Divulgação Científica,
Enciclopédia da Amazônia
Com relatos de viagem, lendas e ilustrações, bibliotecária compõe verbetes sobre a fauna e flora amazônicas
26nov2018Na era pós-internet, os relatos de viajantes são fotos no Instagram. E ainda hoje nos surpreendemos com as montanhas coloridas na China, as piscinas de água quente em pleno gelo do inverno islandês, o manto de flores após a chuva no deserto do Atacama.
O deslumbramento, embora raro, não é desconhecido. O que parece mais recente e recorrente é aquele descontentamento de quando tomamos o caminho inverso; quando a inflação de imagens foi tamanha que, na hora de ver ao vivo algo tanto sonhado, o que deveria ser um dos pontos altos da esperada viagem de férias revela uma realidade mais medíocre.
Talvez esteja aí um dos grandes encantos dos antigos relatos de viagem a terras distantes e desconhecidas: embora você talvez não se encante mais, é possível surpreender-se com a surpresa alheia. A viagem pelo outro… disso a literatura entende bem.
Amazônia exótica, de Olímpia Reis Resque, é uma compilação de testemunhos de naturalistas, zoólogos, botânicos e cronistas de expedições científicas que passaram pela região desde meados dos 1500. Entre os relatos, lendas, ilustrações antigas e atuais de espécimes da fauna e da flora da floresta, cada um dos 109 verbetes — que vão de açaí a urubutinga — traz também etimologia e nomenclatura científica. O atual lançamento é o segundo volume da obra — o primeiro foi lançado em 2011. Resque é bibliotecária há trinta anos da mais antiga biblioteca da Amazônia e, transitando entre o cotidiano popular de Belém, onde mora desde a infância, e os meios científicos do Museu Paraense Emílio Goeldi, do qual a biblioteca faz parte, começou a anotar e organizar os diversos nomes que uma mesma planta ou bicho tem.
Plantas e bichos são com frequência conhecidos por mais de um epônimo, dependendo da região, do meio cultural e de outros tantos fatores. A biblioteca como labirinto parece maravilhosa na ficção, mas a multiplicação de variáveis pode ser desesperadora e paralisante na realidade. Resque assumiu a função de psicopompo do labirinto e começou a organizar um vocabulário controlado com a terminologia da fauna e flora amazônicas. O livro é um dos frutos dessa pesquisa.
Verbetes e histórias
Pense na banana — cujo nome científico é, talvez, o mais lindo: Musa paradisiaca. Resque conta assim no início do verbete “Pacova (banana)”: “Conhecida como pacova na Amazônia, pelos naturais da terra, e banana-da-terra, pelos colonizadores”. Descubro logo em seguida que a origem da palavra vem de pac-oba, folha de enrolar. Faz pensar se aquela expressão “não me encha os pacová”, uma versão menos bruta de “não me encha o saco”, tem algo a ver com a banana ou a enrolação. O universo semântico parece conspirar a favor, já que o compêndio ensina que outro sinônimo para a fruta é figueira-de-adão. Paraíso, saco, Adão: os meandros da etimologia são tão fascinantes quanto os da psique.
Mais Lidas
Melhor ainda se, nessa viagem pelo outro, descobrimos o mapa da mina do nosso quintal. A sensação de ser estrangeiro na própria terra começa já com o prefácio de Salomão Larêdo, escritor mergulhado em temas amazônicos em cujo estilo há algo de Euclides da Cunha, seja na escolha dos adjetivos, seja na cadência das longas frases.
Mas o estranhamento desse universo se esvanece com as pérolas que surgem ao longo do livro. No verbete sobre o papagaio elas são várias — um dos relatos, do jornalista Eurico Santos, diz assim: “Os Tupis chamam a esse papagaio aiuru ou ajuru-etê (…).
Paraíso, saco, Adão: os meandros da etimologia são tão fascinantes quanto os da psique
Também é chamado ajuru-curuca, ou melhor, aiuru-curuca. Curuca quer dizer resmungador. Coroca terá origem em curuca? Velha coroca não será velha resmungadora?”. A lenda sobre o bicho também é preciosa, retirada de um livro de 1925 de Carlos Teschauer, sacerdote da Companhia de Jesus: conta que um papagaio, apanhado no mato e vivendo com uma família muito religiosa, aprendeu a tagarelar as ladainhas que ouvia. Um dia, ao ver passar um bando de papagaios, a ave rezadora decidiu ir-se embora com seus semelhantes. Alguns meses depois, a família ouve uma algazarra: era uma revoada liderada por seu antigo papagaio, que tirava “a ladainha cujo ‘ora-pro-nóbis’ era respondido de forma veemente pelo bando de papagaios que o acompanhava”.
Também são divertidas as histórias de pescador. Em tupi, peixe é “pira”; os verbetes vão da piraíba (peixe ruim) ao pirarucu (peixe-vermelho), passando pela piramboia (peixe-cobra) e pela pirarara (peixe-arara). Descubro que o peixe filhote, elogiado nas memórias gastronômicas com ingredientes típicos do norte, é a cria da piraíba, que mete medo pela voracidade e pelo tamanho. Resque pesca outra pérola em Nos sertões do Araguaia (1935), de Hermano Ribeiro da Silva: “contam que esse colosso, como outros da sua espécie, aprecia bastante a carne dos racionais. Surgem histórias e lendas dos que padeceram a dupla morte deselegante, de afogados e engolidos. Desde então desistimos de nadar arredados das margens”.
Outro relato que vale a nota fala da cobra jararacuçu. O trecho apresentado por Resque é mais longo do que a média, mas é tão encantador que me deu vontade de ir atrás da obra de origem, Caçando e pescando por todo o Brasil, de Francisco de Barros Júnior (1883-1969). Nele, o autor conta ter encontrado uma grande jararaca na canoa onde estava. Quando se preparava para acertá-la com um tiro de espingarda, seu companheiro de viagem o impediu e protagonizou uma cena maravilhosa: pronunciando palavras inaudíveis, como se fosse ofidioglota, pegou com cuidado a cobra pelo pescoço e esta se enrolou, domada, em seu braço. “Ele parecia um sacerdote, no desempenho de um estranho rito.”
Além de divertir, a obra de Resque também pode ser valiosa para cozinheiros, gastrônomos e nutricionistas que queiram resgatar os usos tradicionais de ingredientes autóctones, como açaí, pupunha, jenipapo e castanha-do-pará (ou tocari, no termo ali usado). Também serve para jovens cansados da cidade, entusiastas da volta ao campo, para pensar em técnicas de permacultura baseadas nesses conhecimento tradicionais.