Ciências Sociais,

Gênero: teoria e prática

Fundadora do primeiro grupo lésbico sadomasoquista, Gayle Rubin prefigurou, em ensaios dos anos 70, importantes debates atuais

13nov2018

Acabam de sair no Brasil, com delay de mais de quarenta anos e reunidos sob o sugestivo título Políticas do sexo, dois ensaios que dimensionam o impacto do pensamento feminista sobre as teorias sociais contemporâneas. “O tráfico de mulheres” (1975) e “Pensando o sexo” (1984), de Gayle Rubin, são mais do que apenas textos “clássicos” ou “seminais” nos debates sobre gênero e sexualidade, especialmente, em ambiente antropológico. 

As ideias expostas descortinam dilemas e nos interpelam a pensar sobre o momento presente, em particular no Brasil, com a atual reação à consolidação de direitos sociais, em torno do que o neoconservadorismo tem chamado de “ideologia de gênero”: aviltantes manifestações contra a liberdade de expressão de sexualidades na arte e violência homofóbica, misógina, racista e transfóbica. A excelente iniciativa vem, não por acaso, de uma nova editora, a Ubu, formada por mulheres jovens, intelectualmente abertas e com a coragem de apostar em temas candentes, tratados por reflexões consistentes.

Gayle Rubin nasceu em 1949, na Carolina do Sul (EUA), em uma família que, a despeito da segregação social predominante, acreditava em livros. Foi para a Universidade de Michigan no início nos anos 70, encantou-se pela antropologia e pelo feminismo, o que lhe rendeu os assuntos que habitam seus quarenta anos de carreira e suas experiências pessoais. 

Figura exemplar dos primórdios da terceira onda feminista, que bradava “o pessoal é político”, Rubin é meio itinerante (afirma ter deixado de compor, há pouco tempo, o “lumpemprofessorado”), ativista e lésbica, além de ter sido uma das fundadoras do grupo sadomasoquista Samois, em 1978. Ela conectou curiosidade intelectual, posicionamento político e defesa de estilos de vida inconvencionais.

Logo no início de “O tráfico de mulheres”, Rubin declara apresentar uma leitura idiossincrática e exegética — operação que perpassa toda a sua obra. Em 1975, o desapontamento dos jovens -— sobretudo, das jovens — com as novas esquerdas estimulou a criação de grupos feministas nos quais se examinavam os efeitos internalizados do patriarcalismo na vida cotidiana e a revisão de paradigmas político-teóricos que falharam ou simplesmente não trataram da opressão persistente às mulheres. No ensaio, Rubin faz a exegese crítica dos escritos de Marx, Engels, Lévi-Strauss e Freud.

O estilo narrativo é o da interpretação livre, e o traço idiossincrático está na singular conjunção desses autores, misturando ao fascínio político pela força da teoria sobre a exploração de classe a admiração da elegância estruturalista ao abordar o parentesco, cujo vigor não está em proporcionar uma análise histórica. Rigor à parte, o enfoque da autora é agudo: aponta para o apagamento do labor doméstico nas noções sobre a reprodução da força de trabalho, em Marx, o que implicou uma perniciosa distinção entre estrutura econômica e desigualdade sexual. 

Sistemas sexo-gênero

Para Rubin, a subordinação das mulheres resulta das relações que organizam sexo e gênero em um sistema que transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana. Tal formulação representou avanços nas teorias de gênero, antes aprisionadas aos modos como os papéis sexuais se realizam em diferentes culturas, presumindo uma condição universal de opressão. As sociedades apresentam “sistemas sexo-gênero” singulares e, no Ocidente moderno, eles se configuram a partir da naturalização da heterossexualidade, tomada como aspecto inexorável e compulsório da reprodução, não apenas biológica, como social.

Foram notáveis as apostas em alternativas sexuais que defendiam o prazer dos parceiros, incluindo práticas no alvo das feministas radicais

Em “Pensando o sexo”, ensaio de minha predileção, Rubin fez algo distinto. Se no anterior tratou de pensar as ideias de Lévi-Strauss sobre estruturas sociais e as de Freud (lacaniano demais, segundo alguns) sobre estruturas da psique — e assinalar que essas teorias afirmavam, sem problematizar, masculino e feminino, homem e mulher em um binarismo inescapável —, neste ela trata da variação sexual, ou de um sistema de muitas diferenças. Esse texto tem maior atualidade até, talvez, pelo fato de ter sido escrito em meio a um contencioso político que se avizinha dos tempos em que vivemos. 

O início dos anos 80 testemunhou, nos Estados Unidos, o New Right, movimento organizado por políticos republicanos e lideranças religiosas, cuja agenda priorizava medidas moralizantes como a criminalização do aborto, a restrição de direitos aos homossexuais, propostas variadas para que as mulheres deixassem de atuar na esfera pública, dedicando-se ao lar e à prole etc. Nesse mesmo cenário, despontaram grupos feministas com posições antagônicas, constituindo o que hoje chamamos das sex wars.

De um lado do campo de batalha, um moralismo feminista antissexo, protagonizado pelo movimento contra a pornografia — não menos normatizador do que a retórica que caracterizava o New Right. De outro, na esteira da tradição em favor da liberdade sexual, foram notáveis as apostas em alternativas sexuais que defendiam o prazer dos parceiros, incluindo práticas que estavam no alvo das feministas radicais. 

“Pensando o sexo” é um dos artigos da coletânea de Carol Vance, Pleasure and Danger (1984), marco teórico e político que recusou a associação da sexualidade aos modelos coercitivos de dominação, bem como a articulação desses modelos a posições estáticas de gênero, em um mapa totalizante da subordinação patriarcal.

Campo de batalha

Rubin afirma que a relação entre o sexo e o feminismo sempre foi complexa pelo fato de a sexualidade ser o nexo da relação entre gêneros e por muito da opressão nascer, ser medida e se constituir a partir dela. A relevância do artigo está em ter salientado que o feminismo não é o único discurso — nem o mais apropriado — para tratar das relações de poder formadas e reguladas pela sexualidade.

O “feminismo” criticado por Rubin é constituído pelo ativismo antipornográfico, em que há a noção de que a modelação, a direção e a expressão da sexualidade organizam a sociedade em dois sexos, mulher e homem. Para Rubin, as relações sexuais não podem ser reduzidas a posições de gênero. A inter-relação sexualidade-gênero não pode ser tomada pelo prisma da causalidade nem ser fixada como necessária sempre. 

A autora defende fazer alianças com as minorias sexuais e propõe uma nova conceituação: segundo ela, os atos, as práticas e as escolhas sexuais, nas sociedades ocidentais modernas, se realizam no interior de um sistema hierárquico de valorização sexual, no qual a sexualidade considerada normal é a que se exerce em relações heterossexuais, firmadas em matrimônio, visando à reprodução. 

A esse padrão seguem outras situações, em ordem decrescente: casais heterossexuais, monogâmicos, não casados; solteiros com vida sexual ativa; casais estáveis de gays e lésbicas; gays solteiros, sem vida promíscua; gays solteiros, com vida promíscua; fetichistas; SM (sadomasoquistas); posições não masculinas ou femininas (travestis, drag queens etc.); sexo pago; sexo intergeracional (em particular, entre adultos e menores de idade). Estes últimos comportamentos, na base do sistema, são condenados à desvalorização sistemática, quando não são — como no caso da pedofilia — objeto de punição judicial.

É interessante notar que Rubin associa as diferentes práticas do seu sistema ao que chama de minorias sexuais. Faz uso de um procedimento analítico que já associa a escolha sexual à constituição de identidades coletivas, seja pela capacidade de segmentação — tão característica da sociedade norte-americana —, seja pelo esforço da autora de dar legitimidade política aos praticantes do sexo socialmente não sancionado. 

O fato é que, a partir desse marco, um novo campo de teorias se abriu, trazendo novas e intrigantes contribuições. Intrigantes porque, ao examinar mais detidamente a produção sobre o tema da sexualidade, na década de 90 — principalmente nos Estados Unidos —, salta aos olhos a quantidade de estudos relativos às práticas sadomasoquistas, fetichistas etc., entre pessoas do mesmo sexo.

Mesmo que Gayle Rubin tenha tentado deslocar a proeminência do feminismo como voz exclusiva quando se trata da sexualidade e de deixar sugerido que é preciso garantir a flexibilidade de olhares para dar conta de um conjunto mais diverso de minorias sexuais, é de notar que os escritos gays e lésbicos ganharam evidência nos últimos tempos. Há o reconhecimento, na bibliografia, de que tais estudos não apenas colocaram a público um tratamento mais sistemático das realidades vividas por homossexuais, como trouxeram contribuições para pensar os efeitos mais profundos do modelo hétero. 

O ‘feminismo’ criticado por Rubin é constituído pelo ativismo antipornográfico, que concebe uma sociedade organizada em dois sexos, mulher e homem

Particularmente, chamo atenção para a discussão no campo feminista sobre sexualidades heterodoxas, com clara tendência a enfatizar os fenômenos e práticas relativos ao campo do lesbianismo. Contudo, é preciso ponderar que esse esforço acabou por deixar um pouco ao relento as discussões sobre sexualidades não homoeróticas. Limitação que não retira o poder de interpelação que nos lança frente aos cuidados que temos que tomar contra expressões variadas de pânico moral, inclusive, aquelas lançadas em meio a uma arena política ou ideológica pretensamente comum.

Para terminar, vale citar a ideia lançada por Judith Butler a propósito dos ataques que sofreu no Brasil, inteiramente coerente com o pensamento de Rubin: não basta combater a intolerância com a mera tolerância, mas com a convivência, com o diálogo e com o respeito à diferença.

Quem escreveu esse texto

Maria Filomena Gregori

Antropóloga, é autora de Prazeres perigosos: erotismos, gênero e limites da sexualidade (Companhia das Letras).