há 66 milhões de anos debaixo de plantações e fazendas. Dentre eles estão alguns dos maiores dinossauros já encontrados até hoje — como o Austroposeidon magnificus, um titanossauro cujas vértebras do tamanho de banheiras sugerem um animal de proporções bíblicas.

Histórias como a do nobre transilvano e seu amante albanês em busca de dinossauros em miniatura no Leste Europeu, ou do eclético grupo de estudantes brasileiros apaixonados por paleontologia caçando fósseis gigantes no interior do Brasil, são tão cheias de cor e personalidade que parecem fruto da ficção, mas são apenas alguns dos causos reais descritos no livro — o próprio Brusatte já esteve tanto na Transilvânia atrás dos dinossauros pigmeus quanto no Brasil buscando pelos gigantes. É o esforço dos inúmeros profissionais que o autor foi encontrando ao longo da carreira, bem como de outros tantos do passado em cujos trabalhos a pesquisa de hoje se sustenta, que compõe o cerne do livro.

Assim, descobrimos que modelos digitais em realidade virtual nos permitem agora escanear e reconstruir o espaço interno do crânio de um tiranossauro — para sorte do leitor, o animal é especialidade de Brusatte —, levando a conclusões sobre seu comportamento predatório, desde a força descomunal da mordida (a maior em qualquer predador já registrada pelo homem) até a velocidade, maior que a de um homem correndo, mas, ao contrário do que os filmes mostram, insuficiente para alcançar um jipe (fuja sempre de carro, portanto).

Se a descoberta e popularização dos dinossauros ao longo do século 20 presentearam nossa imaginação com um substituto tecnológico aos antigos mitos — o dinossauro descoberto pela ciência substituindo o dragão criado pela mitologia —, a conclusão mais importante a que o livro de Brusatte nos conduz é, contudo, ainda mais recente. E uma conclusão não de todo assimilada pelo público, muito menos pela literatura e pelo cinema de ficção: a de que os pássaros não descendem dos dinossauros; os pássaros são dinossauros. Brusatte mostra que, como a ascendência de ambos remonta a um ancestral comum, uma gaivota é tão dinossauro quanto um triceratops. Os pássaros constituem um subgrupo destes, assim como saurópodes e tiranossaurídeos: o dos dinossauros avianos. E porque nos acostumamos a pensar em dinossauros como animais extintos, escapa à nossa percepção o quanto eles nos cercam.

Lembra o microconto do autor de origem hondurenha Augusto Monterroso: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”. Quando acordarmos, veremos que, de fato, eles ainda estão aqui. Há um dinossauro em cada árvore, gaiola ou galinheiro do mundo. Eles atualmente nos rodeiam com uma variedade superior a 10 mil espécies e, em alguns casos, como os pombos, constituem verdadeiras pragas. E se isso por si só já não coloca toda uma nova perspectiva em Os pássaros (1963), de Hitchcock, o senso de excepcionalismo humano, prestes a entrar num novo ciclo de extinção em massa, tem muito a aprender com uma espécie que já sobreviveu a alguns tantos desses. Sem falar do meteoro.

Este texto foi realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira

Quem escreveu esse texto

Samir Machado de Machado

Escritor, é autor de Tupinilândia (Todavia).