Arte,

A geometria e a composição

Historiador da arte traça a influência dos literatos humanistas nas telas dos principais pintores do Renascimento

31maio2019

O galês Michael Baxandall pertence à corrente da história da arte conhecida como iconologia, que ainda hoje tem seu ponto de referência no Instituto Warburg de Londres. No século passado, muitos dos pesquisadores mais importantes nessa área surgiram dali: Aby Warburg, Fritz Saxl, Erwin Panofsky, Ernst Gombrich (que foi o mestre de Baxandall), para citar apenas alguns. Morto em 2008, Baxandall talvez tenha sido a última estrela dessa dinastia, pelo menos até agora. Em reação à análise estritamente formal dos teóricos da visibilidade pura, tendência surgida no final do século 19, os iconólogos valorizaram o estudo do significado das representações dentro de contextos culturais determinados. 

Não se trata, porém, de um simples retorno ao conteúdo dos quadros: até os esquemas formais mais abstratos, como as estruturas perspectivas ou certos modelos de disposição das figuras, eram submetidos a análises que tentavam descobrir qual poderia ser sua relação com a experiência do mundo de seus contemporâneos. Por exemplo, em um de seus livros mais famosos e importantes, Painting and Experience in Fifteenth Century Italy (1972; publicado no Brasil como O olhar renascente, Paz e Terra, 1991), Baxandall relaciona a tendência à geometrização das figuras na pintura italiana do século 15 ao surgimento de um novo tipo de geometria que, mais do que ensinar a medida dos terrenos, calculava o volume de pacotes e barris, reduzindo-os a figuras geométricas regulares — evidentemente, uma geometria comercial, contraposta à geometria agrária predominante no período anterior. A tese do autor é que observadores treinados nesse tipo de redução, caso da nova elite de comerciantes ricos, eram mais capazes de apreciar o rigor proporcional de artistas como Piero della Francesca — que, aliás, além de ter escrito um tratado de perspectiva, é autor de um manual de geometria comercial.

Baxandall começou a publicar na década de 1960, e sua versão da iconologia traz marcas dos novos tempos: em relação a seus antecessores, que privilegiavam a relação entre artes figurativas, filosofia e literatura, ele demonstra maior interesse por história social, ciência, tecnologias e funcionamento do mercado artístico. Nos anos 1980, sob o impacto das novas técnicas de interpretação surgidas do estruturalismo, do pós-estruturalismo e da crítica da visão linear da história pelos pensadores pós-modernos, engajou-se numa reflexão sobre seu próprio método de leitura das obras — o que, apesar de alguma artificialidade, proporcionou análises preciosas (é o caso de Padrões de intenção, de 1985, lançado no Brasil pela Companhia das Letras em 2006). 

Dois modelos intelectuais 

Publicado em 1971, um ano antes de O olhar renascente, Giotto e os oradores foca as relações entre pintura e literatura, o que o torna, de certa forma, mais tradicional. O cotejo com o livro imediatamente posterior, contudo, torna-o especialmente interessante, como se se tratasse de duas abas de um díptico. 

O título é traiçoeiro. Melhor o subtítulo: As observações dos humanistas italianos sobre pintura e a descoberta da composição pictórica (1350-1450). De fato, os oradores em questão são aqueles que, a partir do século 19, passaram a ser chamados de humanistas: intelectuais de novo gênero, oriundos da nova aristocracia mercantil ou a serviço dela, hostis à cultura escolástica medieval, mas cultores do latim e do grego clássico e, em geral, da Antiguidade. 

Aristocratas mercantis, os humanistas eram filósofos literatos; artistas como Donatello não entendiam latim e gostavam das tradições medievais  

Em 1350, de onde a análise de Baxandall começa, Giotto já morrera fazia treze anos. A cultura desse pintor tinha origem diversa daquela dos oradores: provinha das guildas medievais, muito embora, por prestígio e gênio, já se colocasse acima delas. Teve relação de igual para igual com os literatos de Florença, sua cidade (um deles era ninguém menos que Dante), mas pouca ou nenhuma com a cultura humanista, que na época apenas engatinhava. Após sua morte, é verdade, tornou-se um modelo tão universal que todos os humanistas o citam como ponto de partida de uma nova arte. Mas a preocupação central de Baxandall não é a relação dos humanistas com Giotto, e sim a destes com os artistas do primeiro Renascimento, de Brunelleschi, Donatello e Masaccio até Piero della Francesca.

Esses pintores tampouco eram humanistas: entendiam pouco ou nenhum latim, muito menos grego; tinham relações mais afastadas com as novas elites, ainda que delas recebessem grande parte de suas encomendas; e, apesar de estudar a arte antiga, também tinham apreço pelas tradições medievais locais, sobretudo em Florença. Enfim, assim como os humanistas criaram um novo modelo de filósofo literato, os artistas do primeiro Renascimento também forjaram um novo modelo de intelectual, mas distinto daquele: não mais um artesão legado às guildas, mas tampouco um literato. Um técnico, essencialmente, mas um técnico capaz de produzir objetos que tivessem o mesmo valor intelectual de uma obra literária. Pode se dizer que as belas artes, como as entendemos hoje, nasceram nesse momento. 

A ponte

Os humanistas perceberam o que estava acontecendo? Mais ou menos, responde Baxandall; pelo menos, demoraram a entender. Os textos que o autor coleta nos dois primeiros capítulos do livro, que são quase uma antologia comentada, tentam aplicar à nova arte o vocabulário e os métodos de descrição, inadequados, de autores antigos (Filóstrato, Plínio, o Velho, entre outros). Em geral, privilegiam obras que mais se prestam a uma descrição narrativa, portanto artistas (alguns deles de fato excelentes) menos preocupados com o arcabouço estrutural da imagem e mais com a rendição do detalhe. Os mais citados são Pisanello, pintor e medalhista refinadíssimo, do qual infelizmente restam poucas obras; seu discípulo Gentile da Fabriano, mais exuberante, mas menos sofisticado; e os melhores pintores flamengos: Jan van Eyck e Rogier van der Weyden. Com certo esforço, Baxandall tira desses textos alguns sinais de novidade. Mas, se o livro parasse aí, o butim seria magro.

A contribuição realmente importante de Giotto e os oradores está no terceiro e mais breve capítulo, centrado na figura de Leon Battista Alberti. Alberti se encontrava numa posição privilegiada para fazer a ponte entre a cultura dos humanistas e a dos artistas de ponta do Renascimento. Além de ser um humanista e escritor notável, era um pintor amador e um exímio arquiteto; não só conhecia a fundo a literatura latina e grega, como também era formado em física e matemática; foi secretário do papa Nicolau 5º e amigo de artistas como Brunelleschi e Donatello. 

Seu tratado Sobre a pintura (redigido entre 1435 e 1436, não por acaso em duas versões, latim e italiano) marca, nesse sentido, um momento de convergência. Tudo isso já era sabido. Mas Baxandall foi especialmente feliz em mostrar, no texto, o ponto preciso em que Alberti realiza uma articulação bem-sucedida entre cultura humanista e prática artística. 

Baxandall mostra que o artista renascentista perfeito será aquele que souber construir espaços como um geômetra e narrar histórias como um orador

Para tratar da construção do espaço pictórico, Alberti adota, pela primeira vez de maneira sistemática, os princípios da geometria projetiva. Em seguida passa a falar da composição, ou seja, de como histórias podem ser narradas dentro desse espaço construído. Para tanto, adota uma classificação peculiar: as histórias são compostas de corpos; os corpos, de membros; os membros, de superfícies. Retomando as análises dos dois primeiros capítulos, Baxandall mostra de onde vem essa classificação: da divisão clássica do discurso em cláusulas, frases e palavras. Em suma, para construir sua cena, o pintor pode usar a geometria. Mas, para narrar, são necessários os princípios da retórica. É um novo paradigma cultural: o artista excelente será aquele que souber construir espaços como um geômetra e narrar histórias como um orador. 

Vistas sob esse ângulo, a coerência e a profundidade do projeto de Alberti ganham importância ainda maior: apesar de não ter tido grande circulação de imediato, Sobre a pintura antecipa o tipo do artista humanista que será dominante na segunda metade do século 15 e no começo do século 16 — Botticelli talvez seja o primeiro exemplo acabado e Rafael, o mais perfeito. Baxandall não chega até eles, mas repercorre, em O olhar renascente, a evolução que, paralelamente ao desenvolvimento do pensamento humanista, foi influenciada pelo gosto dos artistas e de seus clientes. Na confluência dos dois livros se entrevê, ainda que em esboço, uma história da formação do olhar renascentista.

Uma última observação: na edição brasileira de Giotto e os oradores muitas citações são traduzidas, mas outras (frases e até longos trechos) permanecem em latim ou em italiano antigo. Num país em que os estudos clássicos têm pouco ou nenhum lugar no currículo escolar, talvez seja pedir demais ao leitor.  

Quem escreveu esse texto

Lorenzo Mammì

É autor de O que resta: arte e crítica de arte, pela Companhia das Letras.