Ciências Sociais,

O mal-estar feminino

Clássico do feminismo de autoria de Betty Friedan mostra que a crise de identidade da mulher ainda não foi superada

15abr2020

Havia um problema sem nome que rondava a existência das esposas e donas de casa brancas de classe média nos Estados Unidos dos anos 1950. Muitas se casaram cedo e não ingressaram na faculdade – e as que entraram no ensino superior deixaram o curso no meio ou não se dedicaram o suficiente. Afinal, por que se esforçar nos estudos se tudo que elas queriam era encontrar um homem para constituir família? Achavam que ser esposa, mãe e dona de casa bastava para que se sentissem realizadas como mulher. Era o que pregavam a educação, a psicanálise, a ciência, os meios de comunicação, a sociedade em geral e suas próprias famílias.

Mesmo assim, muitas relatavam sentir um grande vazio interno, tinham crises de choro, bebiam em demasia, e, nos casos mais extremos, tiravam a própria vida. As mulheres não conseguiam sustentar na vida real esse ideal de feminilidade. A pergunta que faziam para si mesmas era: “Isso é tudo?”.

Esse mal também acometia a jornalista, esposa, dona de casa e mãe de três filhos Betty Friedan (1921-2006) e suas colegas do Smith College, onde estudou. Intrigada diante desse fenômeno, ela resolveu investigá-lo a fundo. O resultado dessa pesquisa foi o clássico feminista A mística feminina, que abalou os Estados Unidos na década de 1960 quando virou um bestseller após o seu lançamento em 1963, sendo considerada a obra que deu início à segunda onda do feminismo – a primeira onda teria acabado com a conquista do voto feminino nas primeiras décadas do século 20.

O impacto no país foi tanto que em 1966 foi fundada em Washington a National Organization for Women (NOW, ou Organização Nacional de Mulheres), encabeçada por Friedan. A organização, que existe até hoje, procura promover a igualdade de gênero e defender os direitos das mulheres. Um marco na história do movimento foi a marcha organizada pela NOW em 26 de agosto de 1970, que reuniu milhares de mulheres de classes e etnias distintas em diversas cidades dos Estados Unidos em defesa da paridade salarial entre homens e mulheres, da legalização do aborto, entre outros temas ligados à mulher. A imprensa procurou desqualificar a manifestação e suas lideranças, que foram chamadas de frustradas e megeras e acusadas de odiarem os homens.

Em abril de 1971, Friedan passou três dias em terras brasileiras para marcar o lançamento do livro, que foi trazido ao Brasil por Rose Marie Muraro, então na Editora Vozes –, nessa época, A mística feminina já havia se tornado a Bíblia do movimento das mulheres norte-americano. Por aqui, Friedan foi recebida com hostilidade pela imprensa. A turma do Pasquim, encabeçada por Millôr Fernandes, provocou-a durante uma entrevista, que culminou com a ativista batendo no gravador, jogando-o para longe. O dramaturgo Nelson Rodrigues descreveu-a em uma crônica como “a inimiga pessoal da mulher”, por interpretar equivocadamente que ela afirmasse que “o homem é o macho perfeito e a mulher o ‘macho mal-acabado’. O ideal é que, no fim de tudo, tenhamos dois machos.”

Agora, essa obra icônica ganha pela Rosa dos Tempos (selo criado por Muraro em 1990) uma caprichada edição comemorativa dos cinquenta anos da sua primeira edição, com outros quatros textos de autoria de Friedan fazendo um balanço dessa obra, dos ganhos das mulheres com o passar das gerações e o que ainda precisa ser conquistado.

O problema tem nome

O livro me ajudou a entender o significado de uma cena do filme Educação (2009), da diretora Lone Scherfig, que volta e meia passa na minha cabeça. No longa, na Inglaterra do início dos anos 1960, Jenny, uma jovem de dezesseis anos pode entrar na faculdade, negligencia a escola ao conhecer um sedutor homem mais velho, que a introduzi a uma vida hedonista e boêmia, tirando-a do tédio que sentia. Ele a pede em casamento e ela aceita. A professora que a vem incentivando para entrar em Oxford é que não fica muito contente e tenta dissuadi-la do casamento. (Cuidado, spoiler!) Jenny, a princípio nega, mas depois descobre que seu noivo já era casado com filhos. Desconsolada, ela vai até a casa da professora para ver se ainda é possível fazer os exames para entrar na faculdade. Quando Jenny entra no apartamento da professora solteira, onde mora sozinha, ela fica encantada com os livros, as pinturas, os cartões-postais. “É lindo”, comenta, com sinceridade. “Adoraria viver em um lugar assim”. A professora ri e diz que para conseguir isso era só entrar em Oxford e se tornar uma professora. “Mas todos esses livros e fotos… é tudo do que você precisa, não é?”, solta a jovem. Jenny descobre que ela pode se realizar por si mesma, sem precisar se casar. É desse poder de se sentir completa que fala o livro de Friedan.

O dramaturgo Nelson Rodrigues descreveu-a em uma crônica como ‘a inimiga pessoal da mulher

“Mística feminina” é o nome pelo qual Friedan resolveu chamar esse ideal de feminilidade impossível de ser alcançado pela totalidade das mulheres norte-americanas e que era vendido pelo cinema, pela televisão, pelos anúncios publicitários e pelas revistas voltadas ao público feminino, para as quais Friedan colaborava. A imagem que se passava era que a mulher não era um sujeito completo em si mesma; para tal, precisava ter marido, filhos e os produtos e os eletrodomésticos mais modernos para ser uma dona de casa eficiente. A mulher era, assim, tratada como um objeto passivo e uma consumidora, cujo vazio seria preenchido ao adquirir a última novidade em matéria de detergentes ou de ceras para limpar o chão.

Ler o livro de Betty Friedan no momento atual, marcado por retrocessos políticos e uma guinada conservadora, que coloca em risco grande parte dos direitos sociais conquistados com muita luta (inclusive das mulheres), serve como uma espécie de alerta. É assustador o quadro descrito por ela dos Estados Unidos pós-Segunda Guerra Mundial, depois das conquistas das aguerridas feministas do fim do século 19 e do início do 20: as norte-americanas estavam se casando cada vez mais cedo (muitas aos dezesseis, dezessete anos), tendo mais filhos (a geração dos baby boomers) e abrindo mão de ter qualquer tipo de educação para se devotar inteiramente ao lar – tanto que dados apontavam para a falta de professoras, enfermeiras e assistentes sociais na força de trabalho do país; também havia um número elevado de jovens esposas internadas em clínicas psiquiátricas. A autora traçou as origens desse fenômeno nos soldados norte-americanos que, traumatizados pelas atrocidades vividas na guerra, sonhavam com um retorno tanto literal quanto simbólico ao “lar”. E foi isso que eles fizeram.

Os homens passaram a retomar os postos de trabalho que, diante da sua ausência, haviam sido ocupados por mulheres, inclusive na edição de revistas femininas que mudaram sua linha editorial para só tocar em assuntos mais leves voltados para beleza, sexo, maternidade e vida doméstica (nos anos 1920 e 1930, essas revistas publicavam, além de conteúdos mais amenos, artigos discutindo temas políticos e poesias de William Faulkner). Esses homens também queriam voltar para uma casa confortável, com uma esposa feliz que os aguardava para jantar enquanto eram rodeados de filhos pequenos.

Mesmo com a possibilidade de seguir profissões e entrar em faculdades que antes lhes eram proibidas, as mulheres jovens da década de 1950 escolhiam se casar cedo e se dedicar totalmente à vida doméstica. A sociedade só apresentava dois caminhos para a mulher: se “masculinizar” para seguir uma carreira “profissional” (termo que virou uma espécie de insulto na época), abrindo mão do casamento e da maternidade, ou encontrar um homem para chamar de seu para construir sua vida em torno dele e dos filhos. Assim, como a mulher ficava com medo de não se realizar por completo (inclusive sexualmente), invariavelmente escolhia se casar.

No entanto, havia um problema: a mulher não se sentia completa ao seguir por esse caminho. Esse mal sem nome, que a mulher tinha mais dificuldade de falar do que sobre sexo, podia surgir depois de alguns anos. Daí, ela podia ter outro bebê para preencher os seus dias enquanto o marido estava no trabalho e o resto das crianças na escola, se consultar com um psiquiatra que lhe prescrevia remédios para lhe dar o ânimo que lhe faltava para encarar a jornada das tarefas domésticas, arranjar um hobby inócuo, ter um caso amoroso ou tomar uma garrafa de vinho por dia. Não importava o quanto fugisse, o problema continua ali, o vazio nunca era preenchido.

Para Friedan, era um “problema de identidade – um impedimento ou uma fuga do crescimento perpetuados pela mística feminina” da cultura norte-americana que “não permite que as mulheres aceitem ou satisfaçam suas necessidades básicas de crescer e realizar seu potencial como seres humanos”. “Penso que esta é a crise das mulheres crescendo – um ponto de virada de uma imaturidade que vem sendo chamada de feminilidade para uma identidade humana completa. Acho que as mulheres precisam sofrer essa crise de identidade, que começou há cem anos, e precisam sofrê-la ainda hoje, simplesmente para se tornarem humanas por completo”, diagnosticou.

Ainda que a desigualdade racial entre as mulheres não seja problematizada e alguns trechos soem bastante datados e preconceituosos, especialmente as passagens sobre homossexualidade masculina (a feminina nem é mencionada) e o trabalho doméstico seja desvaloizado pela autora (o tema ganha outros contornos ao se ler pensadoras como Silvia Federici), o livro se mostra um importante documento histórico que paira como uma espécie de fantasma por cima das nossas cabeças, como um espelho distorcido de questões que ainda se mostram atuais. Em um dos textos em que Friedan faz um balanço do impacto do livro, a autora dá a tônica para o próximo passo: se as mulheres precisaram (e precisam) pensar sobre si mesmas e se reinventar, os homens também têm necessidade de refletir sobre seu papel para crescerem junto, e não em detrimento, das mulheres.

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de ireito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).