Arte,

Descolonizar a paisagem

Artista assume papel de explorador ao resgatar e recriar o improvável cerrado paulistano

20nov2018

“Precisamos cultivar o nosso jardim” é a lição que resta no Cândido de Voltaire, depois que um turbilhão de desgraças desmente o otimismo metafísico dos filósofos para os quais toda adversidade pertence a uma ordem perfeita, porém imperceptível por perspectivas particulares. O cultivo de um telhado verde levou o artista plástico Daniel Caballero ao Cerrado infinito. Combinando desenho, land art, artivismo, derivas, intervenção urbana e parcerias com outros artistas, o projeto se desdobra em exposições e rendeu um livro, o Guia de campo. 

Caballero relata o processo que o levou a “criar o fragmento de uma paisagem extinta” em textos que alternam memória afetiva e pensamento crítico. O livro lista cinquenta plantas encontradas em “terrenos baldios e áreas marginais do urbanismo”, numa reconstituição do “cerrado paulistano” que teria coexistido com a vegetação de mata atlântica. O Guia oferece dados minuciosos sobre cada espécie, assim como ilustrações que dialogam com a linguagem visual etnográfica dos cronistas-viajantes do século 19. Em texto introdutório, Bruno Mendonça descreve o “cerrado infinito” como “zona de resistência e sobrevivência”. O crítico aponta vínculos entre o trabalho de Caballero e “procedimentos ligados a artistas da segunda vanguarda dos anos 1960 e 1970”.

Desenhos pontuam as narrativas, por vezes abrindo-se em vastos painéis em página dupla. O artista assume a figura do explorador. De capa preta e chapéu, como um tropeiro, munido do caderno de desenhos, o personagem empunha a terra envolvida por trilhas das andanças, pega fogo, como ocorre com certa frequência no cerrado, trava contato com um índio e por fim obtém a visão do bioma arcaico. Cada espécie recebe uma ilustração de página inteira, um divertido jogo entre o registro naturalista e a sensibilidade para as formas dos arbustos, árvores, ervas e gramíneas, ora apresentadas em detalhe, ora ao longe, com ênfase na copiosa folhagem, formatos inusitados dos frutos, troncos e galhos retorcidos.

O material gráfico repercute outro tipo de produção. Depois das instalações simultâneas no Museu de Arte de Ribeirão Preto e na Galeria Virgílio, em São Paulo, Caballero passou a atuar na praça Homero Silva, no bairro paulistano da Pompeia, também conhecida como praça da Nascente. Reuniu amigos, colaboradores e moradores para remover, de parte da praça, a vegetação exótica e, ao tranplantar as espécies recolhidas pela cidade e utilizadas nos trabalhos, fabricar uma “paisagem ancestral”. O Guia de campo relata experiências de choque daqueles que viam no cerrado um “matagal”, mas também episódios de reconhecimento das plantas comuns no passado e que vêm sumindo com o avanço dos prédios e a intervenção do paisagismo.

O ?Cerrado infinito? foi pensado para ‘manter refúgios impenetráveis’ em pleno ambiente urbano

O Cerrado infinito se desdobra em trabalhos de colaboradores de Caballero. A arte “radicante”, de acordo com a formulação do crítico Nicolas Bourriaud, é aquela que atravessa fronteiras e cria raízes em outros espaços. O Cerrado infinito foi pensado para ser reproduzido e “manter territórios inúteis, refúgios impenetráveis” em pleno ambiente urbano, onde todo espaço precisa ser funcional.

O relato dos sucessos e insucessos do Guia de campo compõe uma espécie de manual para “descolonizar a paisagem”. Uma dessas experiências foi realizada por Caballero em parceria com a artista Silvia MH na Escola Estadual Jardim das Camélias, atual Zilda Arns, em Itaquera. A artista, que é professora de artes, já havia promovido contatos entre o trabalho de arte e a atividade pedagógica em Ocupação de afetos (2007), quando produziu uma série de intervenções na Escola Estadual Jornalista Francisco Mesquita, também na zona leste, estimulando jovens a ocupar espaços da escola com objetos de valor afetivo. Em parceria com professores de biologia e geografia, os artistas reproduziram a experiência da Nascente. Silvia MH relata a mudança de comportamento dos estudantes depois do projeto. Violentos embates em sala de aula deram lugar ao entendimento e ao diálogo. Mesmo com o apoio da direção, o trabalho foi destruído depois de uma operação de jardinagem mal orientada.

Na Nascente, Leticia Rita produziu emissões noturnas da própria voz imitando o canto do pássaro urutau, tradicionalmente associado ao mau agouro. O trabalho pode ser lido tanto como uma inversão do sentido tradicional do som, por transformar lamento em luta, quanto como um anúncio da iminência do fim, uma vez que um dos traços do projeto de Caballero é a consciência da impossibilidade de reconstituição do cerrado paulistano e da irreversibilidade do desenvolvimento urbano. 

Mônica Rizzolli utilizou plantas do cerrado para produzir cauim, bebida ritualística indígena, servida aos participantes de eventos ligados ao projeto. Arte relacional, ou seja, uma obra de arte que deflagra interações entre as pessoas, ou que é ela mesma uma forma de interação, outra ideia de Bourriaud, ressurge no trabalho da artista e na própria rede de colaborações.

O canto do urutau pontua o caráter heterotópico do projeto, que cria um espaço de “contraposicionamento” nos termos do filósofo Michel Foucault. Assim como a ideia de “heterotopia”, os conceitos de “não lugar” e “lugar vazio”, formulados pelo antropólogo Marc Augé, abrem trilhas pelo Cerrado infinito. Augé chama de “não lugares” os lugares de passagem necessários para a mobilidade urbana, como pontes, avenidas, estações e terminais. Lugares necessariamente não identitários, nos quais há plena visibilidade, incompatíveis com os “lugares antropológicos”, cujo significado coletivo só pode ser revelado no contato com infomantes locais. 

Ao atropelar lugares antropológicos pela construção desenfreada de não lugares, o desenvolvimento urbano cria “lugares vazios”, regiões abandonadas às margens das vias férreas ou embaixo das pontes onde cresce o mato e acumula-se o lixo. Tendem a ser o último recurso dos excluídos. Neles, Caballero encontra suas plantas resistentes, muitas vezes em contato com pessoas em situação de vulnerabilidade, conforme o episódio sobre famílias sem teto que ocupavam um campo de muricis, arbusto frutífero raro nas áreas paulistas.

Entre os não lugares e lugares vazios da cidade-mundo, Caballero cria “outro lugar”, onde é possível se contrapor tanto às paisagens cinzentas quanto a um paisagismo eurocêntrico. O Cerrado infinito não é apenas um refúgio para cinquenta espécies da paisagem campestre paulistana, mas para as relações comunitárias que se formam entre os colaboradores do projeto. Como em trabalhos do artista suíço Thomas Hirschhorn e do belga Francis Alÿs, o Cerrado infinito produz um espaço livre para a troca de ideias e promove itinerários alternativos e reveladores. 

Cultivar o nosso jardim não vai trazer de volta o que foi arrancado da terra pela sucessão de catástrofes da história, mas comprova a capacidade humana de recriar raízes quando trabalhamos juntos.

Quem escreveu esse texto

José Bento Ferreira

É crítico de arte e professor de filosofia.